Parodiando
o programa MasterChef, o personagem foi anunciado no Pânico, na Band,
como "Africano caça e colhe". Semelhante ao desenho animado Monstro da
Tasmânia (de Robert McKimson), o Africano fala como um selvagem
iletrado. Os jurados alternam entre susto e graça. Preparando o vinho,
ele se mexe como um macaco e fica pendurado sobre a plataforma de
madeira onde as uvas são pisadas. Daí, bebe um gole e surta, arregalando
os olhos. A cena lembra o estereótipo do "Preto Velho", que bebe
cachaça e passa a dançar como um louco.
Destruindo um
ramalhete de flores, o Africano faz voz de guerreiro. Depois, dança em
ritmo africano. Quando a câmera o enquadra, ele se esconde, assustado.
Em seguida, cheira a lente. Parece um animal. O elenco – todo branco -
ri.
Para beber água,
não usa copos. Liga a torneira e lambe a água. Lembra um cão cortando o
jato com a língua. Premiado na competição, ouve a apresentadora, "Ana
Paula Padrão FIFA", dizer: "Estou com medo da reação dele". É quando ele
a morde. Celebrando, o Africano pega as lixeiras e começa a bater
tambor. Ao final, foge.
As controvérsias
entre a comédia e os tipos que ela retrata não é algo novo, nem deve ter
fim. Quando Chico Anysio apresentou o personagem Canavieira, que
retratava, no Estados Anysios de Chico City, os prefeitos corruptos, boa
parte dos prefeitos o procurou. "É que não há prefeitos ladrões no
Brasil", criticou a delegação. Chico finalizou: "Mas os Estados Anysios
de Chico City não fica no Brasil".
Apesar de essa
tensão fazer parte da comédia e de estar intrinsecamente ligada à
liberdade de expressão artística, que é protegida constitucionalmente, é
claro que há limites. É bom que haja. A ideia do princípio do nunca
mais é uma baliza. Segundo ele, a sociedade, de tempos em tempos, avalia
quais grupos têm sido alvos de injustiças a serem reparadas. Além da
reparação, costuma-se fixar a ideia do nunca mais, segundo a qual jamais
se tolerará algo que, de algum modo, remeta à situação anterior.
O princípio do
nunca mais não é uma demonstração de que nos tornamos chatos ou de que
nos rendemos ao politicamente correto. É um modo de aceitar que a
sociedade, quando civilizada, faz renovações de acordos quanto ao que é
aceitável ao semelhante. Mudar comportamentos, o que inclui o humor e
seus tipos, é elevar nossos padrões e reforçar o papel da arte como
compromisso social.
Há pouco tempo,
Danilo Gentili twittou o seguinte: "Entendo os velhos de Higienópolis
temerem o metrô. A última vez que entraram num vagão foram parar em
Auschwitz". A região paulistana de Higienópolis é caracterizada por sua
colônia judaica. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo tem
envidado esforços para não só reparar a injustiça do Nazismo, mas também
deixar claro que isso jamais se repetirá. Usar os campos de Auschwitz
como trampolim para uma piada é mostrar-se miserável, exatamente por ter
de recorrer à dor coletiva para tentar arrancar um riso. Gentili se
desculpou. Foi o certo a fazer.
É natural que a
jornada de proteção a determinados grupos renove sua pauta. No Brasil, a
violência doméstica é uma pauta atual e pode, consequentemente,
interferir no humor.
Essa semana, o
país conheceu Gisele, de 22 anos, que teve as duas mãos decepadas pelo
namorado, com quem vivia numa relação de violência extrema há sete anos.
Ela foi esfaqueada seguidas vezes em diferentes regiões do corpo. Antes
disso, havia sido esfaqueada na cabeça. É a violência doméstica
mostrando a sua face.
Segundo os nossos
padrões atuais, felizmente elevados, não seria mais aceitável a
personagem Dona Santinha Pureza, exibida na Escolinha do professor
Raimundo no começo da década de 90. Num dos episódios, Dona Santinha
aparece arrebentada. Ela explica que o marido a transformara numa
"cavala". Ele costumava montá-la. Revelando a única coisa que a
incomodava, Dona Santinha citou as esporas: "tô com as coxas tudo
esporiada". Em seguida, justificou a razão de aceitar aquilo: "Eu
gostio!". O jargão imortalizou a personagem.
Noutro episódio,
ela explicava o jogo "Bola à boca", segundo o qual o concorrente que
acertasse a bola de gude na boca ganhava um prêmio. Perguntada sobre
qual era a boca, ela mostra a dela. "Só leva o prêmio todo quando quebra
um dente. Quando bate no olho, é tiro de canto. Quando eu engulo a
bola, o concorrente é desclassificado. Só ontem, eu engoli 48". Dona
Santinha Pureza explica o que o marido achava: "Ele ficou tão feliz que
me deu uma surra".
Hoje, esse
personagem não sobreviveria. Não é que nos tornamos chatos ou perdemos o
senso de humor. O que mudou foram os nossos padrões. Deixamos de
enaltecer a dor alheia – no caso, das mulheres – porque o tempo mostrou
que a violência doméstica não é algo a ser tolerado, sob qualquer que
seja a forma, nem mesmo por piadas. É o estabelecimento do princípio do
nunca mais, pilar dos direitos humanos.
Edu Sterblitch,
com seu novo personagem, mexeu em algo caro aos africanos nativos e
àqueles que se associam às dores geradas pelas crueldades cometidas
contra eles. Como consequência, foi denunciado à Secretaria de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial da presidência da República. A
iniciativa foi da respeitada Comissão Nacional da Verdade da Escravidão
Negra no Brasil, ligada à OAB. Edu fez questão de pontuar, em seu
twitter, que não é racista. Antes, o site senegalês Seneweb, falando
sobre o caso, perguntava se o Brasil seria um país racista.
O Africano
reforça incrivelmente tudo o que de pior foi construído contra o povo
daquele continente. Retrata-o como selvagem, louco, analfabeto, bruxo e
ignorante. Como se não houvesse fundo nesse poço infeliz, o elenco,
branco, se diverte com a estupidez simbolizada pelo ator, igualmente
branco, que brinca com o passado negro.
O povo africano
sofreu muito. Ainda sofre. Usar um canal aberto de televisão, no país
que tem o maior número de negros fora da África, é a mais contundente
resposta ao site senegalês. Sim, o Brasil é racista. Apesar de o país
seguir tentando reparar as injustiças passadas e encerrar qualquer tipo
de recordação a esse tempo vergonhoso, estamos longe da nossa redenção.
O
certo que o ator Edu Sterblitch tem a fazer, além de pedir desculpas
sinceras, é tirar, imediatamente, o personagem do ar. E, claro, aprender
com o lamentável episódio.
Saul Tourinho Leal é doutor em Direito pela PUC/SP,
professor do IDP e autor de vários livros, dentre eles, "Direito à
Felicidade", cujas pesquisas serviram de base para o voto do ministro
Celso de Mello, do STF, no julgamento sobre as uniões homoafetivas. Foi
professor visitante na Universidade Georgetown e funcionou como
International Expert perante a Comissão de Implementação da Constituição
do Quênia. Atualmente, mora na Cidade do Cabo, África do Sul,
realizando pesquisas em sua área vinculada ao escritório Pinheiro Neto
Advogados.
http://www.migalhas.com.br/Africa/103,MI225310,61044-Africa+do+Sul+Connection+n+35
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