sábado, 17 de dezembro de 2011

Esportes que envolvem crueldade contra animais e esportes que envolvem crueldade contra pessoas

Saiu a Folha de hoje (22/8/11):

A morte de um bezerro depois de uma prova na 56ª Festa do Peão de Barretos gerou indignação entre entidades de proteção aos animais. O episódio, que ocorreu na última sexta-feira, será levado à Polícia Civil e ao Ministério Público.
O Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, cuja mobilização conseguiu extinguir a prova do laço em todos os rodeios do país há quatro anos, vai acionar a Justiça para tentar proibir a modalidade bulldog.
‘Nessa prova, o peão se atira sobre o animal e torce o pescoço. Isso é crueldade’, afirmou a presidente do fórum, Sônia Fonseca.
No bulldog, o peão precisa derrubar o bezerro com as mãos, sem o uso de nenhum tipo de equipamento.
Na sexta-feira, o bezerro ficou imóvel no chão da arena de Barretos após ser derrubado pelo ‘bulldogueiro’ Cesar Brosco. O animal foi retirado da arena em um veículo.
Mais tarde, foi constatado que o bezerro havia sofrido uma lesão nas vértebras e, por isso, ficou tetraplégico. Diante da situação, o bezerro foi sacrificado


Os animais estão envolvidos em várias modalidades de ‘esportes”. Hipismo é uma prova olímpica, corrida de cavalos em hipódromos e pesca são outros esportes autorizados no Brasil. Já as rinhas de galo, tiro ao pombo e briga de cachorro são delitos no Brasil, ainda que algumas pessoas os tratem como ‘esportes’.

Óbvio que há muita subjetividade na definição de quando é legal usar animais em ‘esportes’.

Sim, o verbo é ‘usar’, porque animais são objetos para a lei, e não sujeitos, ou seja, eles são ‘usados’, assim como uma bola ou uma chuteira. Eles não ‘participam’ porque participar presume a capacidade de querer e poder ter direitos e obrigações, e apenas as pessoas – para nossa lei – podem/conseguem fazer isso.

Não existe uma regra clara que diz que tipos de esportes envolvendo animais são legais. Isso fica a critério do magistrado. Mas, aparentemente, temos uma propensão de legalizar esportes que envolvam homem com animal (e penalizar as atividades que envolvam animal contra animal, ou homem contra animal); de criminalizar atividades que envolvam sangue; e sermos mais permissivos em relação aos esportes que não envolvam a participação de mamíferos e aves.

Mas atividades com animais não são as únicas que geram controvérsia. Esportes como boxe, jiu-jitsu ou taekwondo também causam dor e machucados. Às vezes deixam sequelas permanentes e às vezes levam à morte. Mas mesmo em casos normais, eles envolvem atividades que seriam delitos se não fossem esportes. Pense nisso: se alguém desse um soco no rosto de outra pessoa andando na rua, o atacante seria condenado e preso. Mas se o mesmo soco é dado em um ringue durante uma luta, ele se torna uma lenda esportiva. Qual a diferença?

A diferença é que os lutadores, ao contrário dos animais, optaram por participar daquele esporte e sabem as regras do esporte (o boi não sabe as regras do rodeio. Ainda que ele aja, ele está apenas reagindo fisicamente às circunstâncias na qual se encontra).

Esses esportes, embora violentos, são praticados dentro de regras claras. Enquanto essas regras forem respeitadas, os praticantes estarão agindo em seu exercício regular de direito (que é uma das excludentes de ilicitude). Mas se quem o pratica extrapolar as regras, será punido criminal e civilmente. Lembrem-se, por exemplo, do caso da mordida de Mike Tyson na orelha de Evander Holyfield em 1997? Morder não é parte do boxe.

Mas isso não quer dizer que os esportes violentos praticados apenas por pessoas também não estejam sujeitos a um determinado grau de subjetividade. Veja o que dizia o artigo 402 de nosso primeiro Código Penal (de 1890):

Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem (...)
Pena – de prisão cellular por dous a seis mezes.
Paragrapho unico. É considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta.
Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro


É isso mesmo: exibições de capoeira nas ruas eram crimes. Mas com o passar do tempo as atitudes sociais mudaram e hoje a capoeira é um esporte largamente praticado no país.

O que é um ser humano?

Saiu na Folha de 20/4/11:
Ao final, os desembargadores da 2ª Câmara Criminal do Rio decidiram ontem que chimpanzé não é gente, apesar de seu DNA ser 99,4% igual ao dos humanos, segundo o relator do processo, e negaram pedido de habeas corpus a Jimmy, um chimpanzé de 27 anos.
O primata vive há cerca de 12 anos no Zoológico de Niterói. A intenção dos ambientalistas que entraram com o pedido é transferir Jimmy para um santuário em Sorocaba (99 km de SP).
Os 30 autores do pedido - quatro professores universitários dos EUA, um representante do Greenpeace, entre outros- argumentavam que, vivendo em uma jaula com pouco mais de 60 m2, o Jimmy estava privado de seu direito à liberdade de locomoção e à vida digna.
No entender do relator do processo, desembargador José Muiños Piñeiro, 'chimpanzé não é alguém'. '[Norberto] Bobbio escreveu que uma tendência de evolução pode nos levar a reconhecer os animais como titulares desse direito, mas por enquanto temos que seguir o que diz a Constituição', disse.
Defensor de Jimmy, o advogado Daniel Braga Lourenço afirmou que negar seu direito é fazê-lo passar pela 'mesma discriminação que índios, negros e mulheres já sofreram'.
Já o advogado Fernando Fragoso, representante do zoológico, argumentou que, se tivessem o direito a habeas corpus, os animais deveriam ter deveres também. 'Então poderíamos criar o crime do 'macaquicídio', caso um deles matasse alguém', disse.
Os advogados de Jimmy, que vai continuar no zoológico, vão recorrer ao STF
.”

Já vimos aqui por que macaco não tem direito a habeas corpus. E também já falamos sobre como os animais são vistos do ponto de vista legal. Hoje vamos usar a matéria acima para falar de dois outros assuntos correlatos:

Primeiro, se o DNA do chimpanzé é tão parecido com o do ser humano, por que ele não é tratado como um ser humano? Afinal, 99,4% ou 99,5% é quase 100%, não?

Não. Existem dois pontos aqui. Primeiro, 0,01% já faz uma diferença enorme. Mas, mais importante, os outros primatas não são humanos porque não descendem de humanos. Esse é um ponto crucial. Um gorila, um chimpanzé ou um orangotango (nossos parentes biológicos mais próximos), por mais similares que sejam geneticamente de um ser humano, não são humanos porque eles não descendem de um ancestral humano. A divisão evolucionária aconteceu antes de haver o ser humano. Se no futuro os seres humanos derem ensejo a novas sub-espécies, estes, sim, serão considerados humanos, já que terão um ancestral humano. Somos da mesma família e tribo biológica (hominidae e hominini, respectivamente) dos chimpanzés, mas de gêneros diferentes:
Classificação biológica de humanos, chimpanzés, orangotangos e gorilas
As espécies (sapiens, neandhertalensis, heidelbergensis erectus, ergaster etc) vêm depois (abaixo) disso, e como somos a única espécie restante do gênero ‘homo’, não dá para saber se um neandertal surgisse do nada ele seria considerado um ‘ser humano’. Provavelmente não, já que ser humano é o 'homo sapiens sapiens', onde o primeiro 'sapiens' se refere à espécie e o segundo se refere à sub-espécie.

Portanto, a questão não é matemática. Se algum cientista conseguisse fabricar um ser geneticamente idêntico a nós usando garrafas plásticas, esse ser, embora com um DNA 100% idêntico, ainda assim não seria um ser humano pois ele descenderia de garrafas plásticas e não de outros seres humanos. Já um clone seria ser humano porque ele descenderia de outro ser humano (aliás, usando o exemplo do clone: a prova de que DNA não é a base para a definição é que um animal clonado - ou seja, cujo DNA é 100% igual ao de sua 'mãe' - é um ente juridicamente diferente de sua 'mãe'. Caso contrário, quem comprasse a 'mãe' estaria automaticamente comprando o animal clonado).

É exatamente esse princípio que faz com que aqueles que dizem que as diferentes raças humanas – arianos, negros, etc – devem ser tratadas de formas diferentes pela lei acabam tropeçando em seu raciocínio jurídico: todos nós, independente de nossas raças, cores ou credos, descendemos de outros seres humanos.

O segundo ponto importante é que o chimpanzé não tem um advogado, da mesma forma como uma cadeira não tem um advogado. Se lembrarmos das aulas de gramática, vamos ver que 'objeto' não possui algo, apenas o 'sujeito'. Em direito ocorre a mesma coisa: os animais, como já vimos aqui, são objetos de direito e não sujeitos de direito. Logo o advogado acima defende não os direitos do chimpanzé, mas os interesses próprios dele (advogado), de alguma associação que o contratou ou mesmo da sociedade como um todo. O chimpanzé (ou o tratamento dele, para ser específico) é o cerne do interesse de quem quer que ele represente.

Fonte: http://direito.folha.com.br/1/post/2011/04/o-que-um-ser-humano.html

Você já se perguntou por que animais podem ser sacrificados mas seres humanos, não?

Saiu na Folha de domingo (27/3/11):

"Donos de cães com leishmaniose lutam na Justiça para livrá-los da eutanásia. Para o Ministério da Saúde, os animais devem ser sacrificados logo após o diagnóstico para evitar a contaminação de pessoas e outros animais.
A doença, causada por protozoário e transmitida pela picada do mosquito-palha, pode matar. Especialistas garantem, porém, que é possível controlá-la com remédio.
O problema é que não há drogas veterinárias aprovadas no Brasil para esse fim, e os ministérios da Saúde e da Agricultura proíbem o tratamento de cães com medicamentos destinados a humanos desde 2008. O objetivo, afirmam, é evitar que o protozoário se torne resistente.
Há duas vacinas cadastradas no Ministério da Agricultura e Pecuária para prevenir o contágio, mas não estão disponíveis na rede pública.
Em meio à polêmica, a psicóloga Márcia de Jesus, 45, de Belo Horizonte, tratou o pitbull Vlad, de oito anos, com um remédio usado para combater uma doença reumatológica em humanos.
Ela conseguiu mostrar à Justiça que o cão não tem mais sinais da doença, contraída há seis anos, e não representa perigo. Venceu a ação
Em Presidente Prudente (a 558 km de SP), a dona de casa Angela Maria da Silva, 50, ainda aguarda uma sentença que pode salvar Pluto, um SRD (sem raça definida) de sete anos, da morte.
Pluto está no canil municipal desde agosto do ano passado, sob ordem judicial. Antes disso, foi tratado com um antifúngico usado em gestantes com leishmaniose.

O Ministério da Saúde não sabe quantos cães são sacrificados por ano no Brasil por causa da doença.
O secretário nacional de Vigilância em Saúde, Jarbas Barbosa, afirma que a eutanásia é indispensável para cães doentes. "’ratá-los significa usar em larga escala os poucos medicamentos que temos para leishmaniose e, com isso, reduzir a eficácia dos produtos em humanos’
".

Você já se perguntou por que animais com doenças ou problemas físicos são sacrificados, e por que seres humanos sofrendo de doenças terminais não podem ter ajuda para se matarem (eutanásia)?

A razão é que animais, para o direito brasileiro, são objetos de direito, enquanto seres humanos são sujeitos de direito. Objeto de direito é literalmente o que a palavra diz: é um objeto. Uma cadeira ou uma calça são objetos. Já o sujeito de direito é a pessoa que tem direitos e obrigações em relação a um objeto e em relação a outros sujeitos. Essas pessoas podem ser física (seres humanos) ou jurídica (empresas, associações etc) de direito privado ou público (governo).

Essa diferença é importante para entendermos porque animais podem ser sacrificados e porque seres humanos não podem sofrer a eutanásia, pelas leis brasileiras, ainda que digam com todas as palavras que querem se submeter a ela.

O principal objeto das leis é preservar nossos direitos. E nenhum direito é mais importante do que o direito à vida. Sem vida, não há como exercer qualquer outro direito. É daí, por exemplo, que vem o direito à legítima defesa, que já vimos aqui.

Mas em relação aos objetos, o pensamento é diferente. Segundo a nossa lei, eles existem para servir aos sujeitos de direito (há limitações a esse ‘servir’, que vamos ver adiante). Se sua existência gera mais risco do que segurança, mais dano do que benefício, o objeto pode ser destruídos para preservar os sujeitos de direito (as pessoas). Se uma árvore ameaça cair em cima de uma casa, ela pode ser removida pela prefeitura. Se um barraco no morro ameaça desabar, ele pode ser destruído. Eles são objetos.

É por isso que, no caso da matéria acima, os animais podem ser sacrificados pelo governo. Uma pessoa sofrendo de uma doença contagiosa não seria sacrificada pelo governo: seria submetida a uma quarentena. (para quem gosta de ficção, se a doença realmente for muito contagiosa e a pessoa se recusar a ficar em quarentena, e acaba pondo em risco a vida de outras pessoas, o governo pode 'abatê-la'). Já um animal que esteja espalhando a mesma doença pode ser sacrificado porque ele é um objeto de direito e não um sujeito de direito. Isso porque o custo de mantê-lo em quarentena não justificaria o riso de ele vir a ser a causa da morte de seres humanos.

Ora, se é assim, você pode matar o cachorro da vizinha que passa o dia inteiro latindo? Não. Os animais são objetos de direito mas, como seres vivos, são protegidos pela lei. Não porque tenham direitos, mas porque seus donos e o resto da sociedade têm direitos conectados a eles. Direitos como o da propriedade (o cachorro pertence a sua vizinha. Se você matá-lo, estará diminuindo o valor do patrimônio da vizinha e causando-lhe um dano emocional, pelos quais você terá a obrigação de pagar) e à moralidade (em uma sociedade civilizada, os animais podem até não ter direitos, mas os padrões de moralidade exigem que tais animais sejam tratados de forma adequada, não porque tenham direitos, mas porque maltratá-los desrespeitaria os parâmetros de moralidade em relação às outras pessoas). É por isso, por exemplo, que as faculdades de veterinária e os laboratórios farmacêuticos são submetidos a regras claras sobre como tratarem suas cobaias.

E o cavalo que é sacrificado porque quebrou a perna? Ele é sacrificado porque (a) a moralidade da sociedade (e isso varia ao longo do tempo e de lugar para lugar) diz que seria imoral forçá-lo a uma existência de dor e (aí entra a diferença em relação aos seres humanos em estado vegetativo) (b) não há justificativa moral ou financeira para não sacrificá-lo.

Controverso? Sim. Tanto é assim que a matéria acima  dá dois exemplos de donos de animais que tentam provar que seus animais já não representam perigo e, portanto, sacrificá-los seria moralmente injustificável. E vez por outra aparece na TV alguém que foi preso por ter sacrificado seu cavalo que quebrou a perna.

Aliás, um último pensamento: você já reparou que nosso sentimento de moralidade é maior quanto mais próxima é nossa proximidade biológica com o ser em questão? Nos sentimos especialmente próximos aos demais primatas. Depois deles, outros mamíferos. Mas somos menos ligados emocionalmente a outras classes. Vemos sempre campanhas para salvar mamíferos, mas com muito menos frequência campanhas para salvar peixes ou répteis, ainda que o percentual de espécies ameaçadas dentro de cada uma dessas três classes seja idêntico: 21%. Situação ainda pior é a dos anfíbios, na qual uma em cada três espécies está ameaçada. Ou dos vermes, na qual mais de 4 em cada cinco espécies está ameaçada. A lista de espécies ameaçadas, compilada pelo
IUCN (International Union for Conservation of Nature and Natural Resources) está abaixo.

Espécies ameaças de extinção por classe
File Size: 42 kb
File Type: pdf
Download File





Fonte: http://direito.folha.com.br/1/post/2011/04/voc-j-se-perguntou-por-que-animais-podem-ser-sacrificados-e-seres-humanos-no.html

Habeas corpus para animais

Saiu no G1 do dia 18 de maio:

Uma briga envolvendo um chimpanzé foi parar no Tribunal de Justiça do Rio. A guarda de Jimmy, que vive há 15 anos no Zoológico de Niterói (ZooNit), na Região Metropolitana do Rio, está sendo reclamada pela ONG Grupo de Apoio aos Primatas (GAP), de Sorocaba, no interior paulista.

Para indignação dos servidores do Zoo, o presidente do grupo, Pedro Ynterian, acusa a instituição de explorar o bicho e mantê-lo em confinamento, o que, segundo alega o reclamante, seria equivalente ao trabalho escravo imposto aos negros no passado.
Ynterian entrou com um pedido de habeas corpus para que o chimpanzé seja transferido para o santuário em Sorocaba, onde viveriam 50 primatas.
Jimmy é conhecido, pois já participou de comerciais e de programas de TV. Antes, passara 10 anos num circo até ser levado para o Zoonit. Atualmente, vive sozinho em uma jaula de 120 metros quadrados.

Nossa Constituição diz que habeas corpus é possível “sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Nosso Código de Processo Penal, que é quem trata do assunto, diz no artigo 647 que “dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar

Reparem que ambos os textos falam em ‘alguém’. ‘Alguém’, para nosso direito, é uma pessoa. Os animais, inclusive os outros primatas, não são pessoas e, portanto, não têm direito ao habeas corpus. Como já vimos em um post anterior, eles não podem ser mau-tratados pois isso seria um crime, mas isso não quer dizer que eles sejam sujeitos de direito (ou seja, que eles têm direitos). Para o direito brasileiro, animais são propriedades e, como tais, são protegidos, mas não possuem direitos (o direito pertence à sociedade e/ou aos donos).

A relação jurídica processual na alienação judicial de imóvel hipotecado

O processo não pode ser considerado um fim em si mesmo, pois tem por finalidade a pacificação de conflitos e a produção de Justiça social. Com base nessa premissa, torna-se importante investigar a figura do devedor hipotecário no contexto do processo de execução.

Isso porque, de regra, o processo executório é configurado por relação jurídica formado entre credor e devedor, tão-somente. Há hipóteses, contudo, em que terceiros devem, necessariamente, figurar na lide, a fim de resguardar a validade dos atos judiciais.

Exemplo dessa situação é aquela em que há penhora de imóvel hipotecado de terceiro. Nesse caso, é correta a conclusão de que os garantidores hipotecários materializam a condição de responsáveis patrimoniais secundários e, portanto, legitimados extraordinários para o processo executivo, haja vista que seus bens encontram-se sujeitos à constrição judicial para a satisfação da obrigação exigida em juízo.
Nesse sentido é a posição de Neves:
"Sendo o sujeito responsável por dívida que não é sua - responsabilidade patrimonial secundária -, é natural que seja considerado parte na demanda executiva, visto que será o maior interessado em apresentar defesa para evitar a expropriação de seu bem. O devedor, que também deverá estar na demanda como litisconsórcio passivo, poderá não ter tanto interesse na apresentação da defesa, imaginando que, em razão da propriedade do bem penhorado, naquele momento o maior prejudicado será o responsável secundário e não ele.
Trata-se de legitimação extraordinária, porque o responsável secundário estará em juízo em nome próprio e na defesa de interesse de outrem, o devedor. Além de extraordinária, parece que tal legitimação permite que os responsáveis secundários sejam demandados já inicialmente, em litisconsórcio inicial com o devedor, em especial quando a própria lei expressamente prevê sua legitimidade, como ocorre com o fiador judicial e o responsável patrimonial. Caso tal litisconsórcio não seja formado no início da demanda, penhorado o bem de sujeito que até então não participa como parte na demanda judicial, a ciência desse ato processual deverá se realizar por meio de sua citação, o que o integrará à relação jurídica executiva supervenientemente.
Para os responsáveis patrimoniais que não têm legitimidade passiva expressamente prevista em lei, a legitimação extraordinária apresenta uma particularidade interessante, considerando-se que para esses sujeitos ela só surgirá no caso concreto quando ocorrer a efetiva constrição judicial do bem do responsável secundário." [01]
A hipoteca, como instituto jurídico de direito real de garantia (artigos 1473/1495 do Código Civil), guarda contornos próprios, sabidamente graves. Ora bem, a liberalidade do credor/exequente não pode chegar ao ponto de, excluindo da lide os devedores/garantidores hipotecários, transformar o processo em injusto meio, desconsiderando os valores mais comezinhos do contraditório e da par conditio, e, ainda, de que "a ciência moderna repudia a falsa idéia de um processo civil do autor". [02]

Assim, inegavelmente, os garantidores hipotecários devem figurar na relação jurídica processual, dado que, como adverte Neves: "No momento processual da penhora o responsável secundário é um terceiro, mas sofrendo a constrição judicial deverá ser citado na demanda executiva, passando a integrar o polo passivo como parte". [03]

A imprescindibilidade da participação dos garantidores hipotecários na lide executiva é, de igual modo, referendada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL. GARANTIA HIPOTECÁRIA PRESTADA POR TERCEIROS. PENHORA SEM QUE OS HIPOTECANTES FIGUREM NO PÓLO PASSIVO DA EXECUÇÃO. INADMISSIBILIDADE.
A lei considera o contrato de garantia real como título executivo.

Logo, o terceiro prestador da garantia pode ser executado, individualmente. Todavia, se a execução é dirigida apenas contra o devedor principal, é inadmissível a penhora de bens pertencentes ao terceiro garante, se este não integra a relação processual executiva.

Recurso a que se dá provimento. [04]

E, ainda:
PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO AJUIZADA CONTRA O DEVEDOR. PENHORA QUE RECAI SOBRE BEM DADO EM GARANTIA HIPOTECÁRIA. AUSÊNCIA DE CITAÇÃO DO TERCEIRO GARANTIDOR. NULIDADE DA PENHORA.
1. É indispensável que o garantidor hipotecário figure como executado, na execução movida pelo credor, para que a penhora recaia sobre o bem dado em garantia, porquanto não é possível que a execução seja endereçada a uma pessoa, o devedor principal, e a constrição judicial atinja bens de terceiro, o garantidor hipotecário.
2. Recurso especial provido. [05]
Colhe-se de trecho do voto-condutor do REsp 472769, citação de Humberto Theodoro Junior (in Curso de Direito Processual Civil. V. II, 44ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 201), em que o processualista assevera:
"(...) Ressalta-se que é totalmente inadmissível pretender-se executar apenas o devedor principal e fazer a penhora recair sobre o bem de terceiro garante. Se a execução vai atingir o bem dado em caução real pelo não-devedor, este forçosamente terá de ser parte na relação processual executiva, quer isoladamente, quer em litisconsórcio como o devedor. Jamais poderá suportar a expropriação executiva sem ser parte no processo, como é obvio. (...)"
Certo é que a alienação direta de imóvel penhorado – ou por intermédio de praça/leilão –, efetivando ato executivo sobre bem daquele que sequer figura na relação jurídica processual - macula e viola a garantia fundamental do devido processo legal prevista no inciso LIV do art. 5º da Constituição, seja em sua feição formal (ao desrespeitar o procedimento legalmente e previamente estabelecido), seja na sua perspectiva substancial (porquanto dos Poderes Públicos exigem-se condutas razoáveis que assegurem o respeito aos direitos fundamentais inclusive em sua dimensão objetiva).

Vale-se, quanto ao tema, da transcrição da ementa do seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal, relator o Ministro CELSO DE MELLO:

E M E N T A: CADIN - INCLUSÃO, NESSE CADASTRO FEDERAL, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, POR EFEITO DE NÃO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS, AINDA EM DISCUSSÃO NA ESFERA ADMINISTRATIVA, REFERENTES A PARCELAS DE CARÁTER NÃO REMUNERATÓRIO (ABONO-FAMÍLIA, AUXÍLIO-TRANSPORTE, AUXÍLIO-CRECHE E VALE-REFEIÇÃO) - IMPOSIÇÃO, AO ESTADO-MEMBRO, EM VIRTUDE DE ALEGADO DESCUMPRIMENTO DAS RESPECTIVAS OBRIGAÇÕES, DE LIMITAÇÕES DE ORDEM JURÍDICA - A QUESTÃO DOS DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS, NOTADAMENTE AQUELES DE CARÁTER PROCEDIMENTAL, TITULARIZADOS PELAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PÚBLICO - POSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO, PELAS ENTIDADES ESTATAIS, EM SEU FAVOR, DA GARANTIA DO "DUE PROCESS OF LAW" - LITÍGIO QUE SE SUBMETE À ESFERA DE COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - HARMONIA E EQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES INSTITUCIONAIS ENTRE O ESTADO-MEMBRO E A UNIÃO FEDERAL - O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO TRIBUNAL DA FEDERAÇÃO - POSSIBILIDADE, NA ESPÉCIE, DE CONFLITO FEDERATIVO - PRETENSÃO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA JURISDICIONAL FUNDADA NA ALEGAÇÃO DE TRANSGRESSÃO À GARANTIA DO "DUE PROCESS OF LAW" - SITUAÇÃO DE POTENCIALIDADE DANOSA AO INTERESSE PÚBLICO - TUTELA ANTECIPADA DEFERIDA - DECISÃO DO RELATOR REFERENDADA PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CONFLITOS FEDERATIVOS E O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO TRIBUNAL DA FEDERAÇÃO. - A Constituição da República confere, ao Supremo Tribunal Federal, a posição eminente de Tribunal da Federação (CF, art. 102, I, "f"), atribuindo, a esta Corte, em tal condição institucional, o poder de dirimir controvérsias, que, ao irromperem no seio do Estado Federal, culminam, perigosamente, por antagonizar as unidades que compõem a Federação. Essa magna função jurídico-institucional da Suprema Corte impõe-lhe o gravíssimo dever de velar pela intangibilidade do vínculo federativo e de zelar pelo equilíbrio harmonioso das relações políticas entre as pessoas estatais que integram a Federação brasileira. A aplicabilidade da norma inscrita no art. 102, I, "f", da Constituição estende-se aos litígios cuja potencialidade ofensiva revela-se apta a vulnerar os valores que informam o princípio fundamental que rege, em nosso ordenamento jurídico, o pacto da Federação. Doutrina. Precedentes. A QUESTÃO DOS DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS, NOTADAMENTE AQUELES DE CARÁTER PROCEDIMENTAL, TITULARIZADOS PELAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PÚBLICO. - A imposição de restrições de ordem jurídica, pelo Estado, quer se concretize na esfera judicial, quer se realize no âmbito estritamente administrativo, supõe, para legitimar-se constitucionalmente, o efetivo respeito, pelo Poder Público, da garantia indisponível do "due process of law", assegurada, pela Constituição da República (art. 5º, LIV), à generalidade das pessoas, inclusive às próprias pessoas jurídicas de direito público, eis que o Estado, em tema de limitação ou supressão de direitos, não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva e arbitrária. Doutrina. Precedentes. LIMITAÇÃO DE DIREITOS E NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, PARA EFEITO DE SUA IMPOSIÇÃO, DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. - A Constituição da República estabelece, em seu art. 5º, incisos LIV e LV, considerada a essencialidade da garantia constitucional da plenitude de defesa e do contraditório, que ninguém pode ser privado de sua liberdade, de seus bens ou de seus direitos sem o devido processo legal, notadamente naqueles casos em que se viabilize a possibilidade de imposição, a determinada pessoa ou entidade, seja ela pública ou privada, de medidas consubstanciadoras de limitação de direitos. - A jurisprudência dos Tribunais, especialmente a do Supremo Tribunal Federal, tem reafirmado o caráter fundamental do princípio da plenitude de defesa, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa ou no âmbito político-administrativo, sob pena de nulidade da própria medida restritiva de direitos, revestida, ou não, de caráter punitivo. Doutrina. Precedentes. BLOQUEIO DE RECURSOS FEDERAIS CUJA EFETIVAÇÃO PODE COMPROMETER A EXECUÇÃO, NO ÂMBITO LOCAL, DE PROGRAMA ESTRUTURADO PARA VIABILIZAR A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. - O Supremo Tribunal Federal, nos casos de inscrição de entidades estatais, de pessoas administrativas ou de empresas governamentais em cadastros de inadimplentes, organizados e mantidos pela União, tem ordenado a liberação e o repasse de verbas federais (ou, então, determinado o afastamento de restrições impostas à celebração de operações de crédito em geral ou à obtenção de garantias), sempre com o propósito de neutralizar a ocorrência de risco que possa comprometer, de modo grave e/ou irreversível, a continuidade da execução de políticas públicas ou a prestação de serviços essenciais à coletividade. Precedentes." [grifado] [06]

A posição de Dinamarco não discrepa:

"No sistema processual, ordinariamente as normas que instituem e regem os procedimentos são portadoras de suficientes oportunidades de participação em contraditório e esse é o fator que as legitima. Elas próprias não teriam legitimidade quando deixassem de oferecer reais oportunidades de participar. Por isso, é falsa a impressão de que a observância dos procedimentos estabelecidos em lei fosse em si mesma um fator de legitimação dos atos de poder (sentenças, ordem de entrega do bem na execução forçada). Em substância, o que legitima a outorga da tutela jurisdicional é a participação que o procedimento propiciou, em associação com a observância da legalidade inerente à garantia do devido processo legal. Um processo não será justo e equo quando os sujeitos não puderam participar adequadamente ou quando, por algum modo, haja o juiz avançado além de seus poderes ou transgredindo regras inerentes à disciplina legal do processo (due process of Law)". [07]

Diante dessas considerações, não é crível supor que o Poder Judiciário, garantidor das liberdades públicas, venha a sujeitar o patrimônio (bem), de quem quer que seja, à injusta restrição, sob pena de violar o devido processo legal (formal e substancial) que deve servir de esteio à ampla defesa e ao contraditório, a par de sua natureza dialógica.

Nesse contexto, conclui-se que é indispensável a participação do devedor hipotecário na relação jurídico-processual formada com o objeto de satisfazer a dívida materializada no aludido direito real de garantia.

SCHULZE, Clenio Jair; ANDERLE, Vitor Hugo. A relação jurídica processual na alienação judicial de imóvel hipotecado. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3089, 16 dez. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20671/a-relacao-juridica-processual-na-alienacao-judicial-de-imovel-hipotecado>.