(...)
Para dar continuidade à indagação aqui proposta, é de grande importância entender, inicialmente, o poder familiar e seu reflexo no processo de adoção, uma vez que esse confronto ajudará na elucidação dos questionamentos objetos deste capítulo.
O poder familiar “é o exercício da autoridade dos pais sobre os filhos, no interesse destes”. (LÔBO, 2011, p. 295). Como previsto no artigo 21 do Estatuto da Criança e do Adolescente, este poder será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, perdurando até a maior idade dos filhos ou até a emancipação destes, quando então se extinguirá. Nesse contexto, o poder familiar pode ser definido como:
[...] um complexo de direitos e deveres pessoais e patrimoniais com relação ao filho menor, não emancipado, e que deve ser exercido no melhor interesse deste último. Sendo um direito-função, os genitores biológicos ou adotivos não podem abrir mão dele e não o podem transferir a título gratuito ou oneroso. (MACIEL, 2010, p. 82).
A adoção atribui a condição de filho ao adotado, em que se cria um vínculo de filiação, do qual repercutem diversas responsabilidades, dentre as quais se destaca o poder familiar. Contudo, esse poder parental não advém da adoção em si, mas da relação de filiação existente entre pais e filhos que pode ser constituída mediante a adoção, isto é, “decorre tanto da paternidade natural como da filiação legal ou socioafetiva” (DIAS, 2013, p. 436). Por isso é que se afirma que os pais biológicos, naturalmente, a partir do nascimento com vida de seu filho, já possuem esse poder familiar.
Nesse caso, como uma das características do poder parental é a irrenunciabilidade e a intransferibilidade, não há como se transferir esse poder-dever dos pais biológicos aos adotivos, sendo necessário, primeiramente a extinção ou a perda do poder familiar dos genitores para que a adoção possa constituir um novo vínculo e consequentemente um novo poder familiar.
Na perspectiva do poder familiar, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 22, delega aos pais “o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais”. O Código Civil, por sua vez, apresenta um rol de competências nos incisos do artigo 1.634 que constituem o pleno exercício do poder familiar. Embora nesse extenso rol não tenha sido elencado “o que talvez seja o mais importante dever dos pais com relação aos filhos: o dever de lhes dar amor, afeto e carinho.” (DIAS, 2013, p. 440).
No entanto, nas palavras de Paulo Lôbo (2011, p. 302), os deveres provenientes do poder familiar constantes no ECA e na Constituição somam-se aos elencados pelo Código Civil.
Existem, apesar de tudo, situações em que os pais podem perder o poder familiar, em razão de atitudes suas que ponham “em perigo permanente a segurança e a dignidade do filho”. (LÔBO, 2011, p. 308). Destacando-se, no entanto, que a perda do poder familiar tem um caráter sancionatório e protetivo, não se confundindo com sua suspensão ou sua extinção, vez que a suspensão consiste em uma medida menos gravosa e de caráter temporário, sujeita a revisão. E a extinção, por sua vez, ocorre em razão de situações incompatíveis com a manutenção do poder parental em face dos filhos e, no mais das vezes, não rompe o vínculo de filiação e parentalidade existente. (DIAS, 2013, p. 444-446). Na interpretação do artigo 1.635 do Código Civil, observa-se que a perda do poder familiar é uma das hipóteses que levam à extinção do mesmo.
A respeito do tema, dispõe Maciel (2010, p. 135):
[...] a perda ou a destituição do poder familiar é uma das formas de extinção do poder familiar (art. 1635, V, do CC) que ocorre dos casos de castigos imoderados, abandono, atos contrários à moral e aos bons costumes, incidência reiterada nas faltas antecedentes e, ainda, quando comprovado o descumprimento injustificado dos deveres inerentes ao poder familiar (art. 24 do ECA).
A mesma autora complementa, ainda, explicando que a destituição do poder familiar depende de uma decisão judicial condenatória, a qual deve ser proferida em ação própria, dando aos pais, portanto, o direito ao contraditório.
Além dos descumprimentos injustificados quanto aos deveres de guarda, educação e sustento, a legislação civil traz outras hipóteses que ensejam na perda do poder familiar, quais sejam castigar imoderadamente o filho, deixá-lo em abandono, praticar atos contrários à moral e aos bons costumes e incidir reiteradamente nas faltas que levam à suspensão do poder parental, todas previstas no artigo 1.638 do Código Civil. Ademais, como previsto nos artigos 98 e 101 do ECA, a falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável, são causas que podem levar ao acolhimento institucional.
De acordo com pesquisa realizada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que fez inspeção em 2.370 entidades brasileiras de acolhimento institucional, foi constatado que, dentre as principais causas de acolhimento de crianças e adolescentes, a negligência dos pais ou responsáveis encontra-se em primeiro lugar, seguido por alcoolismo e dependência química dos pais, abandono e violência doméstica. Na interpretação dos referidos dados, a pesquisa destacou, ainda, o seguinte:
Em todos os gráficos, a violência doméstica e a sexual praticada pelos pais ou responsável ocupam as primeiras posições dentre as causas que levam as crianças e adolescentes aos serviços de acolhimento. Dados recolhidos pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAM) do Ministério da Saúde em 2011 e divulgados no Mapa da Violência em 2012 registram que a maioria esmagadora dos atos de violência cometidos contra crianças e adolescentes, em todas as faixas etárias, acontecem dentro de casa. O maior número de vítimas está entre 1 a 4 anos: 78,1% dos atos de violência ocorrem dentro de sua própria residência. (BRASIL, 2013, p. 46).
O Relatório sobre Violência e Saúde apresenta quatro formas de maus-tratos que podem ser cometidos por parte dos responsáveis pelos cuidados com os infantes: o abuso físico, sexual, emocional e a negligência. Destacando, contudo, que a negligência não pode ser confundida com as circunstâncias de pobreza, vez que, diferentemente destas, a negligência apenas se configura nos casos “onde recursos razoáveis estejam disponíveis para a família ou responsável” (KRUG, et al, 2002, p. 60) e, mesmo assim, insistem em não utilizá-los em favor das crianças ou adolescentes.
O que deve ser veementemente verificado, uma vez que o ECA proíbe a suspensão ou perda do poder familiar por mera falta ou carência de recursos materiais (Art. 23). Ademais, a violência doméstica contra crianças e adolescentes gera consequências severas às vítimas, impedindo seu desenvolvimento saudável, conforme se depreende do fragmento adiante:
As pesquisas revelaram que a exposição de crianças e adolescentes à violência doméstica pode trazer consequências múltiplas e severas às vítimas. Estudos comprovam que a violência afeta o desenvolvimento emocional, comportamental, social, sexual e cognitivo das vítimas, interferindo negativamente no seu bem-estar e qualidade de vida, e as sequelas podem persistir ao longo da fase adulta. (BARROS; FREITAS, 2015, p. 105).
No estudo realizado por Fukuda, Penso e Santos (2013, p. 79-84) sobre o perfil sociofamiliar de crianças e adolescentes com múltiplos acolhimentos institucionais em Brasília/DF, entre 2007 e 2009, foram identificados 248 motivos para o acolhimento institucional, sendo os de maior frequência maus-tratos (19,8%), vivência de rua (18,5%) e negligência (17,7%). Ficou evidenciado, também, uma duração média de 3 anos das medidas de acolhimento.
Nesse sentido, acerca dos resultados gerais dessa pesquisa, concretizou-se o entendimento de que as múltiplas medidas de acolhimento foram caracterizadas por uma fragilidade familiar e social em razão da falta de assistência do Estado, gerando a necessidade de que os pais entregassem seus filhos às instituições de acolhimento por falta de recursos financeiros e violência. Em contrapartida, na pesquisa realizada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (BRASIL, 2013, p. 43-46) a carência de recursos materiais como motivo de acolhimento não consta nas primeiras colocações, ocasião em que, no ano de 2012, apareceu em 32% dos casos, tanto nos abrigos quanto nas casas-lares; em 2013, apareceu em 26% dos casos nos abrigos e em 21% nas casas-lares. Ou seja, sempre abaixo do número de casos relacionados à negligência, dependência química dos responsáveis, abandono e violência.
Como muito bem evidencia Kreuz (2012, p. 50-51), boa parte dos acolhimentos não ocorrem em razão de uma única causa. Geralmente a pobreza é uma das causas, sendo acompanhada da negligência, falta de higiene, alcoolismo, drogas, maus-tratos, abandono escolar, entre outros. Inclusive, informa que, nos últimos tempos, tem ocorrido um aumento significativo de acolhimentos institucionais em razão de dependência química e do alcoolismo dos responsáveis, e que nessas circunstâncias:
[...] raros são os casos que permitem o retorno dessas crianças às suas famílias biológicas. Os tratamentos existentes para os dependentes químicos, quando aceitos, normalmente são de longa duração, o que faz com que os já fragilizados vínculos afetivos existentes entre pais e filhos se enfraqueçam ainda mais, quando não se rompem definitivamente. Além do tempo prolongado, os resultados desses tratamentos são incertos, não têm eficácia, em grande parte dos que a eles se submetem.” (KREUZ, 2012, p. 50).
É importante destacar que não é apenas a situação de vulnerabilidade, acima demonstrada, que prejudica o desenvolvimento saudável da criança/adolescente. O acolhimento institucional prolongado, impedindo o infante de conviver em ambiente familiar, também propicia complicações significantes.
Diante desse contexto, é importante verificar quais os reais motivos que levam uma criança ou adolescente às instituições de acolhimento. Isto é, se a situação de vulnerabilidade da criança ocorreu somente em razão de pobreza da família ou se decorrente de uma família completamente desligada de vínculos afetivos para com o infante. Pois, a partir desse entendimento inicial, será mais fácil compreender quando a reinserção na família biológica é uma possibilidade evidente ou se a preparação para a adoção é o melhor caminho.
(...)
ALBUQUERQUE, Cecília. Adoção excepcional: um confronto entre o biológico e o afetivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5181, 7 set. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/60108>. Acesso em: 8 set. 2017.
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