No que concerne aos efeitos sobre os vínculos familiares, a doutrina
aponta uma classificação dicotômica da adoção. De um lado, há a adoção
singular, entendida como a realizada a pedido de apenas uma pessoa,
homem ou mulher, e que vem sendo chancelada jurisprudencialmente, não
obstante inexistir previsão textual no ECA. De outro, a adoção conjunta,
que conta com previsão expressa nos parágrafos do art. 42 do Estatuto.
Reproduzo-os:
§ 2o Para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam
casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade
da família.
§ 4º Os divorciados, os judicialmente separados e os ex-companheiros
podem adotar conjuntamente, contanto que acordem sobre a guarda e o
regime de visitas e desde que o estágio de convivência tenha sido
iniciado na constância do período de convivência e que seja comprovada a
existência de vínculos de afinidade e afetividade com aquele não
detentor da guarda, que justifiquem a excepcionalidade da concessão.
Diante do texto de lei, a questão que se coloca é a de saber se essas
hipóteses previstas no Estatuto foram fixadas em numerus clausus ou, ao
revés, poder-se-ia admitir a sua ampliação para o fim de autorizar a
adoção conjunta em situações não expressamente reguladas no texto legal.
Essa dúvida foi recentemente objeto de discussão no STJ. No caso
submetido ao exame daquele Tribunal Superior, a União interpôs recurso
especial com vistas a anular a adoção conjunta de uma criança feita por
uma mulher com seu irmão. A peculiaridade do caso reside, todavia, na
circunstância de o irmão da adotante ter falecido no decurso do
procedimento judicial.
Aí se cuida de invocar o § 6º do art. 42 do Estatuto (com a redação dada pela Lei 12.010/09). Colaciono:
§ 6º A adoção poderá ser deferida ao adotante que, após inequívoca
manifestação de vontade, vier a falecer no curso do procedimento, antes
de prolatada a sentença.
Nesse dispositivo, encontramos a autorização legal para a figura que a
doutrina convencionou denominar de adoção póstuma, post mortem ou
nuncupativa. Sua leitura permite inferir tratar-se de modalidade
especial de adoção, havida em decorrência do falecimento de um dos
adotantes no curso do procedimento. Como o óbito deu-se antes da
prolação da sentença que decide acerca da formação do vínculo filial
adotivo, o legislador cuidou de autorizar o deferimento da medida de
colocação em família substituta, contanto que comprovada a manifestação
de vontade inequivocamente direcionada a esse propósito pelo adotante
falecido. É, por isso mesmo, a única hipótese que admite que a sentença -
que reconhece ao adotado a filiação postulada - possa operar
retroativamente, projetando (ex tunc) os efeitos da coisa julgada então
formada para a data em que o adotante veio a falecer.
No caso concreto, a União impugnou de ilegal a adoção póstuma deferida,
em razão de que teria havido desrespeito à regra do § 2º do art. 42 do
ECA, no sentido de que “Para adoção conjunta, é indispensável que os
adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável,
comprovada a estabilidade da família.” Ora, como os adotantes eram
irmãos, desatendida estaria a norma aludida, porquanto não teriam
satisfeitos os requisitos de casamento, tampouco de união estável.
Sequer virtualmente seria possível pensar em casamento entre os
adotantes, dado haver impedimento civil a obstar que irmãos contraiam o
enlace matrimonial (CC, art. 1.521, IV).
Submetido o recurso especial a julgamento, a Terceira Turma do STJ
entendeu que as hipóteses de adoção conjunta, previstas no artigo 42 do
Estatuto da Criança e do Adolescente, não são as únicas que atendem ao
objetivo essencial da lei, que é a inserção do adotado em família
estável. Seguindo o voto da relatora, Min. Nancy Andrighy, a Turma
entendeu que o pedido de adoção, no caso concreto, confundir-se-ia com o
reconhecimento de filiação socioafetiva preexistente. Sim, pois o
adotante falecido já de há muito construíra vínculo de afeto com o
adotado, aliás, desde que esse possuía 4 anos de idade. Com isso, o
entendimento turmário inclinou-se no sentido de perquirir a inequívoca
intenção de adotar pelo falecido. Uma vez caracterizada essa intenção, a
Turma entendeu que as restrições legais do § 2º do art. 42 do ECA não
se poderiam sobrepor ao melhor interesse do adotando – que, no caso sub
examinen, dava-se exatamente com o reconhecimento judicial da adoção.
Eis as palavras da relatora do caso em apreço:
A exigência legal restritiva, quando em manifesto descompasso com o fim
perseguido pelo próprio texto de lei, é teleologicamente órfã, fato que
ofende o senso comum e reclama atuação do intérprete para
flexibilizá-la e adequá-la às transformações sociais que dão vulto ao
anacronismo do texto de lei.
O mais interessante é notar que, com essa decisão, o STJ superou a
discussão em derredor da adoção conjunta, consistente na sua limitação
legal às hipóteses expressamente consignadas nos parágrafos do art. 42
do ECA. Isso porque, se o julgador reconhecer em concreto que a inserção
do adotando em família substituta atende o interesse superior da
criança e do adolescente (doutrina da proteção integral), a exemplo da
formação pretérita de núcleo familiar estável lastreado em relação
comprovadamente sólida de afeto, seria de todo desarrazoado ater-se a um
legalismo estrito, para impedir o deferimento da adoção. Semelhante
entendimento, que pugna por uma exegese legalista empedernida, iria de
encontro ao próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual
determina, de maneira expressa, que na interpretação dessa lei
levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências
do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a
condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em
desenvolvimento (art. 6º).
A decisão da Terceira Turma do STJ constitui-se em precedente dos mais
importantes quanto ao estudo do instituto da adoção no Direito da
Criança e do Adolescente brasileiro. Nos seus termos, percebemos a
tendência da Corte em superar exegeses estritamente legalistas, em
homenagem à principiologia que encerra o Estatuto, voltada à realização
dos direitos fundamentais de cunho infantojuvenis.
Mais do que isso, a decisão do STJ demonstra que o Estatuto da Criança e
do Adolescente deve ser interpretado à luz da doutrina da proteção
integral e prioritária. Impende, assim, analisar a aplicação das regras
da Lei 8.069/90 teleologicamente orientadas a assegurar a eficácia dos
direitos fundamentais conferidos às crianças e aos adolescentes. Diante
desse orientação teleológica, descabe argumentar-se que requisitos
legais estariam a ser violados, quando se puder observar que
circunstâncias aparentemente não previstas em lei atendem ao interesse
superior do infante.
A conclusão, portanto, é a de que o Estatuto da Criança e do
Adolescente reclama uma interpretação aberta, assecuratória dos direitos
fundamentais infantojuvenis em ordem a dar-lhes máxima expressão
eficacial. Só uma interpretação teleológica dessa natureza tem o condão
de concretizar as normas que integram a arquitetura internacional de
direitos humanos protetiva da infância e da juventude, nos termos das
quais é imperioso reconhecer também às crianças e aos adolescentes a
condição de credores da dignidade da pessoa humana, isto é, de
autênticos sujeitos de direito.
TEODORO, Rafael.
Interpretação teleológica e superação das hipóteses legais
restritivas da adoção conjunta no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Análise da decisão do STJ no precedente da adoção póstuma entre irmãos. Jus Navigandi, Teresina,
ano 17,
n. 3390,
12 out. 2012
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