O presente ensaio problematiza decisão paradigmática do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), que defere pretensão de indenização por danos
morais pelo abandono afetivo dos pais, mas, assenta no voto vitorioso
do relator a inexistência de direito subjetivo das crianças e
adolescentes de serem amados por seus pais. Seu objetivo central é
apresentar argumentos em prol da superação das posições doutrinárias e
jurisprudenciais, que negam o direito de crianças e adolescentes serem
amados por seus pais. O trabalho pautou-se no método indutivo, com
revisão documental centrada na jurisprudência do STJ, legislação
nacional e diplomas internacionais de direitos humanos.
Em 24 de abril de 2012, apreciando o Recurso Especial n. 1159242/SP, a
terceira turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão inédita
no âmbito deste tribunal, com grande repercussão no seio jurídico.
Reconhecia-se que os filhos abandonados afetivamente pelos pais podem
sofrer danos morais e que este ato, ilícito, enseja o dever de
indenizar. O tribunal não pode ordenar o retorno do tempo para que o
dano não ocorresse, mas, buscou pela valorização in pecunia, compensar a
lesão. A decisão, também, tem função pedagógica, ao dissuadir outros
pais a não se furtarem dos deveres inerentes à paternidade.
Porém, ao lavrar seu voto, o exmo. Ministro que relatou a decisão
adentrou em debate que se estende há anos na doutrina e jurisprudência, e
é objeto deste estudo: crianças e adolescentes têm o direito de serem
amados por seus pais?
Amor, que na mitologia grega, era representado por Eros, deus do amor e
do desejo, está presente em estrofes de poetas, nos versos das canções e
serenatas de apaixonados; é segredo divido em diários; representado
pela união dos pontos de curvas convexas que formam o coração; foi tema
para Platão; objeto para psicanálise; combustível para Che Guevara e
tantos revolucionários; e mandamento pregado por Jesus, que ensinou aos
futuros cristãos a amar a Deus e ao próximo.
Todos conhecem o amor, mesmo escapando da razão a possibilidade de sua
perfeita explicação. Fernando Pessoa, em trecho cuja autoria lhe é
atribuída, elucida: “amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra
razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo,
se o que quero dizer-te é que te amo?”.
Mas, para doutrina e jurisprudência, o mais nobre dos sentimentos não
pode ser exigido, pois não é um direito. Trata-se de um corpo estranho
ao universo jurídico, pelo simples argumento de supostamente não estar
previsto no ordenamento. Neste sentido, o Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro decidiu:
1. Indenização. 2. Dano Moral. 3. Objetivo indenizatório deduzido por filha contra o pai, visando à compensação pela ausência de amor e afeto. 4. Ninguém está obrigado a contemplar quem quer que seja com tais sentimentos.
[...] “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei”. 7. Pretensão manifestadamente mercantilista,
deduzida na esteira da chamada indústria do dano moral. (TJRJ, 4ª Câmara
Cível, Rel. Des. Mário dos Santos Paulo, Julgado em 08 set. 2004. apud
MACIEL, 2008, p. 104-105) (grifos nossos)
Em trabalho de Holanda e Barros, sobre a responsabilidade pelo
descumprimento do dever de assistência imaterial, encontramos que
“ninguém é obrigado a amar. Os pais não são obrigados a amar seus filhos
[...]. O Ordenamento Jurídico em nenhum momento, ao regular os deveres
dos pais, impõe o dever jurídico de amar” (2009, p. 10107). Para as
autoras o debate sobre a responsabilização dos pais não deve passar pela
ausência de amor ou de afeto, que não constituiriam obrigações
jurídicas, mas pelo abandono imaterial, compreendido nos deveres de
guarda, criação, educação e convivência familiar.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, negara, na apreciação do
Recurso Especial n. 757.411/MG e do respectivo Embargo de Declaração,
direito à indenização por danos oriundos de abandono afetivo.
Interessante notar, que o Ministro relator do referido Recurso, com o
zelo de não afastar a remota possibilidade de tardio amor paterno, vota
pelo indeferimento da pretensão reparatória. Em suas palavras: “um
litígio entre as partes reduziria drasticamente a esperança do filho de
se ver acolhido, ainda que tardiamente, pelo amor paterno” (Relatório e
Voto, p. 09).
O amor, portanto, não foi compreendido como direito, mas se apresentou
como bem a ser estranhamente tutelado. A criança não recebeu amparo no
braço de seu genitor, nem tão pouco do STJ, mas, na perspectiva do
Ministro, ao negar acolhida pelo Judiciário estar-se-ia protegendo este
bem.
Em pesquisa de jurisprudência deste Superior Tribunal, encontramos
sessenta e seis acórdãos que se referem ao amor: um trata do amor em
decisão sobre protesto de título de crédito; um em ação indenizatória
por danos morais pelo fim de relacionamento concubino; seis afirmam
existir amor em casos de adoção ou guarda; e, o restante negava amor à
formalidade processual, mas exigia a forma prevista em lei. Talvez, o
mais significativo deles seja o Recurso Especial n. 889852/RS, que,
apreciando pedido de adoção por casal homoafetivo, encontra no amor
fundamento para deferir a pretensão.
DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. ADOÇÃO DE MENORES POR CASAL HOMOSSEXUAL.
SITUAÇÃO JÁ CONSOLIDADA. ESTABILIDADE DA FAMÍLIA. PRESENÇA DE FORTES
VÍNCULOS AFETIVOS ENTRE OS MENORES E A REQUERENTE. IMPRESCINDIBILIDADE
DA PREVALÊNCIA DOS INTERESSES DOS MENORES. RELATÓRIO DA ASSISTENTE
SOCIAL FAVORÁVEL AO PEDIDO. REAIS VANTAGENS PARA OS ADOTANDOS. ARTIGOS
1º DA LEI 12.010/09 E 43 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.
DEFERIMENTO DA MEDIDA. [...]
9. Se os estudos científicos não sinalizam qualquer prejuízo de qualquer natureza para as crianças, se elas vêm sendo criadas com amor e se cabe ao Estado, ao mesmo tempo, assegurar seus direitos, o deferimento da adoção é medida que se impõe. [...]
13. A adoção, antes de mais nada, representa um ato de amor, desprendimento. [...]
Retornando ao caso que iniciou este artigo, a douta Ministra relatora,
em seu voto, buscou afastar da apreciação do Poder Judiciário matéria de
natureza intangível e imensurável, o amor. Prendeu-se àquilo que
supostamente poderia ser apreciado pelo discurso racional, medido e
quantificado, o dever de cuidado.
[...] o cuidado é fundamental para a formação do menor e do adolescente; ganha o debate contornos mais técnicos,
pois não se discute mais a mensuração do intangível – o amor – mas,
sim, a verificação do cumprimento, descumprimento, ou parcial
cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar. [...] (Relatório e Voto, p. 08) (grifos do original)
A possibilidade do amor figurar como objeto de uma relação jurídica é
vergastada ao afirmar categoricamente que se trata de matéria
meta-jurídica, própria de outros campos do saber.
Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição
biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da
liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos.
O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais,
situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa
materialização, no universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou
da religião. [...]
Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever. [...] (Relatório e Voto, p. 09) (grifos do original)
Data máxima vênia, ousamos discordar dos posicionamentos
supramencionados. O Judiciário não pode se furtar de apreciar matérias
situadas no campo do “intangível” ou do que não é passível de
“mensuração”, para permanecer no confortável campo do que é “mais
técnico”
[1], sob pena de, no mínimo, violar o direito fundamental de inafastabilidade do Poder Judiciário.
Ainda que o amor não possa ser medido e quantificado, o dano causado à
criança ou adolescente pela sua ausência é passível de mensuração e não
seria estranho à rotina do Judiciário, que diuturnamente aprecia pedidos
de reparação por danos morais à imagem, honra, nome e demais direitos
da personalidade.
Outrossim, a suposta ausência de normatização não pode ser argumento
suficiente para negar o “amor” como direito subjetivo titularizado por
crianças e adolescentes. A lei não é a única fonte do direito, isto já
está claro desde a Lei de Introdução ao Código Civil
[2],
e inúmeros trabalhos têm abordado a pluralidade de direitos que
coexistem na sociedade, ou da força das necessidades como produtora de
novos direitos (WOLKMER, 2004). Não há dúvidas que o amor é uma
necessidade de todos, principalmente para o infante.
Resta, em remate, afastar a impropriedade de que o amor não é um
direito, por, supostamente, não estar previsto no ordenamento jurídico
como “lei”, pois ele já se encontra devidamente positivado.
A lei n. 12.318/10, que dispõe sobre a alienação parental, conceitua-a
como interferência na formação psicológica de crianças e adolescentes
que causa prejuízo à manutenção de vínculos com o genitor
[3].
“Vínculos”, no plural, pode envolver as relações de paternidade e
relativas ao poder familiar, mas, nos parece que especialmente se refere
aos vínculos amorosos e afetivos estabelecidos entre pais e filhos. No
mesmo sentido, Maria Berenice Dias (201?, p. 02) descreve a consequência
da alienação parental como a ruína do vínculo amoroso: “a criança, que
ama o seu genitor, é levada a afastar-se dele, que também a ama. Isso
gera contradição de sentimentos e destruição do vínculo entre ambos”.
Não restam dúvidas, portanto, que o amor no seio das relações familiares
foi definitivamente reconhecido como bem jurídico a ser devida e
legitimamente tutelado.
Mas, muito antes disso, a Declaração Universal dos Direitos da Criança,
adotada pela Assembléia da Organização das Nações Unidas (ONU) em 20 de
novembro de 1959 já era clara a este respeito, ao declarar – e não
instituir – entre os seus princípios, que toda criança tem direito de
ser amada pela família e sociedade.
Também, a Convenção Sobre Direitos da Criança adotada pela Assembléia
Geral da ONU em 20 de novembro de 1989, aprovada pelo Decreto
Legislativo n. 28, de 14 de setembro de 1990 e promulgada pelo decreto
presidencial n. 99.710, de 21 de novembro de 1990, reconhece que a
criança “deve crescer em um ambiente familiar, em clima de felicidade,
amor e compreensão”.
Como outros direitos expressos em tratados internacionais de direitos
humanos são material e formalmente fundamentais, mormente interpretação
conduzida pela doutrina especializada acerca da cláusula aberta de
direitos fundamentais prevista no art. 5º, §2º da Constituição Federal
(PIOVESAN, 2008). Em que pese não ser este o entendimento adotado pelo
Supremo Tribunal Federal, não restam mais dúvidas que os tratados
internacionais de direitos humanos ingressam na ordem jurídica interna
com posição hierárquica destacada, alojando-se acima das legislações
ordinárias e complementares, quando não aprovados pelo procedimento
previsto no art. 5º, §3º, hipótese que equivalerão às emendas
constitucionais.
3 Conclusão
O amor, tema que esteve presente na sociedade deste o sistema mítico de
explicação da realidade e se mantém insuperável na atualidade, tem sido
fustigado pela doutrina jurídica e jurisprudência, que lhe afasta da
condição de direito subjetivo. Crianças e adolescentes, carentes do amor
paternal, encontram barreira no judiciário sempre que buscavam
reparação em face do pai ou mãe, sobre fundamento de que, se não é um
direito expressamente reconhecido pelo ordenamento jurídico, não haveria
um correlato dever jurídico a se atribuir aos pais. Consequentemente,
não se configura ato ilícito passível de reparação. Da análise da
doutrina e dos votos de Ministros do STJ encontramos, ainda,
posicionamentos acerca da intangibilidade do amor, que o tornaria
imensurável e, portanto, impossível de ser apreciado pela técnica
jurídica.
Em sentido contrário, pudemos demonstrar que intangibilidade, bens
imensuráveis e incertezas técnicas não são questões estranhas ao
ordenamento jurídico brasileiro, assim como os “direitos” não são apenas
aqueles previstos em lei, mas que existem diversos direitos sendo
afirmados pela sociedade, em especial, aqueles oriundos da necessidade
humana; também, apresentamos a previsão do amor como um bem jurídico e
direito humano de crianças e adolescentes na legislação pátria e em
tratados internacionais de direitos humanos, que integram a ordem
jurídica brasileira.
Diante disto, sem negar os avanços oriundos do Recurso Especial n.
1159242/SP, que reconheceu a ilicitude da conduta de pai ausente que
abandonou afetivamente filho, provocando-lhe dano moral, cremos ser hora
da doutrina e jurisprudência alterarem posição acerca do direito
subjetivo de crianças e adolescente serem amados por seus pais.
Esta conclusão pode ser alcançada pela técnica – com o estudo do
sistema internacional de direitos humanos, da interpretação da
legislação pátria e da compreensão do direito como um fenômeno que se
cria e reproduz constantemente pela sociedade – ou, simplesmente, pelos
caminhos do coração.
HEIM, Bruno Barbosa.
Amor dos pais: direito das crianças e adolescentes.
Jus Navigandi, Teresina,
ano 17,
n. 3390,
12 out. 2012
.
Disponível em:
<http://jus.com.br/revista/texto/22789>.