Em razão da ímpar oportunidade (tendo em
vista que o legislador brasileiro está discutindo a questão da
maioridade penal), vale a pena conhecer um trecho do livro O delinquente que não existe, de Juan Pablo Mollo, que estamos traduzindo (e que queremos publicar ainda este ano no Brasil). Segue o texto do autor citado:
O desamparo se transforma em crime por meio do sistema penal.
Quando as crianças fogem de seu lar e
ficam nas ruas, começam um caminho difícil, sem rumo fixo, em situação
de desproteção, suportando grandes privações. Como forma de defesa e
subsistência, os meninos de rua organizam-se precariamente entre si, e
tentam dispor de um mínimo apoio afetivo mediante a identificação comum
que oferece o grupo. É evidente que os meninos de rua são altamente
vulneráveis e, por isto, são uma “oportunidade” e um negócio para
organizações criminais que lucram com a prostituição infantil, o tráfico
de órgãos ou a exploração sexual e de trabalho dos menores etc.
Sem uma pessoa adulta ou um “pai” que
responda por eles, o grupo infantil perambula à deriva e tenta subsistir
por meios lícitos e ilícitos, segundo o que encontrarem à disposição
dia após dia. A mesma vulnerabilidade dos meninos torna explicável o
roubo simples de carteiras, bicicletas ou celulares, que despois vendem
para obter um dinheiro mínimo, gratificante em curto prazo. Com o tempo,
se não são detidos e enviados a um reformatório, a associação de
meninos de rua pode ser dirigida por organizações criminais dedicadas ao
tráfico de drogas e outras mercadorias, ou realizar tarefas ilegais
para a polícia.
Esta breve descrição do caminho
infantil à deriva é uma representação do fenômeno a partir do ponto de
vista econômico-social; no entanto, existe outra lógica subjacente aos
atos delitivos das crianças e adolescentes, que alcança uma dimensão
afetiva: a fuga infantil intempestiva para a rua está relacionada com
“ter sido deixado fora” (abandonado) por sua família de origem. Daí sua
persistência em não voltar ao lar, ainda que em situações de desamparo
extremo. A fuga da criança para a rua implica que “algo” insuportável
lhe acontece em sua casa, e, por isto, o escape toma uma forma de
precipitação, urgência subjetiva e sem referências, em direção à
hostilidade de um mundo sem regras.
Verifica-se na clínica psicanalítica
que a fuga infantil é uma resposta subjetiva da criança ante uma
diversidade de circunstâncias tais como a marca da rejeição, não se
sentir querido, ser ferido ou explorado afetivamente, não resistir à
violência ou aos conflitos familiares já intoleráveis, a morte de algum
de seus pais, tios, irmãos, avós ou maior responsável etc. Assim, uma
fuga desesperada, que mais é uma queda ou uma derrubada simbólica,
joga-o a uma situação de desamparo e angústia pela perda de um apoio
afetivo.
O desamparo real nasce com a perda de
um lugar no desejo do Outro, que não é um conceito abstrato, senão a
certeza de “ser” algo para alguém concreto, neste caso um familiar ou um
responsável pela criança. Em outras palavras, ter um lugar no desejo do
Outro, encarnado em alguma das figuras familiares, supõe que a criança
ou o adolescente é alojado, levado em consideração e sustentado, para
além das palavras e das razões. Inversamente, sendo a rua o lugar dos
que não têm lugar, a fuga infantil mostra bem a queda do desejo do Outro
[daí a sensação de isolamento, de não pertencência].
Por definição, ser deixado cair fora
(ser abandonado) do desejo do Outro produz angústia, perda de recursos
simbólicos e ações intempestivas. Logo, o salto ao vazio da rua devido à
perda de um lugar não conceitual, mas real, lhe acrescenta outro
desamparo mais tangível no plano social. Com efeito, a angústia pela
perda de “alguém” que respondia por ele, visivelmente o deixa sem
referências simbólicas e literalmente à deriva, fora das obrigações de
horários e demais convenções sociais.
Da angústia ao sistema penal
Entretanto, não se trata da influência
do ambiente físico ou social da família do menino, senão da ruptura de
um “ambiente afetivo”, como causa do perambular da criança ou do jovem.
Aqui, o desamparo não é social e não se trata da exclusão econômica e
geográfica do marginal, mas da rejeição original e a queda subjetiva que
sofre uma criança ou um jovem, para além de sua classe social.
O abandono produz angústia e esta se
transforma em ações intempestivas e inadequadas em relação às convenções
sociais. Na verdade, a transformação da angústia em atos, já supõe
estar fora da proteção das normas simbólicas; e por isto, tais atos
inadequados constituem um chamado ao lugar perdido no desejo do Outro.
As condutas antissociais de um menino de rua se dirigem a um Outro para
que este responda por ele. Ou ainda, o comportamento antissocial
constitui uma “chamada de atenção” porque, justamente, se perdeu a
atenção de um Outro familiar.
A partir desta perspectiva, as ações
delitivas e associais do jovem delinquente constituem um modo de
“golpear” as instituições sociais, suas normas e sua moral, com a
finalidade consciente ou não, de ser incluído na legalidade perdida.
Portanto, resulta primordial ingressar numa realidade “afetiva”,
pacificadora da angústia, como condição de uma possível adaptação à
legalidade social. Em outras palavras, o abandono inicial deixa o jovem
como um objeto fora da lei, e por isto, seus atos delitivos esperam uma
resposta do Outro para constituir-se como sujeito de uma lei. Quando não
há resposta, a situação se agrava e se intensificam as atuações,
incluindo-se o risco da própria vida.
Não obstante, verifica-se na clínica
psicanalítica que a certeza de ter “um lugar no desejo do Outro”, nestes
casos, produz uma inclusão afetiva e social, cujo efeito é a
recuperação da referência à norma. Por isso, tais atuações, que
constituem uma série repetitiva de acting out, não configuram uma patologia, mas uma “zona de relação” vinculada ao desejo do Outro (Lacan). A angústia transformada em acting out,
constitui uma etiologia delitiva sutil, cuja fenomenologia é ir à
deriva, sem recursos simbólicos, porém em direção a entrar no cenário do
mundo regrado e convencional.
Precisamente, no início de 1900,
averiguando o campo teórico clínico da criança e do adolescente, os
primeiros psicanalistas já se opunham às teorias etiológicas
constitucionalistas que influenciavam a criminologia da época, e
rechaçavam a homologia do delinquente com as categorias psiquiátricas de
psicopatas, inferiores ou perversos. Para os psicanalistas pioneiros na
matéria, um ato delitivo ou uma conduta antissocial não constituía um
diagnóstico, não valia por si mesma (Eissler), mas se distinguia da mera
impulsividade (Blos) e respondia ao abandono (Aicchorn).
Também, teorizavam que os conflitos que
operavam na origem da tendência antissocial sobrevinham das separações
prematuras e prolongadas (Bowlby), ou da carência da criança em relação a
sua mãe (Winnicott). Em suma, as investigações psicanalíticas em torno
da delinquência, as quais se desenvolveram no desamparo social das
guerras mundiais, mantêm, hoje, toda sua vigência ante a situação de
milhões de crianças e jovens que são forçados a sobreviver na rua. Os
filhos da marginalização social da América Latina são os mesmos órfãos
do pós-guerra europeu: jovens deixados cair fora (abandonados), que
depois desencadeiam séries intermináveis de delitos e distúrbios,
mostrando o objeto de descarte que são para o Outro.
Assim, a delinquência juvenil é a
materialização da angústia. As ações da criança ou jovem de rua,
logicamente, terão que resultar inadequadas ou delitivas, pois sua
direção inconsciente é convocar ao Outro. E precisamente, verifica-se
clinicamente que os atos delitivos cedem quando a criança ou adolescente
angustiado é alojado genuinamente no desejo do Outro. A delinquência
juvenil é transitória e depende de uma resposta do Outro. Por exemplo, o
caso de um jovem irmão que está na rua, não vai à escola, rouba, usa
droga etc., e quando um tio distante, de maneira autêntica, o convidou a
trabalhar numa quitanda e se encarregou dele, de pronto, o jovem
respondeu plenamente, mudando rapidamente seu modo de vida anterior. O
jovem retomou o colégio e deixou de roubar e se drogar, isto é,
recuperou a legalidade a partir de ter a certeza de “ser” alguém para
Outro.
Mesmo expressado com extrema
simplicidade, o exemplo deixa vislumbrar uma “cura” para o delinquente
juvenil. Com efeito, se vindo do desamparo e do abandono primário, as
transgressões à lei são tentativas angustiosas de buscar um Outro para
ter onde se alojar, para além de todas as razões; então, se se oferece
uma resposta adequada, uma terapêutica é possível para o ordenamento do
delinquente juvenil. Sempre será uma resposta que permita a inclusão,
ainda que não possa ser padronizada nem institucionalizada, pois
necessita do desejo do Outro em singular; ou seja, requer do desejo
singular de encarregar-se ou não, de quem, neste caso está à deriva.
Alojar alguém no desejo do Outro não é
uma operação conceitual, mas um efeito enigmático que compromete
profundamente duas pessoas em nível de seus desejos. Tampouco é o
significado de uma frase ou o valor das palavras, senão um efeito
análogo ao súbito enamoramento. Por isso, em sentido estrito, a resposta
“terapêutica” não é calculável, senão que está definida pelos efeitos
concretos e reais de um “encontro” afetivo, que diminuiu a urgência e a
patologia da conduta.
Outras vezes, a marca do abandono
original retorna e o jovem volta à rua e para uma tendência antissocial
cada vez mais marcada. A situação de angústia se agrava com o passar do
tempo e, às vezes, ao desamparado de anos, só lhe resta um lugar
miserável no cárcere ou no hospital psiquiátrico, ou então suicidar-se.
Tais são os extremos a que chegam as séries repetitivas de acting out, quando não há alguém que responda ao chamado.
Indubitavelmente, nem todos os
delinquentes são desamparados que atuam sem referências simbólicas. No
entanto, a grande maioria dos delinquentes incluídos na subcultura
criminal antes foi um jovem à deriva. Portanto, existe uma passagem do
desamparo e angústia para a fixação da identidade delitiva ou criminosa.
Desta forma, se a angústia se oculta atrás dos atos delitivos e sua
dosificação pode produzir repentinamente uma mudança de posicionamento
em relação às normas, então, a subcultura delitiva também é uma solução
para a angústia.
A passagem do desamparo ao clube
criminoso constitui uma via de socialização com um aprendizado técnico e
discursivo, cuja “graduação” realiza-se no cárcere, que define
hierarquias. A tendência antissocial do jovem origina-se numa exclusão
causal de sua família, por ter sido deixado cair fora do desejo do Outro
(abandonado pelo Outro). E a subcultura subterrânea, própria da prisão,
lhe oferece uma bússola para sua deriva angustiosa.
Na subcultura criminosa são os ideais
delitivos os que ordenam as ações delitivas que, neste caso, não chamam
ao Outro, nem se produzem por uma transformação da angústia. O ideal
delitivo é o rumo e a referência simbólica necessária para “ser” um
delinquente e superar a angústia e a culpabilidade.
Em outras palavras, o jovem que age a
partir da angústia não pode se situar a partir de um ideal de
referência; e inversamente, ao oferecer uma identidade, um horizonte e
uma tradição, os códigos delitivos são formas simbólicas de ordenamento
da delinquência. E a afiliação à subcultura e o início em uma carreira
delitiva ou criminosa frequentemente se faz de duas formas, que conduzem
à mesma fixação de uma identidade: o sistema penal e a criminalidade
organizada. O cárcere e a máfia criminosa são dois dispositivos de
transformação do abandono em identidade delitiva, que oferecem um “ser”
no mundo, ali onde se “era” um resto abandonado para o desejo do Outro.
Apesar de suas funções aparentes, o sistema penal é um eficaz aparato de reprodução da tradição criminosa. Logicamente, o acting out delitivo cessa quando o sujeito volta às normas e às identificações, para além de seu significado moral.
Não obstante, a afiliação ao ideal
delitivo não é repentina, mas sim um processo subjetivo ordenado por um
grupo a que pertence. A identificação vai se assumindo paulatinamente
até que se impõe, com valor de “ser” reconhecido pela comunidade
delitiva ou criminosa. A busca de prestígio e a paixão pelo
reconhecimento constituem uma referência ao Outro da subcultura
criminosa; e, neste caso, o jovem à deriva deixa de agir por angústia e
começa a atuar numa carreira criminosa que lhe traça um destino. Assim, o
sistema penal soluciona a angústia do jovem abandonado, oferecendo-lhe a
cultura da ilegalidade e do crime [é desta forma que nossa sociedade
psicanaliticamente falando fabrica os menores delinquentes; Nietzsche
quando fala da mais perigosa desaprendizagem sublinha: “Começa-se por
desaprender a amar os outros e termina-se por não encontrar nada mais
digno de amor em si mesmo” (Aurora)].
http://atualidadesdodireito.com.br/lfg/2013/06/06/de-como-fabricamos-psicanaliticamente-os-menores-delinquentes/
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