É de origem contratual a relação entre as operadoras de plano de saúde e
seus consumidores, razão pela qual se mostra fundamental uma breve
passagem pelo tema. Aurisvaldo Sampaio conceitua o contrato de plano de
saúde como:
(...) aquele por meio do qual uma das partes, a operadora, obriga-se
diante da outra, o consumidor, a proporcionar a cobertura dos riscos de
assistência à saúde mediante a prestação de serviços médico-hospitalares
e/ou odontológicos em rede própria, reembolso das despesas efetuadas,
ou pagamento direto ao prestador de dos referidos serviços (SAMPAIO,
2011, p. 187).
Trata-se de um contrato de prestação de serviços por tempo
indeterminado, no qual o seu destinatário, em regra, se obriga ao
pagamento de contraprestações mensais previamente definidas.
Os valores constitutivos dos contratos dos planos de saúde estão
visceralmente ligados aos princípios constitucionais de proteção à vida,
à saúde e ao dever do Estado de colocar a dignidade da pessoa humana
acima dos interesses monetários dos empresários do setor (SILVEIRA,
2009, p. 81).
Apesar da fundamentalidade dos bens jurídicos envolvidos na relação
estabelecida entre operadoras e seus consumidores, o mercado de planos
de saúde no Brasil desenvolveu-se em um contexto de baixa regulação
estatal até os fins da década de 1990 (COSTA, 2002, p. 49). Predominava a
crença neoliberal de que a disputa entre as operadoras de planos de
saúde por clientes seriam suficientes para garantir a estabilidade do
setor. Por isso, as ações de controle e fiscalização do governo
concentravam seus esforços para corrigir/atenuar as falhas de mercado,
através da criação de regras econômico-financeiras (GAMA, 2002, p. 73).
O passar dos anos demonstrou que os contratos de planos de saúde
estavam sendo veículos de exploração por parte das operadoras. A partir
da década de 1980, a população brasileira passou a denunciar tal
realidade, expondo uma série de abusos praticados, destacando-se dentre
eles: negação de atendimento, aumento exagerado dos preços e seleção de
risco e de usuários por parte das operadoras (REZENDE, 2011, p. 31).
Tornou-se perceptível na época que a efetivação do direito à saúde dos
clientes de planos estaria subordinada ao surgimento de um novo modelo
de regulação. Um modelo que se respaldasse na ótica dos direitos
consumeristas, direcionando sua atenção para a garantia do acesso e
qualidade da assistência aos clientes dos planos (BAHIA, 2001, p. 337).
Esse foi o ponto de partida para o surgimento do marco regulatório do
setor, consubstanciado pela Lei nº 9.656 de 3 de Junho de1998, e da
criação da Agência Nacional de Saúde (ANS) através da Lei 9.961 do ano
de 2000.
Antes de analisar os aspectos regulatórios que irão influenciar os
contratos dos planos de saúde, vale salientar que a legitimidade e a
legalidade que fundamentam a interferência estatal no setor estão
claramente expressas no artigo 197 da Constituição Federal, que
determina ser “de relevância pública as ações e serviços de saúde,
cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua
regulamentação, fiscalização e controle (...)”.
5.1. O marco regulatório e seus impactos nas relações contratuais
Como visto no tópico anterior, o mercado de planos de saúde no Brasil
por muito tempo se desenvolveu longe de uma eficaz regulação estatal,
algo que produziu alta lucratividade advinda de práticas exploratórias
de consumo. A promulgação da Lei 9.656/98, a Lei dos Planos de Saúde,
surgiu como importante instrumento para coibir tais abusos, causando,
logicamente, impactos significativos à mencionada atividade econômica.
Outro mecanismo que veio efetivar a regulação estatal é a Agência
Nacional de Saúde (ANS), criada com a promulgação da Lei 9.961/00.
Trata-se de uma autarquia vinculada ao Ministério da Saúde que atua como
órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das
atividades que garantem a assistência suplementar à saúde (RIANI, 2012,
p. 25).
Os instrumentos regulatórios supracitados provocaram alterações
profundas nas relações contratuais estabelecidas no âmbito da Saúde
Suplementar. Torna-se interessante, para o desenvolvimento teórico deste
estudo, que sejam descritas algumas das principais modificações
ocorridas nas regras contratuais e estruturais***. Primeiramente*, os
instrumentos regulatórios proporcionaram novos contornos ao modelo de
contratação, que deixa de se pautar em um contrato jurídico determinado
exclusivamente pelas operadoras para se tornar um contrato de adesão de
via dupla. Neste novo cenário, as operadoras devem aderir a um conteúdo
mínimo estabelecido pelo poder público, algo que garante maior
equilíbrio na sua relação com os consumidores (REZENDE, 2011, p. 36).
Uma das maiores inovações trazidas pela Lei dos Planos de Saúde foi o
estabelecimento de uma cobertura mínima a ser ofertada pelas operadoras,
englobando um rol de procedimentos básicos que deve ser garantido em
qualquer contrato estabelecido. As partes contratantes, porém, ficam
livres no que se refere à fixação de serviços adicionais, podendo haver
cobrança diferenciada nesses casos. As taxas de reajuste e os períodos
de carência também são pré-fixados através da atividade regulatória
(VALLE, 2012, p. 6), evitando a existência de cláusulas de adesão
extremamente prejudiciais aos consumidores. Essas são mostras de como a
regulação estatal tem contribuído para uma relação mais equilibrada
entre consumidores e operadoras, proporcionando maior qualidade aos
serviços e maior proteção à saúde e à dignidade dos clientes de planos
de saúde.
Mas os mecanismos regulatórios estão voltados também para os aspectos
econômico-financeiros da Saúde Suplementar. Sabe-se que a
desestabilização financeira das operadoras de plano de saúde não é
interessante para ninguém, muito menos para o consumidor. Este tem total
interesse que tais empresas desenvolvam suas atividades de forma lícita
e sustentável, possuindo capital disponível suficiente para cumprir
suas responsabilidades contratuais. Em virtude disso, a atividade
regulatória tem verificado se as operadoras possuem real capacidade de
ofertar os serviços contratados, impondo regras mais rígidas para a
constituição dessas empresas, sendo que apenas aquelas com condições
financeiras mínimas de se manter no mercado passam a ter registro na
ANS. Atualmente, dentre outros requisitos para operação, exige-se das
operadoras capital social mínimo, provisão de risco, provisão para
eventos não ocorridos e não avisados e margem de solvência (REZENDE,
2011, p. 36).
Na medida em que as operadoras tiveram que garantir maior equilíbrio
econômico-financeiro para se manter no seu ramo de atividade, os
contratos de planos de saúde se revestiram de maior segurança jurídica.
Não se pode negar que a solvência das empresas é um requisito fático
para o cumprimento dos contratos. E essa lógica ganha ainda mais
importância quando tratamos de serviços de saúde, já que o não
cumprimento das obrigações contratuais por parte das operadoras é capaz
de gerar sérios prejuízos aos consumidores (REZENDE, 2011, p.34). Porém,
ao mesmo tempo em que o mercado da Saúde Suplementar se revestiu de
maiores garantias econômicas, ocorreu uma limitação no número de pessoas
jurídicas capazes de cumprir os requisitos necessários para adentrarem
no mencionado mercado. A conseqüência natural de tal realidade: a grande
concentração de beneficiários em algumas poucas operadoras. Em 2009,
mais de metade dos consumidores (50,2%) dos serviços suplementares de
saúde estava vinculada a apenas 38 operadoras, de um total de 1.098.
Acrescenta-se ainda que 90% dos beneficiários estavam concentrados em
366 empresas, enquanto os 10% restantes de dividiam nas outras 725
(RIANI, 2012, p. 26). Nesse contexto, a concorrência entre empresas fica
extremamente desequilibrada, situação que prejudica a oferta de
vantagens aos beneficiários. Tal fato legitima ainda mais o
estabelecimento de conteúdos contratuais mínimos por parte da ANS,
objetivando que a baixa concorrência não submeta os consumidores a
contratos abusivos.
Outro impacto da regulação estatal sobre o setor da Saúde Suplementar
se refere ao considerável impacto financeiro gerado. A exigência de uma
cobertura mínima e a limitação no reajuste das mensalidades foram as
principais razões para que as operadoras de planos de saúde passassem a
ter maiores despesas assistenciais. Paulo Roberto de Rezende (2011,
p.38) faz a seguinte consideração sobre o assunto:
Segundo dados da ANS, em 2003 as operadoras médico-hospitalares
apresentaram uma receita de R$28.244.222.059, com uma despesa
assistencial no importe de R$22.967.722.881, sendo que até o primeiro
trimestre de 2011 já apresentavam uma receita de R$71.097.946.389 contra
uma despesa assistencial de R$57.650.399.394. Caso leve-se em
consideração apenas este dado, chega-se a um superávit de
R$13.447.546.215, a ser dividido entre as 1.618 operadoras com registro
na ANS, o que alcançaria um lucro de pouco mais de R$8.000.000,00 por
ano. Esta situação demonstra que as operadoras não são tão
superavitárias quanto se pensa e, ainda, deixa evidente que os custos
assistenciais estão aumentando.
Como já mencionado, o incremento tecnológico contínuo na área da saúde
torna a assistência cada vez mais onerosa, sem necessariamente trazer
benefícios proporcionais. Esse fato, aliado ao aumento da faixa etária
média dos beneficiários de planos de saúde, tem onerado de forma
importante as operadoras. Esta realidade econômica impõe restrições à
atividade regulatória estatal, que deve considerar as limitações
financeiras das operadoras de planos de saúde, sob pena de inviabilizar a
existência delas. Tais particularidades financeiras é que irão
fundamentar, por exemplo, a estipulação de um período de carência de 24
meses para as doenças preexistentes.
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