sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Os filhos da violência de gênero

Publicado por Alice Bianchini

Maitê Proença quebrou o silêncio de longos anos e, de forma corajosa, falou sobre o seu drama familiar. Ela tinha 12 anos quando o seu pai matou a mãe dela com 16 facadas. Seu desabafo serve de alerta: "Quando acontece uma coisa, não é só a mãe que sofre, as outras vítimas também sofrem. A violência atinge a todos. Eu tinha dois irmãos, um se matou de tanto beber e o outro entrou para as drogas pesadas. Meu pai acabou se matando também. Então, quem sobrevive a isso, como no meu caso, passa a vida perguntando se tem valor. Por que eu não consegui impedir? Ninguém pensou na gente, naquela estrutura alegre, nada daquilo foi levado em conta".[1]

Estudos demonstram os danos advindos do fato de a criança ou o adolescente testemunhar episódios de violência entre seus pais ou pessoas próximas de si. É a chamada vitimização indireta. Essa pessoa, apesar de não ter sofrido nenhuma violência, é contagiada pelo impacto da violência dirigida contra uma pessoa com quem mantém uma relação próxima. A violência contra a mãe, nesses casos, é uma forma de violência psicológica contra a criança.

Só para se der ideia da dimensão do problema, de acordo com o relatório do Ligue 180 – Balanço 2016.1, mais de 80% dos filhos presenciaram ou também sofreram violência junto com as mães.[2]

Os impactos da violência direta também são sentidos na perpetuação do fenômeno da violência, levando a que, por meio de processos psíquicos interiorizados, ela seja reproduzida pela vitima indireta em outro momento de sua vida.

É disso que trata a violência transgeracional. Pesquisas feitas com agressores mostram um histórico de vida muito comum entre eles: “um percentual elevado dos futuros agressores foram anteriormente ou tem sido testemunhas destas condutas violentas que foram aprendidas durante os períodos de desenvolvimento e maturação do indivíduo.”[3] Daí o caráter transgeracional desse tipo de violência, que atinge os homens e as mulheres, embora por conta de fenômenos psíquicos diversos. Para os homens o que prevalece é a apreensão do comportamento agressivo; para as mulheres, o que elas aprendem diz com a submissão, com a obediência, com o conformar-se com o seu “destino”.

Os prejuízos para os filhos ocorrem em todos os níveis: social, psicológico, emocional e comportamental, “afetando de forma altamente negativa seu bem-estar e seu desenvolvimento, com sequelas a longo prazo que, inclusive, pode chegar a transmitir-se por meio de sucessivas gerações.”[4]

Compromete, portanto, o desenvolvimento futuro dos indivíduos imersos nesse ambiente conflitivo. E comprometendo-os, compromete toda a futura sociedade. O pai e a mãe são importantes figuras de apego e referência para a vida dos filhos e para os comportamentos que terão quando da fase adulta.

Algumas teorias buscam explicar os efeitos da violência familiar aos filhos menores de idade:

- TEORIA DA APRENDIZAGEM SOCIAL: “a exposição dos filhos à violência de gênero provoca a internalização e aprendizagem de modelos violentos e papeis de gênero errôneos.”[5]

- TEORIA DO DESAMPARO APRENDIDO: “a incapacidade para prevenir o momento, o lugar, a intensidade em que se vai produzir a violência, ou seja, a falta de controle da mesma, provocaria estados de desamparo tanto nas vitimas diretas como nas indiretas. [...] O desamparo [por sua vez] seria a causa pela qual muitas mulheres maltratadas não reagem ante a violência, mantendo uma convivência nociva para elas e para seus filhos. Tudo isso com independência de sua formação, êxito profissional e situação econômica.”[6]

- TEORIA SISTÊMICA[7]: a violência familiar afeta as práticas das crianças de três formas:

a) a violência geralmente causa estresse na mãe, o que prejudica consideravelmente sua função parental;

b) a agressão e hostilidade expressada contra a mulher geralmente também é dirigida contra os filhos. “O agressor, após um episódio violento com sua companheira, dificilmente modifica seu estado emocional para interagir com os filhos, sendo inclinado a empregar um repertório comportamental agressivo com estratégias de disciplina negativas, que indubitavelmente afetará o menor.”[8]

c) inconsistência na educação dos filhos. “Em uma família disfuncional desta natureza, o habitual é que os progenitores ou cuidadores das crianças não consensuem no estilo educativo e em relação ás normas que devem cumprir os menores.”[9]

Importante compreender, entretanto, que “sofrer o trauma da violência familiar e a ruptura dos progenitores, não supõe indefectivelmente ser uma pessoa desiquilibrada, violenta e machista, sem possibilidade de um futuro normal. Porém, para isso, requer-se políticas de intervenção integral com a família, que fomentem, principalmente, o empoderamento de todos os seus membros, a igualdade entre homens e mulheres, a cultura da paz e o respeito. Porque somente intervenções integrais deste tipo permitem que se alcance, no futuro, a verdadeira convivência em igualdade entre homens e mulheres, para que todos os cidadãos, independentemente de seu sexo e de seu gênero sejam iguais de direito e de fato.”[10]

[1] Disponível em: http://diversao.r7.com/tveentretenimento/maite-proenca-relembra-da-mae-assassinada-com-16-facadas-...
[2] http://www.spm.gov.br/balanco180_2016-3.pdf
[3] CARRILLO DE ALBORDOZ, Eduardo. Aspectos clínicos y médico-legales de la violencia de género. In: FARIÑA, Francisca, ARCE Ramón, BUELA-CASAL Gualberto (eds.). Violencia de género: tratado psicológico y legal. Madrid: Biblioteca Nueva, 2015, p. 170.
[4] SEIJO MARTÍNEZ, Dolores. La violencia doméstica: repercusiones en los hijos. In: FARIÑA, Francisca, ARCE Ramón, BUELA-CASAL Gualberto (eds.). Violencia de género: tratado psicológico y legal. Madrid: Biblioteca Nueva, 2015, p. 120.
[5] SEIJO MARTÍNEZ, Dolores. La violencia doméstica: repercusiones en los hijos. In: FARIÑA, Francisca, ARCE Ramón, BUELA-CASAL Gualberto (eds.). Violencia de género: tratado psicológico y legal. Madrid: Biblioteca Nueva, 2015, p. 126.
[6] SEIJO MARTÍNEZ, Dolores. La violencia doméstica: repercusiones en los hijos. In: FARIÑA, Francisca, ARCE Ramón, BUELA-CASAL Gualberto (eds.). Violencia de género: tratado psicológico y legal. Madrid: Biblioteca Nueva, 2015, p. 126-7.
[7] SEIJO MARTÍNEZ, Dolores. La violencia doméstica: repercusiones en los hijos. In: FARIÑA, Francisca, ARCE Ramón, BUELA-CASAL Gualberto (eds.). Violencia de género: tratado psicológico y legal. Madrid: Biblioteca Nueva, 2015, p. 127.
[8] SEIJO MARTÍNEZ, Dolores. La violencia doméstica: repercusiones en los hijos. In: FARIÑA, Francisca, ARCE Ramón, BUELA-CASAL Gualberto (eds.). Violencia de género: tratado psicológico y legal. Madrid: Biblioteca Nueva, 2015, p. 127.
[9] SEIJO MARTÍNEZ, Dolores. La violencia doméstica: repercusiones en los hijos. In: FARIÑA, Francisca, ARCE Ramón, BUELA-CASAL Gualberto (eds.). Violencia de género: tratado psicológico y legal. Madrid: Biblioteca Nueva, 2015, p. 127.
[10] FARIÑA RIVERA, Francisca. ARCE FERNÁNDEZ, Ramón. SEIJO MARTINEZ, Dolores. Programa de ayuda a hijos que han vivido violencia familiar. In: FARIÑA, Francisca, ARCE Ramón, BUELA-CASAL Gualberto (eds.). Violencia de género: tratado psicológico y legal. Madrid: Biblioteca Nueva, 2015, p. 262-3.


Alice Bianchini - Doutora em Direito penal pela PUC/SP. Mestre em Direito pela UFSC. Coeditora do portal www.atualidadesdodireito.com.br. Integra a Comissão da Mulher Advogada - OAB/Federal.

https://professoraalice.jusbrasil.com.br/artigos/493876113/os-filhos-da-violencia-de-genero?utm_campaign=newsletter-daily_20170831_5912&utm_medium=email&utm_source=newsletter

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