sábado, 7 de abril de 2018

Contrato oneroso de cessão temporária uterina, por quê não?

Publicado por Sara Próton

Se as coisas são inatingíveis… ora! Não é motivo para não querê-las… - Mario Quintana

Nos últimos anos o planejamento familiar em muito se alterou, tanto no retardamento da concepção dos filhos, quanto pela escolha em não tê-los. Entretanto, a vontade subjetiva de diversos casais caminha em torno da perpetuação dos seus genes, numa espécie de continuidade da própria existência, bem como do amor expandido pelos companheiros.

Biologicamente e por vezes alguma condição física impede a realização do sonho de ter filhos, o que gera frustrações e danos a harmonia conjugal. Em 1963, no Japão, encontram-se os primeiros relatos clínicos sobre o empréstimo de útero, em casos de mulheres com histerectomia decorrente de câncer, mas a cessão uterina se tornou conhecida apenas em 1988, com o caso “Baby M”, que ocorreu nos Estados Unidos. William e Elizabeth Stern, casal de cientistas, assinaram um contrato de locação de útero com Mary Beth Whitehead, cuja valor era de 10.000 dólares somados a 2.000 de despesas. Porém, mesmo diante do contrato, Mary não quis entregar a criança. O casal recorreu à justiça e a sentença lhes foi favorável, porquanto as condições financeiras seriam mais benéficas a criança.

O empréstimo de útero perpassa histórias, épocas, religiões e culturas, até mesmo a Bíblia, no livro de Gêneses retrata esse ajuste, quando Sarai (Sara), esposa de Abrão, pede que Hagar, sua criada, engravide de seu marido, para lhe conceber um filho, por encontrar-se incapaz de gerar. Diversos países, como Israel, Índia, Rússia e Ucrânia legalizaram o empréstimo de útero, enquanto no Brasil, apenas o Conselho Federal de Medicina regulamenta o procedimento, em casos específicos e isento de qualquer segurança jurídica, vez que a lei é omissa.

Mas afinal, o que é a cessão temporária uterina? Também chamada de cessão temporária de útero ou maternidade de substituição, é uma técnica de reprodução humana assistida (RHA) homóloga ou heteróloga, de inseminação artificial ou in vitro (FIV), em que o material genético é implantado na receptora, cujo procedimento é equivocadamente conhecido como barriga de aluguel.
Processo mediante o qual uma mulher gesta embriões não relacionados geneticamente com ela, gerados através de técnicas de fecundação in vitro, com gametas de um casal que serão os pais biológicos. (FINI e DAMOTA, 2003, p. 147)

Existem duas modalidades de empréstimo, na primeira a mulher é a receptora ou portadora, emprestando o seu útero, e na segunda modalidade, é mãe de substituição, pois além de emprestar o útero, cede os seus óvulos, espécie vedada pelo Código de Ética Médica (Resolução CFM 1.358/92, 
IV – DOAÇÃO DE GAMETAS OU PRÉ-EMBRIÕES atualizada pela Resolução CFM 2.168/2017).

A receptora poderá acolher o material genético da mãe, caso ela forneça o óvulo, ou de doadora anônima; o material genético pode ser do pai, ou também de um anônimo; ambos, óvulo e espermatozoide podem ser de anônimos; o material genético pode ainda decorrer de reprodução póstuma(quando colhido antes da morte, desde que autorizada e registrada previamente, a vontade do homem, mulher ou ambos) e inúmeras possibilidades.

Apesar dessas combinações genéticas abundantes, o empréstimo de útero no Brasil tem caráter exclusivamente médico e previsto apenas na Resolução 2.121 de 2015 do Conselho Federal de Medicina. Entre as hipóteses permissivas da citada resolução, encontram-se a infertilidade por ausência de útero congênita ou adquirida, empecilhos uterinos para manter o feto, contraindicações médicas (exemplo, diabetes com alta taxa de glicemia), transmissão de doença grave a criança, incapacidade de findar a gravidez e, dilatado a casais homoafetivos. Restringe ainda, à gratuidade e parentesco entre as partes até o quarto grau (antes da Resolução CFM 2.168/2017, limitava-se ao segundo grau).

Ao caminhar a margem dos parâmetros comuns, diversas discussões e hipóteses são arguidas e poucas são respondidas pelo ordenamento jurídico pátrio. A ausência de regulamentação jurídica, que não acompanha a evolução da biomedicina, permite maiores vulnerabilidades aos casais que anseiam pela chegada do filho, bem como abusos e má-fé pela receptora, o que pode ocasionar aliás, responsabilidade civil do Estado por ato legislativo, quer dizer, omissão legislativa.
Inobstante a validade dos contratos gratuitos, é necessário pontuar que os contratos onerosos são mais seguros para aqueles que os realizam a fim de que os prejuízos sejam evitados, afinal, o legislador quer acautelar quem poderá sofrer um prejuízo injusto e não aquele que eventualmente será privado de um ganho. (FARIAS e ROSENVALD, 2015, p. 239)

O contrato oneroso da cessão temporária de útero viabiliza soluções adequadas quando normatizado, e a sua expansão para outras circunstâncias, por exemplo, mulheres que passaram por abortos anteriores e por traumas e medo de uma nova perda, não querem gerar; histórico familiar de graves desconfortos na gravidez; fobia de cesárea, vez que fisiologicamente não é possível assegurar que o parto será natural; sofrimentos hormonais e sexuais que afligem a vida conjugal do casal durante a gravidez, dentre outros.

Não há que se falar em violação ao princípio da dignidade humana, vez que a onerosidade do contrato não é pela criança, mas pelos infortúnios suportados durante a gestação e a utilização do útero alheio, ou seja, o objeto do contrato é a capacidade reprodutiva. Também não há que se falar em vedação constitucional sob o viés comercial, comparando o empréstimo de útero com a venda de órgão, pois o pagamento é destinado ao serviço de carregar em seu corpo um filho para terceiros, cuja mera utilização não gera problemas, assim como a concordância com contrato continuaria uma faculdade da receptora.
Quanto a não poder haver remuneração pelo aluguel do útero, não podemos comparar a utilização de uma parte do corpo com a doação de um órgão do corpo humano; a simples utilização do útero da mulher saudável não causa problemas, mas a doação de um rim de pessoa viva pode causar problemas no futuro, porque o rim que não foi retirado ficará sobrecarregado, e além do mais, retira-se um órgão de pessoa viva ou morta para salvar uma vida ou amenizar, acabar com o sofrimento de alguém. Já o aluguel do útero é para satisfazer o desejo de um casal, não é um motivo vital, relevante para a saúde de alguém, um casal pode muito bem não ter filhos como também para satisfazer este desejo pagar por isso, ou adotar. (ALMEIDA, 2000, p.105)

A Lei 11.804/2008 assegura a receptora, ainda que gratuita, alimentos gravídicos e auxílio financeiro do casal, logo, não se pode verificar inteiramente o caráter altruísta de toda e qualquer cessão uterina. Qualquer valor recebido é ínfimo perto da alegria de ser mãe, cujo suceder do pagamento é um mero símbolo de gratidão e troca pelos ônus suportados durante meses, com limites e consequências profissionais, alimentares, sexuais, físicas, estéticas, hormonais e psicológicas.
Tal como ocorre em qualquer outra profissão, a locadora do útero seria uma profissional, com direito à recompensa. O fato de a remuneração ser feita no ato de entrega do bebê não significa que o mesmo esteja comprado, é próprio de um serviço com certas especificidades. (HRYNIEWICZ e SAUWEN, 2008, p. 108)

Faz-se mister ressaltar ainda, que o Estatuto da Criança e do Adolescente não proíbe o contrato oneroso de cessão temporária de útero, mas a entrega do próprio filho ou pupilo a terceiro, mediante recompensa (artigo 238, Lei 8.069/90). A natureza jurídica é amplamente discutida, mas o presente contrato, não se encontra entre os de locação e tampouco de comodato.
O princípio da beneficência representa ao mais que o hipocrático primum non nocere, ou seja, o princípio do não maléfico, pois não comporta somente abster-se de prejudicar, mas implica, sobretudo, o imperativo de promover a beneficência. (SGRECCIA, SP, p. 167)

A insegurança jurídica não deve ser aceita, nem a inércia do legislativo um impeditivo à realização de sonhos e efetivação dos direitos reprodutivos, tal qual um fluido planejamento familiar.
Artigo completo pendente de publicação

REFERÊNCIAS:
ALMEIDA. Aline Mignon. Bioética e Biodireito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Famílias. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2015.
FINI, Paulo; DAMOTA, Eduardo Leme Alves. Útero de Substituição. Reprodução Humana Assistida. São Paulo: Atheneu, 2003
HRYNIEWICZ, Severo; SAUWEN, Regina Fiuza. O direito “in vitro”: da bioética ao biodireito. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008
SPGRECIA, Elio. Manual de Bioética. São Paulo: Layola, 1996

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