quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A noção de interesse público

O segundo problema parte da própria fundamentação do interesse público. É notório que maior parte da doutrina brasileira sustenta a presença da supremacia do interesse público como princípio implícito ao texto constitucional. A forte participação de renomados doutrinadores na defesa deste princípio parece o tornar algo incontestável. Na parte que toca este texto, é o principal fundamento das cláusulas exorbitantes.
A problemática, entretanto, reside na própria noção de interesse público e, em qual medida, pode ser protegido o interesse individual e se realmente pode ser considerada uma norma-princípio: a supremacia do interesse público perante o privado.
Quanto à noção, Celso Antônio Bandeiro de Mello rejeita qualquer dissociação completa entre os conceitos (público e privado). Para este autor (2010, p.181), a noção de interesse público não é tão simples, não podendo ser considerada uma categoria contraposta à de interesse privado, individual. É, no entanto, para o autor, acertado afirmar que o interesse público representa o interesse do todo, do conjunto social, não se confundindo ainda com o somatório dos interesse individuais; todavia não é autônomo, posto que não é desvinculado dos interesses de cada umas das partes que compõem o todo. Para Mello (2010, p.182) interesse público nada mais é que “a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da sociedade”.
Outrossim, defende Celso Antônio Bandeiro de Mello (Op. Cit., p.182) que não existe coincidência necessária entre interesse público e interesse do Estado e demais pessoas de direito público, posto que o Estado, além de subjetivar aquele interesse, é pessoa jurídica, no universo jurídico concorrente com todos os demais sujeitos de direito, e pode ter interesses que lhe são particulares, concebidos em suas meras individualidades encarnadas no Estado enquanto pessoa. Contudo, esses últimos interesses não são públicos e similares, não iguais, aos individuais, pois o Estado só pode defender seu interesse privado, secundário, quando não se chocar com os interesses públicos propriamente ditos, primários, e coincidir com a realização deles.
Gustavo Binenbojm (2008, p.70) critica a posição do clássico doutrinador supracitado questionando o sentido da prevalência de um interesse se um não é mais que uma dimensão do outro. Afirma, ainda, que “a dita norma de prevalência não esclarece a questão mais importante da dicotomia público / privado [...]: qual a justa medida da prevalência de um sem que haja a ablação total do outro?”.
Para Hely Lopes Meirelles, interpretado por Gustavo Binenbojm (Op. Cit., p.71), “o direito privado e público encontrariam na relação entre seus sujeitos de direito a sua principal distinção, visto que o primeiro basear-se-ia na paridade entre referidos sujeitos, [..] o segundo pautaria dita relação no princípio da Supremacia do interesse público sobre o privado”. Nota-se que estão bastante difundidas na doutrina argumentações que procuram justificar a existência de privilégios e prerrogativas para a Administração Pública com base no referido interesse público, enquanto princípio sempre a ser observado.
Defende-se que as normas administrativas, na iminência de um conflito entre o direito do indivíduo e o da coletividade, sustentam a prevalência do interesse público, umas vez que a finalidade crucial da Administração Pública é a persecução do bem comum, bem-estar social.
Todavia, a ideia, de sempre prevalência do interesse público perante o particular, parece confrontar-se com a técnica de ponderação de princípios, enquanto parâmetro para a definição de norma-princípio, e a própria Constituição Federal - enquanto garantidora e também restritiva de direitos individuais, como artéria sensível da própria dignidade da pessoa humana -, aponta claramente não ser possível que um considerado princípio afaste totalmente outro.
Com efeito, na Constituição são encontrados os fundamentos para a restrição de direitos individuais em prol de interesses da coletividade. Ora, se é a Constituição que, explícita ou implicitamente, estabelece quando e em que medida direitos individuais podem ser restringidos, (I) o fundamento da restrição é a norma constitucional específica, e não o dito princípio e (II) a medida da restrição, conforme permitida pela Constituição, é dada por uma norma de proporção e preservação recíproca dos interesses em conflito, e não de prevalência a priori do coletivo sobre o individual (BINENBOJM, 2008, p.75).
Observando que a Constituição brasileira está voltada para a proteção dos interesses individuais com base em princípios, considerando-se a supremacia do interesse público também um princípio, seria insustentável a subsunção do primeiro, pois o estaríamos considerando como uma mera norma-regra, afastando-se completamente da ponderação, ainda que nenhum seja efetivamente retirado do ordenamento jurídico diante de uma colisão. Todavia, a doutrina majoritária parece sustentar que na presença de um conflito entre o interesse individual e o público, deve esse último sempre prevalecer. Para Binenbojm (Op. Cit., 76), interpretando Humberto Bergman Ávila, “fica claro o divórcio entre a regra abstrata de prevalência absoluta em favor do interesse público e a aplicação gradual dos princípios proporcionada pelo caráter abstrato dos mesmos”.                                                          
Na esteira da incompatibilidade conceitual, cumpre ressaltar que “o princípio da supremacia do interesse público” também não encontra respaldo normativo, por três razões tratadas pelo autor: a uma, por não decorrer da análise sistemática do ordenamento jurídico; a duas, por não admitir a dissociação do interesse privado, colocando-se em xeque o conflito pressuposto pelo “princípio”; e a três, por demonstrar-se incompatível com os postulados normativos erigidos pela ordem constitucional (BINENBOJM apud HUMBERTO BERGMANN ÁVILA, 2008, p. 76).
Moreira Neto (2007, p.438), interpretando Sabino Cassese, destaca que “nenhum interesse é, em tese, absoluto, nem goza, essencialmente, de supremacia, pois a sua proteção jurídica dependerá sempre do juízo de ponderação de interesses”.
Há uma interessante ponte entre o interesse público e a função social, no sentido de buscar uma certa proporcionalidade entre os interesses das partes na relação de um contrato, observando-se a dicotomia público / privado. Todavia, ainda que haja inúmeros argumentos em defesa da supremacia do interesse público, ainda que a doutrina majoritária defenda privilégios para a Administração Pública com aquele fundamento, o interesse privado não pode severamente ser ignorado, tolhido.
Não há como conciliar no ordenamento jurídico um “princípio” que, ignorando as nuances do caso concreto, pré-estabeleça que a melhor solução consubstancia-se na vitória do interesse público. O “princípio” em si afasta o processo de ponderação, fechando as portas para os interesses privados que estejam envolvidos. Dê-se destaque, outrossim, ao fato da fórmula pré-concebida presente no “princípio” ir de encontro ao dever de fundamentação (“dever de explicitação das premissas”) a que se sujeitam os Poderes do Estado (BINENBOJM, 2008, p.78).
Não parece suficiente crer que a Administração Pública estaria atendendo a função social do contrato sob o fundamento de uma não bem definida noção de interesse público.
Interesse Público não pode tudo comportar. Ao se falar em interesse público, necessidade pública, pretende-se, reiteradas vezes, preencher o conceito de qualquer maneira. É isso que se vem passando na prática. Entretanto, interesse público, necessidade pública, não são palavras vazias de conteúdo, palavras que não tenham núcleo semântico mínimo. Não se pode dizer que o interesse público é o escolhido pelo administrador. Interesse Público só pode ser o qualificado pela norma. Interesse público nada tem a ver com o interesse do administrador (FIGUEIREDO, 2008, p.531).
RAMOS, Luiz Gustavo de Oliveira. A função social e a inoponibilidade da exceptio non adimpleti contractus nos contratos públicos. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3779, 5 nov. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25678>. Acesso em: 7 nov. 2013.

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