O caput do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 garante aos
brasileiros e estrangeiros residentes no país a “inviolabilidade do
direito à vida”. Trata-se do direito de permanecer vivo, proibindo a
interferência nos processos vitais que possam resultar em morte
(DIMOULIS, 2007, p. 397). A vida é o pressuposto de todos os demais
direitos (SAMPAIO, 2010) e por isso é considerada um bem jurídico de
valor elevado. A conservação da vida humana é um direito inato,
adquirido no nascimento, portanto, intransmissível, irrenunciável e
indisponível (ROBERTO, 2012, p. 4).
O significado constitucional do direito à vida é amplo, pois ele se
associa com outros bens jurídicos, a exemplo dos direitos à liberdade,
igualdade e à dignidade (BULUS, 2010, p. 529). Considerar a vida como um
bem jurídico desconectado dos direitos fundamentais que a cercam é
limitar o ser humano a uma existência meramente biológica, afastando
dele os aspectos sociais, psicológicos e espirituais, tão
imprescindíveis à sua felicidade. A vida constitucionalmente referida
não é uma vida qualquer. Seu conceito se apóia em outra definição
constitucional, que é a da dignidade (ROBERTO, 2012, p. 8). Assim surge o
conceito de vida digna, que estimula o esforço da sociedade no sentido
de não apenas ser direcionado à subsistência da espécie, mas, acima de
tudo, à busca da qualidade de vida.
Se a vida é o pressuposto de todos os demais direitos, a saúde é o
pressuposto da vida. Sem saúde não há vida digna, não há trabalho, não
há cidadania, há apenas resquício de vida (SILVEIRA, 2009, p. 17). A
saúde também garante as condições necessárias à fruição dos demais
direitos, fundamentais ou não, inclusive no sentido de viabilização do
livre desenvolvimento da pessoa e de sua personalidade (SARLET, 2012, p.
5). Por ser tão primordial à existência digna dos homens, o ordenamento
jurídico brasileiro, através do artigo 6º da Constituição Federal,
elevou a saúde à condição de direito social.
O direito à saúde, na qualidade de direito social, exige do Estado
brasileiro a realização de ações concretas e efetivas para a promoção, a
proteção e a recuperação da saúde de sua população. O Estado, então,
possui o poder/dever de intervir na dinâmica social para a proteção da
saúde coletiva. O direito à saúde pode ser também considerado um direito
subjetivo público, na medida em que permite que o cidadão ingresse com
uma ação no Poder Judiciário para exigir do Estado ou de terceiros
responsáveis legalmente a adoção ou a abstenção de medidas concretas em
favor da saúde (BRASIL, 2006, p. 50).
Nesse sentido, o artigo 196 da Constituição Federal dispõe:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Nem sempre, porém, a saúde foi objeto de proteção jurídica. Ao longo da
história, o cuidado sanitário esteve ligado a questões místicas ou
divinas, associada à prática de virtudes como a caridade e a compaixão
(GLOBEKNER, 2009, p. 5962). Acreditava-se que as decisões humanas não
tinham capacidade de modificar o curso natural das doenças, concepção
que fazia da saúde um objeto dissociado do mundo jurídico.
Com o desenvolvimento técnico científico ocorrido na Revolução
Industrial, inúmeros fatores físicos, químicos ou biológicos foram
identificados como capazes de afetar a saúde humana. Percebeu-se que a
manutenção de um razoável estado de saúde seria fruto da interação entre
esses fatores e o comportamento humano, englobando tanto hábitos
particulares dos indivíduos quanto a própria estrutura social e política
em que eles estão inseridos. A saúde passou a ser um bem disponível no
mercado, e frisa-se: um bem de escassez moderada, demandando critérios
de justiça para a sua distribuição (GLOBEKNER, 2009, p. 5962).
Como todo bem que apresenta certo grau de escassez, a saúde pode vir a
ser alvo de conflitos potencialmente danosos ao ser humano, conflitos
que poderiam até mesmo comprometer o desenvolvimento das sociedades.
Diante de tal relevância pública, diversos países do mundo passaram a
direcionar o maquinário estatal para o cuidado da saúde de suas
populações, buscando meios efetivos de gerir os recursos assistenciais.
Até meados do século XX, contudo, as políticas sanitárias eram prestadas
pelo Estado por razões estritamente econômicas, já que as doenças
poderiam comprometer a atividade produtiva de uma nação. A saúde não era
concebida como um direito do indivíduo e por isso não se obtinha em seu
favor tutela específica do ente estatal relacionado a um direito
fundamental (BORGES, 2011, p. 102).
A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, documento
internacional que inovou a concepção de direitos humanos, reconheceu a
essencialidade da saúde para a construção da vida digna que o mundo
almejava no pós-guerra. Essa declaração introduziu a saúde no hall dos
direitos fundamentais dos países signatários, afirmando que todas as
pessoas têm direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua
família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação,
cuidados médicos e serviços sociais indispensáveis (UNITED NATIONS HUMAN
RIGHTS, 1997a). Pelo fato da saúde ser tão essencial ao desenvolvimento
econômico e social das sociedades, o Estado passou a concentrar a
responsabilidade pela sua promoção.
O predomínio estatal na área de assistência sanitária não resistiu à
sucumbência do Welfare State ocorrida na segunda metade do século XX. O
sistema público de saúde foi acusado de comprometer as finanças do
Estado, além de ser considerado um obstáculo ao crescimento da riqueza. O
discurso neoliberal provocou imensas repercussões na tutela
jurisdicional do direito à saúde, na medida em que a saúde humana foi
adquirindo aspectos de “mercadoria”. Sob essa visão, o desenvolvimento
médico-científico não seria voltado necessariamente para uma maior
racionalidade sanitária, mas principalmente para a exploração econômica.
O incremento tecnológico visando a lucratividade tornou a assistência à
saúde mais onerosa, sem necessariamente trazer benefícios à saúde
pública. Ações sanitárias caracterizadas por alocar recursos de forma
mais rentável, buscando menores custos e maiores benefícios, foram sendo
substituídas por estratégias advindas dos interesses do setor privado
(GLOBEKNER, 2008, p. 3.775). O cuidado com a saúde, bem de importância
primordial para a consolidação da dignidade humana, foi se tornando cada
vez menos eficaz, mais custoso e, por isso, mais escasso. E é claro
que, quanto mais escasso é um bem jurídico, mais difícil ele será
tutelado pelo Estado.
Daí surge questão paradoxal: como pode o Estado se obrigar a prover os
cuidados com a saúde de sua população, se os recursos capazes de
realizar tal feito não estão todos ao seu alcance? Se a incorporação de
tecnologias torna a saúde um bem cada vez mais difícil de ser
distribuído equitativamente para a população? Para tentar suprir tal
deficiência, as nações do mundo se dividiram entre dois paradigmas de
sistema de saúde. Um dos paradigmas se baseia na alocação de recursos
por parte da iniciativa privada, no qual ao Estado só cabe regular o
mercado e realizar ações assistencialistas específicas. O segundo
paradigma se refere à atenção universalista provida pelo Estado, que
direciona o sistema público de saúde a toda a população (GLOBEKNER,
2008, p. 3.775). Independente do paradigma adotado, os países optam por
sistemas híbridos, que comportam a participação do setor privado na
promoção da saúde, seja de forma preponderante ou não.
A exploração econômica do serviço privado tem sido vista como
necessária para suprir as deficiências da atuação estatal, seguindo a
lógica do discurso neoliberal vigente na contemporaneidade. Seguindo
essa linha de pensamento, a Constituição Federal brasileira de 1988
consagra o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde como um
direito de cidadania (BORGES, 2011, p. 103), mas, por outro lado,
permite que a iniciativa privada possa prestar serviços de assistência à
saúde ou, até mesmo, fazer parcerias com o setor público, participando
de forma complementar do sistema único de saúde.
Não foi apenas na realidade brasileira que o passar de algumas poucas
décadas tornou clara uma constatação: as problemáticas advindas da má
qualidade da prestação dos serviços de saúde não são inerentes ao setor
público. A iniciativa privada, erigida basicamente sobre os planos
privados de saúde, frequentemente encontram dificuldades relacionadas a
recursos relativamente escassos diante das demandas de seus clientes. Na
verdade, a mesma incorporação tecnológica exponencial que fundamentou a
participação crescente de agentes privados na prestação de serviços de
saúde acaba por prejudicar a sua sobrevivência. Como resultado disso,
notou-se o surgimento de inúmeros conflitos entre os planos de saúde e
seus consumidores que perduram até os dias atuais, principalmente
oriundos das constantes elevações dos valores contratuais e das
restrições de cobertura assistencial (SILVEIRA, 2009, p. 64).
Após essa apresentação geral sobre algumas das particularidades do
direito à saúde, chega-se a duas percepções imediatas. A primeira delas
se refere ao problema da alta onerosidade existente no modelo
assistencial da saúde adotado, marcado por que alto incremento
tecnológico, sem necessariamente provocar elevação proporcional nos
padrões de saúde da sociedade. A revisão desse modelo não está entre os
objetivos do presente estudo, mas compreender sua dinâmica é importante
para se verificar que, conforme as particularidades do caso concreto, a
cláusula da reserva do possível pode limitar a tutela do direito à saúde
quando os tratamentos médicos indicados estiverem além dos limites
financeiros das empresas ou do setor público. Frisa-se que, não adianta
existir possibilidade jurídica enquanto a aplicação de uma tutela não
for revestida também de possibilidade fática (GLOBEKNER, 2008, p.
3.779).
Da segunda percepção decorre um dos fundamentos que baseiam a temática
deste estudo. Trata-se da necessária interferência pública no setor
privado de assistência à saúde. Sem dúvida, embora a saúde seja
inegavelmente um direito subjetivo público, é equivocada a concepção que
a coloca exclusivamente nessa situação, já que este direito manifesta
sua atuação também na relação entre os particulares (SAMPAIO, 2010, p.
53). Importante mencionar que a saúde é dotada de grande relevância
pública, por ser um bem jurídico indispensável ao desenvolvimento social
e econômico de toda uma nação. Com base em sua fundamentalidade, a
Constituição Federal de 1988 dispõe que a iniciativa privada atuante na
área da saúde está sujeita a normas, controle e fiscalização do poder
público (WEICHERT, 2007, p. 343).
Dentre as ferramentas que consubstanciam a atuação do Estado na esfera
privada, o Direito do Consumidor tem sido uma das mais importantes para a
proteção da saúde dos usuários de serviços particulares. Os princípios
da defesa do consumidor promovem subsídios para a aplicação de tutelas
nos casos concretos onde a saúde das pessoas está sendo ameaçada pela
exploração econômica desenfreada do mercado. Compreender o delineamento
constitucional das relações de consumo, por isso, é o tema do tópico que
se segue.
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