Uma nova modalidade de prescrição aquisitiva surgiu recentemente, e necessita ser mais bem esclarecida.
O artigo 1.240-A do Código Civil, incluído pela Lei 12.424, de
16.06.2011, visou regularizar questões habitacionais, estabelecendo
determinados casos em caso de separação de fato ou até de divórcio, o
cônjuge que continuou a residir no bem abandonado por seu ex-consorte
pode pleitear a usucapião, desde que permaneça no imóvel pelo prazo de
dois anos:
“Código Civil
Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.”
O principal objetivo da inserção do referido dispositivo legal é
proporcionar a regularização de imóveis encravados e pendentes de
documentação.
Foi certamente visando à função social da propriedade, que o legislador
resolveu destinar ao cônjuge que habita o bem o direito de delimitar o
seu futuro, adquirido a parte do imóvel que caberia ao outro
companheiro.
Mas é claro que este dispositivo só foi inserido na codificação civil
em razão dos princípios basilares instituidores na nova normativa.
1.Problema
Pensando no caso específico dos cônjuges separados e da regularização
imobiliária para a continuação da família, os legisladores acharam uma
saída política para legitimar o estado da posse dos imóveis abandonados.
Influenciado pela situação familiar e também pelo amparo aos filhos,
seja por traumas na relação ou até por uma reconstrução de vida, no mais
das vezes, o ex-consorte não se vale do direito de propriedade,
elastecendo no tempo uma situação de abandono no bem.
Ao abandonar o bem, em muitos casos, o outro cônjuge não regulariza a
posse do consorte, seja lhe autorizando o comodato ou o cobrando pelo
uso exclusivo.
Ocorre que surgia uma situação de instabilidade para o cônjuge que
ficou com o imóvel, pois este não poderia alienar o bem, investir nele
ou simplesmente regularizar uma situação de posse exclusiva.
O cônjuge possuidor também não poderia, anteriormente, regularizar a
situação, pois não se pode adquirir pelo uso, um bem que lhe pertence.
É o mesmo que ocorre com o herdeiro, que tem que fazer o inventário e a
partilha dos bens deixados pelo autor da herança, não podendo
regularizar o bem pela usucapião, pois já é proprietário e não posseiro.
Tal como nos casos acima, o cônjuge residente no imóvel é proprietário
do bem, tendo uma relação de condomínio com outro cônjuge.
É diante desta problemática que surgiu a ingerência legal, para
regularizar a situação destes imóveis ocupados exclusivamente por um dos
cônjuges.
2. Paradigma jurídico
É certo de que as leis são feitas pelo homem diante de suas
necessidades sociais, mas os princípios que lastreiam o sistema jurídico
devem ser contundentes, seguindo um fato que deve ser regulado.
Os ex-cônjuges não têm prazo decadencial ou prescricional para
ajuizarem a ação de divórcio, a qual, por se tratar de ação de estado,
pode ser pleiteada em qualquer momento ou até nem ser pleiteada, pois se
trata de um direito personalíssimo, exclusivo dos cônjuges (Art. 1.582,
Código Civil).
Diante deste imbróglio, o tempo se tornou um dos maiores aliados e
também inimigo dos cônjuges, pois ao mesmo tempo em que não têm prazo
para reclamarem, não resolviam integralmente a dissolução de sua união.
Nesta situação os bens do casal ficavam encravados por anos, até porque
o processo de divórcio com a partilha poderia atravancar ainda mais o
andamento da regularização judicial do estado civil dos envolvidos.
Para tanto, em 1997, mesmo antes do Código Civil de 2002, o Superior
Tribunal de Justiça entendeu por bem facultar aos cônjuges a
possibilidade de obterem o divórcio mesmo sem partilhar os bens, tal
como expressamente autorizou a súmula 197:
“Superior Tribunal de Justiça
Súmula 197. Divórcio Direto - Partilha dos Bens – O divórcio direto pode ser concedido sem que haja prévia partilha dos bens.”
Como uma codificação é sedimentada sobre as necessidades sociais e
também sobre os entendimentos pacificados, um novo permissivo legal
autorizou que o divórcio ocorresse sem a prévia partilha de bens, tal
como estabeleceu o artigo 1.581 do Código Civil:
“Código Civil
Art. 1.581. O divórcio pode ser concedido sem que haja prévia partilha de bens.”
Inclusive, o que antes era regra – a partilha do patrimônio, hoje se tornou exceção.
Ou seja, é prática comum nos Juízos de Família não se discutir a
partilha no processo de divórcio se não houver concordância expressa e
acordo dos cônjuges, pois o estado civil é direito potestativo e não
pode sofrer limitações temporais em razão da discussão do patrimônio.
Assim, se houver questionamentos, será realizado simplesmente o
divórcio, deixando a partilha para ser discutida em outro processo
judicial.
De tal modo, a falta de regularização dos imóveis em discussão será perpetrada perpetuamente.
3. Princípios do Código Civil de 2002
O artigo 1.240-A é inovador e ao mesmo tempo condizente com a proposta normativa em vigor.
É fato que o Código Civil de 1916 não poderia ter abarcado tal dispositivo.
Isto se deve exatamente pelo rigor formal pelo qual era conhecido o
Código Civil de 1916, que não permitia, em regra, a aplicação da boa-fé,
da equidade, ou da função social.
A própria história da sociedade brasileira durante o século XX não
permitia interpretações que abalassem os princípios fundantes da
estrutura baseadas na propriedade privadas.
Todavia, o Código Civil de 2002 se adaptou as novas realidades sociais e consequentemente as inovações constitucionais.
Esta nova estrutura foi pensada com base nos novos preceitos trazidos
pela Constituição Federal de 1988, que ao mesmo tempo em que garante o
direito inviolável da propriedade, também faz remissão a seu necessário
atendimento à função social:
“Constituição Federal de 1988
Art. 5º. [....]
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;”
Mesmo com algumas omissões propositais, o Código Civil de 2002
pautou-se em lastrear as relações jurídicas em três princípios básicos: a
eticidade, a operabilidade e a sociabilidade.
Enquanto a eticidade entende que o homem é um ser inserido na sociedade
e, portanto, deve atuar em suas relações com ética e boa-fé, a
operabilidade admite um sistema aberto de cláusulas gerais, que
possibilitará melhores da legislação aos contornos e necessidades
sociais, já o princípio da sociabilidade estipula que a norma deve ser
analisada conforme o contexto social.
Assim se compreende um duplo viés de preocupação na inserção da
usucapião familiar no ordenamento jurídico brasileiro com a destinação
social, ou seja, preocupa-se tanto no contexto social como nas cláusulas
gerais.
Juntamente com a boa-fé objetiva, a função social do contrato e da
propriedade são as cláusulas gerais que regem o Código Civil de 2002.
Pelo simples conceito de cláusula geral como “norma que não prescreve
uma certa conduta, mas, simplesmente, define valores e parâmetros
hermenêuticos” (TEPEDINO, 2002), se verifica que seu alcance é limitado e
um tanto intrincado.
Ou seja, o ordenamento jurídico, no caso da usucapião familiar
necessitava de uma norma casuística que melhor resolve o conflito social
brasileiro instaurado.
Isto se deve porque o que difere as cláusulas gerais das normas
casuísticas é que as gerais são abertas, vagas, sem uma especificação de
aplicação, portanto, descrevem uma conduta a ser seguida.
Já com uma norma casuística, poder-se-ia atender os anseios da sociedade e estipular regras específicas e usuais.
Por isto a usucapião familiar praticado pelo ex-cônjuge residente no
imóvel teve que ser regulamentado, possuindo regras próprias e prazo bem
mais resoluto que as outras espécies de usucapião.
4. Requisitos
Para que o cônjuge possa requerer a “usucapião familiar”, deve preencher nove requisitos legais:
O primeiro deles é o “prazo” de habitação do bem de pelo menos dois
anos ininterruptos e tal como já acontecia com as outras modalidades de
usucapião estabelecidas no Código Civil, a continuação da posse é
indispensável, ou seja, não poderá o consorte abandonar o imóvel.
O imóvel que se pretende usucapir não pode ultrapassar os duzentos e
cinquenta metros quadrados, pois o “espaço” legalmente instituído visa
uma regularização fundiária e não o enriquecimento ilícito.
No caso da usucapião familiar a “posse deve ser direta”, ou seja, não
será permitido que o cônjuge aproveitasse a posse de terceiros, nem
alugue ou ceda o bem a outrem, pois a o que se pretende garantir é a
unidade familiar.
Também, será necessária que a “posse seja exclusiva” pelo consorte, não
podendo se aproveitar da referida ação declaratória, terceiro que tenha
vindo a residir no imóvel, como novo companheiro ou cônjuge.
Tal como os demais, a posse deve ser mansa e pacífica, “sem litígio”,
sem oposição, ou seja, somente será cabível se o ex-cônjuge não requereu
seus direitos de coproprietário judicialmente (venda ou aluguéis), e se
não foi realizada nenhuma ação possessória ou reivindicatória.
A “copropriedade” com o ex-cônjuge ou ex-companheiro é requisito
indispensável, pois não basta ter unicamente a posse, eis que neste caso
caberão somente as outras formas de usucapião.
A “finalidade” deve ser somente a de utilizar para sua moradia ou de
sua família, não podendo usufruir para outros fins, tais como comércio,
sublocações etc.
Deve firmar a “unicidade”, não podendo ser proprietário de nenhum outro imóvel.
Tal como as demais usucapiões que visa à moradia, o direito a usucapião
familiar somente pode ser exercido uma única vez na vida (Art. 1.240-A,
§ 1º).
Por fim, é “cabível apenas para bem imóvel” e é admissível somente em
caso de “omissão ou desídia” do outro cônjuge, ou seja, em caso dele
abandonar o lar.
A usucapião familiar, se por um lado tem a virtude de regularizar a
situação do cônjuge que continua a morar no imóvel depois do outro
cônjuge abandonar o lar, por outro traz questionamento sobre o que
poderia se compreender por abandono para fins desta nova modalidade de
usucapião.
Isto porque a saída do cônjuge do imóvel, em caso de abalo na vida
familiar, pode se dar por vários motivos, os quais não visam,
necessariamente, abandonar a família.
Ou seja, esta retirada do ex-consorte pode se dar de modo espontâneo,
pela desídia no sustento e manutenção da família, ou ser então
coercitivo, através da ação cautelar de separação de corpos ou
criminalmente, em decorrência de agressões ou ameaças ao ex-consorte com
base na Lei Maria da Penha (Art. 22, inciso II, Lei 11.340/2006).
Logicamente, buscando a paz e a tranquilidade familiar, pode ainda o
cônjuge deixar o lar comum visando exatamente garantir a integridade e
respeito com os filhos e com o ex-cônjuge, buscando a paz e a
tranquilidade familiar.
A saída do ex-consorte do lar comum pode ocorrer espontaneamente pelo
abandono do lar e da família ou para evitar atritos e coercitivamente
para evitar violência em âmbito criminal ou em cautela de separação de
corpos.
Logicamente, a usucapião familiar expresso no Artigo 1.240-A do Código
Civil somente terá cabimento nas situações que envolvam “ex-cônjuge ou
ex-companheiro que abandonou o lar”, eis que a saída para evitar maiores
confusões e desavenças no seio familiar, ou nas hipóteses de retirada
forçada do imóvel, não permitem tal modalidade de prescrição aquisitiva.
Portanto, o abandono do lar é um requisito subjetivo que deve ser
atentamente examinado para se adquirir a posse ad usucapionem nesta
modalidade de aquisição originária da propriedade.
5. Procedimento
A competência para a ação de usucapião familiar, a despeito dos
requisitos que envolvam a família, é da vara cível, uma vez que se trata
de ação real, e assim envolve terceiros por ter eficácia erga omnes.
Quanto ao procedimento, também terá as mesmas características das
demais formas de usucapião, tais como citação por edital para
conhecimento público, comunicação aos entes de direito público interno e
notificação dos confrontantes (Art. 941 e ss. do CPC).
6. Início da posse
Por fim, cabe o debate do início da posse para a concessão desta
usucapião, ou seja, se esta modalidade de aquisição da propriedade pode
ou não ser utilizada para posse iniciada anteriormente à vigência da Lei
12.424, de 16.06.2011, que o instituiu.
Tendo em vista que a posse ad usucapionem é um direito material, o
prazo inicial (termo a quo) para o usucapião familiar terá início apenas
após a vigência da nova lei, desconsiderando-se qualquer posse
anterior.
Se não fosse assim, o cônjuge que se retirou do lar anteriormente seria
surpreendido por uma nova situação que inovaria indevidamente a ordem
jurídica e lhe causaria prejuízo que o mesmo não tinha como prever.
Portanto, o prazo para concessão da usucapião familiar somente terá
início após a vigência da lei que o instituiu, mesmo nos casos em que a
posse tenha iniciado anteriormente.
Conclusão
A usucapião do cônjuge residente se mostra como uma alternativa viável
para resolver os problemas enfrentados na regularização de imóveis, o
que atenderá a função social da propriedade em razão do fortalecimento
da estabilidade familiar.
A estabilidade familiar se deve à possibilidade de investimentos no
próprio bem, na possibilidade de se obter financiamentos, bem como no
indiscutível retorno em eventual alienação.
Diante da alusão perpetrada e das reflexões geradas, verificou-se que o
dispositivo incorporado faz parte de um sistema paradigmático de
transformação de cláusulas gerais em normas casuísticas, fornecendo
maior coerência ao ordenamento jurídico.
Contudo, as impressões pessoais sobre o instituto é de que o mesmo não será fiel aos seus propósitos.
Isto ocorre em razão de que ficou estipulado um tamanho máximo de
duzentos e cinquenta metros quadrados para que possa usucapir os
referidos imóveis, o que, a priori, não parece condizer com as
realidades brasileiras.
Ocorre que a maioria dos Planos Diretores municipais estrutura terrenos
com quase o dobro da referida metragem, o que inviabilizará a
utilização do referido instituto.
Assim, é premente uma revisão legislativa para que seja aumentado o
tamanho referenciado, para que a função social pretendida com a edição
da lei alcance sua finalidade.
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