quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Direito à vida e à saúde

O caput do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 garante aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a “inviolabilidade do direito à vida”. Trata-se do direito de permanecer vivo, proibindo a interferência nos processos vitais que possam resultar em morte (DIMOULIS, 2007, p. 397). A vida é o pressuposto de todos os demais direitos (SAMPAIO, 2010) e por isso é considerada um bem jurídico de valor elevado. A conservação da vida humana é um direito inato, adquirido no nascimento, portanto, intransmissível, irrenunciável e indisponível (ROBERTO, 2012, p. 4).
O significado constitucional do direito à vida é amplo, pois ele se associa com outros bens jurídicos, a exemplo dos direitos à liberdade, igualdade e à dignidade (BULUS, 2010, p. 529). Considerar a vida como um bem jurídico desconectado dos direitos fundamentais que a cercam é limitar o ser humano a uma existência meramente biológica, afastando dele os aspectos sociais, psicológicos e espirituais, tão imprescindíveis à sua felicidade. A vida constitucionalmente referida não é uma vida qualquer. Seu conceito se apóia em outra definição constitucional, que é a da dignidade (ROBERTO, 2012, p. 8). Assim surge o conceito de vida digna, que estimula o esforço da sociedade no sentido de não apenas ser direcionado à subsistência da espécie, mas, acima de tudo, à busca da qualidade de vida.
Se a vida é o pressuposto de todos os demais direitos, a saúde é o pressuposto da vida. Sem saúde não há vida digna, não há trabalho, não há cidadania, há apenas resquício de vida (SILVEIRA, 2009, p. 17). A saúde também garante as condições necessárias à fruição dos demais direitos, fundamentais ou não, inclusive no sentido de viabilização do livre desenvolvimento da pessoa e de sua personalidade (SARLET, 2012, p. 5). Por ser tão primordial à existência digna dos homens, o ordenamento jurídico brasileiro, através do artigo 6º da Constituição Federal, elevou a saúde à condição de direito social.
O direito à saúde, na qualidade de direito social, exige do Estado brasileiro a realização de ações concretas e efetivas para a promoção, a proteção e a recuperação da saúde de sua população. O Estado, então, possui o poder/dever de intervir na dinâmica social para a proteção da saúde coletiva. O direito à saúde pode ser também considerado um direito subjetivo público, na medida em que permite que o cidadão ingresse com uma ação no Poder Judiciário para exigir do Estado ou de terceiros responsáveis legalmente a adoção ou a abstenção de medidas concretas em favor da saúde (BRASIL, 2006, p. 50).
Nesse sentido, o artigo 196 da Constituição Federal dispõe:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Nem sempre, porém, a saúde foi objeto de proteção jurídica. Ao longo da história, o cuidado sanitário esteve ligado a questões místicas ou divinas, associada à prática de virtudes como a caridade e a compaixão (GLOBEKNER, 2009, p. 5962). Acreditava-se que as decisões humanas não tinham capacidade de modificar o curso natural das doenças, concepção que fazia da saúde um objeto dissociado do mundo jurídico.
Com o desenvolvimento técnico científico ocorrido na Revolução Industrial, inúmeros fatores físicos, químicos ou biológicos foram identificados como capazes de afetar a saúde humana. Percebeu-se que a manutenção de um razoável estado de saúde seria fruto da interação entre esses fatores e o comportamento humano, englobando tanto hábitos particulares dos indivíduos quanto a própria estrutura social e política em que eles estão inseridos. A saúde passou a ser um bem disponível no mercado, e frisa-se: um bem de escassez moderada, demandando critérios de justiça para a sua distribuição (GLOBEKNER, 2009, p. 5962).
Como todo bem que apresenta certo grau de escassez, a saúde pode vir a ser alvo de conflitos potencialmente danosos ao ser humano, conflitos que poderiam até mesmo comprometer o desenvolvimento das sociedades. Diante de tal relevância pública, diversos países do mundo passaram a direcionar o maquinário estatal para o cuidado da saúde de suas populações, buscando meios efetivos de gerir os recursos assistenciais. Até meados do século XX, contudo, as políticas sanitárias eram prestadas pelo Estado por razões estritamente econômicas, já que as doenças poderiam comprometer a atividade produtiva de uma nação. A saúde não era concebida como um direito do indivíduo e por isso não se obtinha em seu favor tutela específica do ente estatal relacionado a um direito fundamental (BORGES, 2011, p. 102).
A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, documento internacional que inovou a concepção de direitos humanos, reconheceu a essencialidade da saúde para a construção da vida digna que o mundo almejava no pós-guerra. Essa declaração introduziu a saúde no hall dos direitos fundamentais dos países signatários, afirmando que todas as pessoas têm direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e serviços sociais indispensáveis (UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS, 1997a). Pelo fato da saúde ser tão essencial ao desenvolvimento econômico e social das sociedades, o Estado passou a concentrar a responsabilidade pela sua promoção.
O predomínio estatal na área de assistência sanitária não resistiu à sucumbência do Welfare State ocorrida na segunda metade do século XX. O sistema público de saúde foi acusado de comprometer as finanças do Estado, além de ser considerado um obstáculo ao crescimento da riqueza. O discurso neoliberal provocou imensas repercussões na tutela jurisdicional do direito à saúde, na medida em que a saúde humana foi adquirindo aspectos de “mercadoria”. Sob essa visão, o desenvolvimento médico-científico não seria voltado necessariamente para uma maior racionalidade sanitária, mas principalmente para a exploração econômica. O incremento tecnológico visando a lucratividade tornou a assistência à saúde mais onerosa, sem necessariamente trazer benefícios à saúde pública. Ações sanitárias caracterizadas por alocar recursos de forma mais rentável, buscando menores custos e maiores benefícios, foram sendo substituídas por estratégias advindas dos interesses do setor privado (GLOBEKNER, 2008, p. 3.775). O cuidado com a saúde, bem de importância primordial para a consolidação da dignidade humana, foi se tornando cada vez menos eficaz, mais custoso e, por isso, mais escasso. E é claro que, quanto mais escasso é um bem jurídico, mais difícil ele será tutelado pelo Estado.
Daí surge questão paradoxal: como pode o Estado se obrigar a prover os cuidados com a saúde de sua população, se os recursos capazes de realizar tal feito não estão todos ao seu alcance? Se a incorporação de tecnologias torna a saúde um bem cada vez mais difícil de ser distribuído equitativamente para a população? Para tentar suprir tal deficiência, as nações do mundo se dividiram entre dois paradigmas de sistema de saúde. Um dos paradigmas se baseia na alocação de recursos por parte da iniciativa privada, no qual ao Estado só cabe regular o mercado e realizar ações assistencialistas específicas. O segundo paradigma se refere à atenção universalista provida pelo Estado, que direciona o sistema público de saúde a toda a população (GLOBEKNER, 2008, p. 3.775). Independente do paradigma adotado, os países optam por sistemas híbridos, que comportam a participação do setor privado na promoção da saúde, seja de forma preponderante ou não.
A exploração econômica do serviço privado tem sido vista como necessária para suprir as deficiências da atuação estatal, seguindo a lógica do discurso neoliberal vigente na contemporaneidade. Seguindo essa linha de pensamento, a Constituição Federal brasileira de 1988 consagra o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde como um direito de cidadania (BORGES, 2011, p. 103), mas, por outro lado, permite que a iniciativa privada possa prestar serviços de assistência à saúde ou, até mesmo, fazer parcerias com o setor público, participando de forma complementar do sistema único de saúde.
Não foi apenas na realidade brasileira que o passar de algumas poucas décadas tornou clara uma constatação: as problemáticas advindas da má qualidade da prestação dos serviços de saúde não são inerentes ao setor público. A iniciativa privada, erigida basicamente sobre os planos privados de saúde, frequentemente encontram dificuldades relacionadas a recursos relativamente escassos diante das demandas de seus clientes. Na verdade, a mesma incorporação tecnológica exponencial que fundamentou a participação crescente de agentes privados na prestação de serviços de saúde acaba por prejudicar a sua sobrevivência. Como resultado disso, notou-se o surgimento de inúmeros conflitos entre os planos de saúde e seus consumidores que perduram até os dias atuais, principalmente oriundos das constantes elevações dos valores contratuais e das restrições de cobertura assistencial (SILVEIRA, 2009, p. 64).
Após essa apresentação geral sobre algumas das particularidades do direito à saúde, chega-se a duas percepções imediatas. A primeira delas se refere ao problema da alta onerosidade existente no modelo assistencial da saúde adotado, marcado por que alto incremento tecnológico, sem necessariamente provocar elevação proporcional nos padrões de saúde da sociedade. A revisão desse modelo não está entre os objetivos do presente estudo, mas compreender sua dinâmica é importante para se verificar que, conforme as particularidades do caso concreto, a cláusula da reserva do possível pode limitar a tutela do direito à saúde quando os tratamentos médicos indicados estiverem além dos limites financeiros das empresas ou do setor público. Frisa-se que, não adianta existir possibilidade jurídica enquanto a aplicação de uma tutela não for revestida também de possibilidade fática (GLOBEKNER, 2008, p. 3.779).
Da segunda percepção decorre um dos fundamentos que baseiam a temática deste estudo. Trata-se da necessária interferência pública no setor privado de assistência à saúde. Sem dúvida, embora a saúde seja inegavelmente um direito subjetivo público, é equivocada a concepção que a coloca exclusivamente nessa situação, já que este direito manifesta sua atuação também na relação entre os particulares (SAMPAIO, 2010, p. 53). Importante mencionar que a saúde é dotada de grande relevância pública, por ser um bem jurídico indispensável ao desenvolvimento social e econômico de toda uma nação. Com base em sua fundamentalidade, a Constituição Federal de 1988 dispõe que a iniciativa privada atuante na área da saúde está sujeita a normas, controle e fiscalização do poder público (WEICHERT, 2007, p. 343).
Dentre as ferramentas que consubstanciam a atuação do Estado na esfera privada, o Direito do Consumidor tem sido uma das mais importantes para a proteção da saúde dos usuários de serviços particulares. Os princípios da defesa do consumidor promovem subsídios para a aplicação de tutelas nos casos concretos onde a saúde das pessoas está sendo ameaçada pela exploração econômica desenfreada do mercado. Compreender o delineamento constitucional das relações de consumo, por isso, é o tema do tópico que se segue.

RODRIGUES, Raoni. Doença preexistente nos planos de saúde. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3506, 5 fev. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23649>. Acesso em: 6 fev. 2013.

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