Para Carvalho Filho (2009, p.189), a exceção do contrato não cumprido
significa que “uma parte contratante não pode exigir da outra o
cumprimento de sua obrigação sem que ela mesma tenha cumprido a sua”.
Embora a conceituação para a esfera do direito público pouco
diferencie-se da privada, a cláusula naquela seara é mitigada em relação
ao particular contratado, não podendo esquivar-se da prestação de
serviço ajustado ainda que a Administração mantenha-se inadimplente.
O sustento teórico, fundamento mais exteriorizado, é o princípio da
continuidade, derivado da supremacia do interesse público, sendo mais
importante que o interesse particular, no entender de Carvalho Filho
(Op. Cit., p. 189).
A exceção do contrato não cumprido – exceptio non adimpleti contractus -, usualmente invocada nos ajustes de Direito Privado, não se aplica, em princípio, aos contratos administrativos quando a falta é da Administração. Esta, todavia, pode sempre arguir a exceção em seu favor, diante da inadimplência do particular contratado [...] Impede-o (o particular, grifo nosso) o princípio maior da continuidade do serviço público, que veda a paralisação da execução do contrato mesmo diante da omissão ou atraso da Administração no cumprimento das prestações a seu cargo (MEIRELLES, 2010, p.220).
Quanto ao cabimento da exceção do contrato não cumprido, é interessante
conhecer a posição da Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Nancy
Andrighi, que no informativo 430 (abril de 2010) desta corte, expôs:
[…] segundo a doutrina, a exceção de contrato não cumprido somente pode ser oposta quando a lei ou o contrato não especificar a quem primeiro cabe cumprir a obrigação. Assim, estabelecido em que ordem deve dar-se o adimplemento, o contratante que primeiro deve cumprir suas obrigações não pode recusar-se ao fundamento de que o outro não satisfará a que lhe cabe, mas o que detém a prerrogativa de por último realizar a obrigação pode sim postergá-la, enquanto não vir cumprida a obrigação imposta ao outro [...]. Anote-se que se deve guardar certa proporcionalidade entre a recusa de cumprir a obrigação de um e a inadimplência do outro, pois não se fala em exceção de contrato não cumprido quando o descumprimento é mínimo e parcial (REsp 981.750-MG).
A inoponibilidade da exceção do contrato não cumprido em face da
Administração Pública como regra é um dos notáveis exemplos de
demonstração de poderes, privilégios, expressão de Carvalho Filho (2009,
p.185), admitidos aos contratos públicos, cuja teorização buscou
fundamento na proteção ao interesse público e a não sujeição à possíveis
prejuízos que porventura venham existir “se, cumprindo sua parte a
priori, o particular não o faria a posteriori”, admitindo-se que a
Administração obste-se do “dever de cumprir suas obrigações sem que o
particular contratado o faça anteriormente”, como elucida Padilha
(2009).
Até pouco tempo atrás, o contratado submetia-se a uma imposição total
de não invocar a exceção contra a Administração Pública e continuava
assumindo os riscos e ônus da prestação do serviço público, execução de
obra ou fornecimento diante do interesse público que não poderia, em
hipótese alguma, ser maculado. A regra, portanto, era que a
Administração poderia invocar em absoluto esta exceção face ao
contratado, mas o inverso era defeso, mesmo nos contratos da
administração, regidos pelo direito privado.
Entretanto, o rigor da inoponibilidade da Exceptio Non Adimpleti
Contractus contra a Administração, como explicitam Meirelles (2008,
p.219) e Di Pietro (2008, p.260), com o passar do tempo veio sendo
atenuado pela doutrina e jurisprudência em alguns casos. Citam: 1)
quando a inadimplência do Poder Público cria um encargo extraordinário e
insuportável por um longo tempo, forçando o contratado a financiar o
objeto do contrato por conta própria; 2) quando a inadimplência da
Administração impeça de fato e diretamente a execução do serviço ou
obra, nas situações que exigem primeiro uma atuação daquela, sem a qual o
contrato não possa caminhar; 3) quando o contrato não tenha por objeto a
execução de um serviço público, não se aplicando o princípio da
continuidade.
Essa doutrina sofre hoje algum abrandamento, pois já se aceita que a Exceptio Non Adimpleti Contractus seja invocada pelo particular contra a Administração, embora sem a mesma amplitude que apresenta no direito privado. Nesse, os interesses das partes são equivalentes e se colocam no mesmo pé de igualdade; no contrato administrativo, os interesses das partes são diversos, devendo, em determinadas circunstâncias, prevalecer o interesse público que incube, em princípio, à Administração proteger. Por isso, o particular deve, como regra, dar continuidade ao contrato, evitando de, sponte sua, paralisar a execução do contrato, já que a rescisão unilateral é prerrogativa da Administração; o que o particular pode e deve fazer, até mesmo para acautelar seus interesses, é pleitear a rescisão, administrativa ou judicialmente, aguardando que ela seja deferida (DI PIETRO, 1998, p.232).
A legislação geral dos contratos públicos, Lei 8.666 de 1993, traz as
situações em que o particular poderá suspender a execução do contrato no
Art. 78, incisos XV e XVI. Porém, a doutrina e jurisprudência não
permitiram que este rol fosse considerado taxativo, e ao contrário,
adicionaram construções que também proporcionariam ao particular o
direito invocar tal exceção. Segundo Carvalho Filho (2009, p.190), em
situações especiais,
se o prejudicado, mesmo antes do prazo (90 dias, grifo nosso), ficar impedido de dar continuidade ao contrato por força da falta de pagamento, tem ele direito à rescisão do contrato com culpa da Administração. Fora daí, é admitir-se a ruína do contratado por falta contratual imputada à outra parte, o que parece ser inteiramente iníquo e injurídico.
Entretanto, embora autorizada pela legislação ou pela doutrina /
jurisprudência, entende-se que esta suspensão não poderá acontecer logo
que a Administração Pública suste sua contraprestação. Deve, em
princípio, ocorrer:
[...] após o particular requerer, administrativa ou judicialmente, podendo cumular com a rescisão do contrato e pagamento de perdas e danos, dando continuidade à sua execução, até que obtenha ordem da autoridade competente (administrativa ou judicial) para paralisá-lo. Isso porque a Lei nº 8.666 só prevê a possibilidade de rescisão unilateral por parte da Administração, nos termos do seu art. 79, inciso I, não dando tal faculdade ao contratado (SANTOS, 2009).
Interessante notar que para alguns doutrinadores a via judicial é a
única saída. Neste sentido enfatiza Carvalho Filho (2009, p.190):
Ocorrendo tal situação excepcional, o interessado pode recorrer à via judicial e, por meio de ação cautelar, formular pretensão no sentido de lhe ser conferida tutela preventiva imediata, com o deferimento de medida liminar para o fim de ser o contratado autorizado a suspender o objeto do contrato, evitando-se que futuramente possa a Administração inadimplente imputar-lhe conduta culposa recíproca. Segundo nos parece, esse é o único caminho a ser seguido para impedir que a Administração, que está descumprindo obrigação contratual, se locuplete de sua própria torpeza.
Outrossim, é relevante perceber que a jurisprudência vem ampliando a
necessidade de instauração de um processo administrativo, antes do Poder
Público promover a rescisão unilateral do contrato. Há a necessidade de
averiguar primeiro a responsabilidade contratual, sob pena de
enriquecimento ilícito de qualquer das partes, o que é amplamente vedado
pelo ordenamento jurídico. Assim podemos extrair do seguinte julgado:
AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. SERVIÇOS DE PAVIMENTAÇÃO ASFÁLTICA. RESCISÃO UNILATERAL DO CONTRATO PELO MUNICÍPIO, SEM A INSTAURAÇÃO DE REGULAR PROCESSO ADMINISTRATIVO. PROVA NOS AUTOS A INDICAR DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL DA ADMINISTRAÇÃO. OBRIGAÇÃO DO MUNICÍPIO EM SALDAR A PARTE CONCLUÍDA DA OBRA. PROVA DOCUMENTAL E TESTEMUNHAL DA PRESTAÇÃO PARCIAL DA OBRA CONTRATADA.
Havendo prova substancial da dívida, e reconhecimento por parte da Administração, por parte do Secretário Municipal responsável à época dos fatos, confirmando ter a contratada concluído parte da obra, não pode esta última furtar-se ao pagamento do serviço prestado, na parte concluída, sob o argumento de rescisão unilateral do contrato, sem a realização de procedimento administrativo para tanto, sob pena de configurar caso de enriquecimento ilícito da Administração. Prova dos autos a indicar a inadimplência de obrigações assumidas pela Municipalidade, no tocante a preparação do terreno para a realização das obras. Aplicação do princípio da exceptio non adimpleti contractus. Ante a verificação da culpa concorrente do Município para a inexecução do contrato, impõe-se a ele o dever de liberar os valores caucionados pela autora, como garantia do contrato. Procedência parcial da ação. APELAÇÃO NÃO PROVIDA. SENTENÇA CONFIRMADA EM REEXAME NECESSÁRIO, COM EXPLICITAÇÃO. (Apelação e Reexame Necessário Nº 70013774120, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Henrique Osvaldo Poeta Roenick, Julgado em 26/04/2006).
Não é novidade que certas atuações de gestores públicos possam trazer à
tona interesses no mínimo diversos dos relevantes à coletividade, porém
revestidos por um manto chamado “interesse público”. Valendo-se da
estrutura estatal e da política representativa, os gestores podem fazer
prevalecer, especialmente em forma de eloquentes discursos, os próprios
interesses, sendo de difícil prova a afronta à finalidade pública.
Daí já se aponta uma importante razão para submeter a Administração
Pública à necessidade de instauração de um processo administrativo antes
de invocar, especialmente, a rescisão unilateral do contrato,
produzindo-se prova da concretude do interesse público, ou seja, da real
conveniência e oportunidade, da impropriedade da prestação do
particular e do prejuízo ou dano à sociedade, dentre outras situações
que poderiam ser levantadas.
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