1. INTRODUÇÃO
Tramita atualmente no Congresso Nacional o PL 6583/2013 que dispõe sobre o Estatuto da Família. A proposição tem por objetivo caracterizar o que é família no Brasil, isto é, estabelecer regras jurídicas para designar quais tipos de grupos podem ser caracterizados como famílias.
A Constituição Federal de 1988 já havia trazido importantes avanços para a compreensão do que vem a ser uma família em seus artigo 226, § 3º, 226, § 4º, e 226, § 5º, quando tratou da não necessidade do casamento formal para o reconhecimento da família, quando possibilitou a família ser constituída por qualquer um dos pais e seus descentes, e quando reafirmou a igualdade entre o homem e a mulher na sociedade conjugal, estabelecendo o tratamento igualitário dos filhos, sem qualquer designação discriminatória.
Entretanto, no chamado mundo pós-moderno, novos desejos de reconhecimento de direitos foram surgindo, e juntamente com eles, novas formas de amar, de se relacionar e de se unir. A civilidade e a repressão do mundo moderno foi cedendo lugar a um excesso de liberdade na pós-modernidade, que deu azo a novas demandas, pleitos e concepções sobre felicidade conjugal e parental. Os chamados arranjos homosexuais ou homoafetivos, nos quais pessoas do mesmo sexo podem se unir juridicamente, vem gerando bastante polêmica tanto no mundo jurídico quanto em toda a sociedade, em função de seus reflexos sobre a célula mater da sociedade.
Por trás da aparente e talvez singela discussão jurídica sobre os direitos e deveres das partes, se escondem concepções, valores e ideologias, bem mais complexos, que em última instância, refletem ideários divergentes e conflitantes sobre o que viria a ser a família, e fundamentalmente, sobre sua principal forma de manifestação em nossa sociedade - a família conjugal. A família conjugal tradicional (pai, mãe e filhos), ainda dominante na sociedade brasileira, vai cedendo lugar a novos modelos familiares conjugais e parentais (mulher, mulher e filhos ou homem, homem e filhos) que colocam mais uma vez no centro da discussão, as mesmas antigas e velhas questões ligadas a família tradicional (bens, filhos, direitos, deveres, papéis sociais, violência, entre outros).
Em seu curso “A Família: a partir da família patriarcal” ministrado em 22 de Abril de 1822, Émile Durkheim já travava analisava a família conjugal afirmando:
“Nós não estamos ligados a nossa família porque somos ligados à pessoa do nosso pai, da nossa mãe, da nossa mulher, dos nossos filhos”. Já foi o tempo em que os laços que derivavam das coisas primavam sobre aqueles entre as pessoas, tempo em que toda organização familiar tinha por principal objetivo, manter, na família, os bens domésticos e onde todas as considerações pessoais pareciam secundárias ao lado daquelas”.[1]
Suas análises apontavam para a necessidade de separação do relacionamento das pessoas entre si, e de seus bens materiais. Foi mais além, distinguindo laços parentais de sangue, das relações entre a família e o Estado, chegando a elaborar uma tabela constitutiva dos elementos familiares: I - as relações consanguíneas, II - as relações de marido e mulher, III- as relações com os filhos e IV - as relações da família com o governo, tendo cada uma delas seus níveis pessoas, sociais, econômicos e judiciais. Para ele, a estrutura familiar de uma sociedade só podia ser captada através do estudo dos usos, costumes e leis. Em seu pensamento, ao mesmo tempo em que a família moderna ia ficando cada vez mais privada, ela ia também, se tornando, cada vez mais pública. A constatação de Durkheim, em última instância, revelava que se por um lado havia uma autonomização da família em relação a parentela, vizinhança e toda sociedade, havia por outro lado uma grande dependência do Estado.
Alguns, nos dias de hoje, não sem razão, afirmam que está havendo uma judicialização da vida privada. Assuntos que deveriam ser tratados e decididos no âmbito particular dos indivíduos são levados ao escrutínio das cortes (Estado) que se veem atoladas num crescente cada vez maior de processos, especialmente no âmbito do Direito de Família, julgando e decidindo com bases em teorias e critérios muitas vezes bastante desconexos dos atuais anseios da sociedade. Conflito de gênero, violência familiar, negligência familiar, abandono afetivo, infração entre jovens e adolescentes, entre outros, são temas candentes e intrínsecos a toda e qualquer discussão sobre família na atualidade. Se por um lado obtivemos grandes avanços ao pautar tais assuntos quando nos referimos a família nos dias de hoje, por outro, as fortes e revigoradas ideologias subjacentes a eles, sem dúvida alguma, tem gerado muito mais miopia do que nitidez, quando se busca analisar e compreender os novos arranjos familiares do século XXI.
2. METODOLOGIA
A pesquisa em questão selecionou todos os artigos científicos disponíveis na base de dados SciELO publicados entre os anos de 2000 e 2015 que continham a expressão “guarda compartilhada” através da opção “todos os índices”. A escolha de artigos que tratassem especificamente do tema guarda compartilhada se deu em função da recente aprovação de uma nova legislação brasileira sobre o assunto, e em virtude do tema abarcar toda a complexidade social que gravita em torno da guarda de filhos. A busca dos artigos ocorreu em 14 de março de 2016. O recorte temporal do estudo foi definido tendo por base a ideia de se coletar os entendimentos científicos anteriores a promulgação da Lei 11.698/2008 (primeira da Lei da Guarda Compartilhada)[2]e posteriores a ela. Infelizmente, a base SciELO retornou apenas três publicações sobre o assunto lançadas entre 2009 e 2014. Das três publicações, duas foram feitas em revistas científicas de Psicologia, e uma, em revista científica de Direito. Apesar do objetivo central de cada estudo diferir substancialmente, os três artigos produziram interessantes análises sobre a problemática da guarda compartilhada a partir de interpretações das representações sociais da guarda de filhos, sob o olhar de pais e mães, dos Tribunais de Justiça e de profissionais de Psicologia que atuam em Varas de Família. A partir dos resultados dessas pesquisas foi possível alguns dos principais simbolismos e representações sociais atualmente em voga em torno das figuras conjugais e parentais, do pai e da mãe, que dão sustentação a argumentações favoráveis e contra a guarda compartilhada.
Nesse sentido, buscou-se nesse trabalho identificar quais são os discursos e concepções que gravitam hoje em torno dos papéis sociais dos genitores, e de que modo tais ideias, acabam por radicalizar ou insuflar antigos estereótipos sobre homens e mulheres, afastando-se do objetivo central do instituto da guarda, que é o de prover o sustento e o bem-estar amplo dos filhos.
3. DISCUSSÃO
Falar sobre guarda de filhos significa pensar em última instância em proteção, vigilância e segurança. O instituto jurídico da guarda de menores é um direito-dever, no qual ambos os pais estão incumbidos de exercer em favor dos filhos. Na concepção de NETO (1994) a guarda é um “direito consistente na posse de menor, oponível a terceiros e que acarreta deveres de vigilância em relação a este”. CARBONERA (2000) acrescenta em sua definição a ideia de coercitividade designada pela lei ou por uma decisão judicial: “Instituto jurídico através do qual se atribui a uma pessoa, o guardião, um complexo de direitos e deveres, a serem exercidos com o objetivo de proteger e prover as necessidades de desenvolvimento de outra que dele necessite, colocada sob sua responsabilidade em virtude de lei ou decisão judicial."
Para SILVIO RODRIGUES (1995) a guarda é a um só tempo direito e dever no sentido de que cabe aos pais criarem seus filhos dando-lhes proteção e os livrando do abandono, e ao mesmo tempo exercendo vigilância, fazendo dos genitores os responsáveis pelos atos dos filhos. O Código Civil de 2002 destaca que os genitores gozam dos seguintes direitos em relação aos filhos, conforme artigo art. 1634: I) dirigir-lhes a criação e educação; II) tê-los em sua companhia e guarda; III) conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV) nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; V) representá-los, até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VI) reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; VII) exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
Em contrapartida, os genitores arcam com os seguintes deveres: a) não abandonar pessoa que está sob cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, sob pena de incursão no crime de abandono de incapaz (art. 133, CP); b) prover a instrução primária de filho em idade escolar, sob pena de responder pelo crime de abandono intelectual (art. 246, CP); c) prover a subsistência de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, não lhe proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, sob pena de caracterização do crime de abandono material (art. 244, CP).
Entretanto, apesar da doutrina jurídica destacar que a guarda é um direito-dever de ambos os genitores, nos casos de separações e divórcios o que se verifica em termos reais e concretos é uma situação bastante diferente da prevista nos principais marcos legais brasileiros (Lei 11.698/2008, Lei 13.058/2014, e Estatuto da Criança e do Adolescente)[3].
A série histórica da pesquisa Registro Civil realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)[4] mostra que nos últimos trinta anos a assimetria de gênero nas concessões judiciais de guardas de filhos, a ex-cônjuges (pais e mães), cresceu em níveis exponenciais. Em 1984 foram concluídos na justiça de primeira instância em todo o Brasil um total de 16.348 processos de divórcios envolvendo casais com filhos menores de idade. Deste total, em 12.900 processos finalizados a guarda do(s) filho(s) foi dada à mãe, em 2.017 processos a decisão judicial foi atribuição de guarda ao pai, em outros 575 processos a guarda foi dada a ambos os cônjuges[5], e no restante, a guarda foi concedida a terceiros ou não havia declaração sobre essa informação.
Trinta anos depois, em 2014, os números coletados pelo IBGE mostraram que a diferenciação entre pais e mães no que tange a obtenção da guarda dos filhos em processos judiciais, se agudizou ainda mais. As concessões de guardas maternas foram feitas num total de 124.951 processos finalizados em primeira instância no ano de 2014. O crescimento registrado nas concessões de guardas unilaterais maternas entre 1984 e 2014 foi da ordem de 9,6 vezes, enquanto as concessões de guardas unilaterais paternas aumentaram apenas 4,0 vezes. As guardas concedidas a ambos os cônjuges tiveram aumento de 19,2 vezes. Ainda que tenha havido concomitantemente um crescimento bastante elevado no número total de divórcios envolvendo crianças e adolescentes menores de idade em 2014 (146.898), em termos relativos, os comparativos não deixam dúvidas quanto a profunda diferenciação praticada pelo Poder Judiciário entre pais e mães ao longo dos anos. Entre 1984 e 2004 as concessões de guardas unilaterais maternas cresceram 10,7%. Em sentido inverso, as sentenças judiciais que concederam a guarda unilateral paterna caíram 6,9% entre 1984 e 2014.
POR TRÁS DA GUARDA DE FILHOS
Uma possível pista para a compreensão desse fenômeno talvez possa ser encontrada nos chamados estudos de gênero. Segundo THURLER (2004) o não reconhecimento dos filhos por parte dos pais no Brasil é fruto da persistência de práticas patriarcais, onde o arbítrio masculino, foi e tem se mantido naturalizado. Em estudo realizado em 2004 a pesquisadora detectou que a prevalência de não registro de nascimento por parte dos pais de crianças era da ordem de 12%. Já sem reconhecimento materno foram encontradas apenas 230 crianças de um universo total de 21.991 registros, o que perfazia uma incidência de apenas 0,12%. Extrapolando seus dados coletados em nível local para uma estimativa nacional a socióloga chegou a uma taxa anual média de 25% de não reconhecimento paterno no país. Para a autora a deserção paterna é a mais pura manifestação do patriarcalismo que “indica a persistência da hegemonia conferida ao marido da mãe e às práticas patriarcais no tratamento de meninas e meninos concebidos e nascidos fora do casamento – em relações eventuais, em relações estáveis”. Aprofundando ainda mais sua análise THURLER destaca:
“O Código Civil brasileiro de 1916, estabeleceu em matéria de filiação que "o pai é o marido da mãe". E, em seu Artigo 358, interditou qualquer busca da paternidade. Está já aí contida a presunção de mentira, a destituição de credibilidade de toda mulher fora do casamento. A rigor, sequer a mulher casada estaria a salvo da presunção de mentira, pois ela não poderia declarar não ser o marido, o pai de seu/sua filho/a. O 2º Código Civil brasileiro – Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – explicitou sem constrangimentos, já no século XXI, o que o Código de 1916 havia deixado subentendido: nos Artigos 1.600 e 1.602, estabelece: "Não basta o adultério da mulher, ainda que confessado, para ilidir a presunção legal da paternidade [do marido]" e "Não basta a confissão materna para excluir a paternidade [do marido]". A palavra da mulher não deve ser legalmente considerada como crível, nem para negar a paternidade, nem para constituí-la”.
Rosana Facchin (2003, p. 139) analisando a questão asseverou: "A nova legislação não se preocupou em dar valor jurídico à posição da mulher, permanecendo a ausência de atribuição de sentido à declaração materna". Desigualmente, no Artigo 1.601, o Código Civil possibilita a desconstrução, pelo homem, de qualquer presunção, estabelecendo que toda paternidade é igualmente contestável, mesmo no interior do casamento. Eis, textualmente, esse artigo: "Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível." Assim, o Código Civil de 2002 ao acabar, unilateralmente, com o princípio de que "o pai é o marido da mulher" – pois somente o pai pode, a qualquer tempo, questionar a paternidade do filho de sua mulher – institui e legitima a possibilidade de práticas não igualitárias entre homens e mulheres, confrontando o princípio de igualdade entre homens e mulheres, constitucionalmente estabelecido.
Com base nas argumentações anteriores uma importante questão se coloca: estaria então o poder judiciário brasileiro “reestabelecendo” a igualdade entre homens e mulheres, através de decisões majoritárias de guardas unilaterais maternas, ou apenas reconhecendo determinados direitos usurpados no passado? Por que haveria hoje uma demanda por um direito igualitário para homens e mulheres se no passado não fora assim?
Para tentar entender esse problema e tomando por base a teoria do reconhecimento de Axel Honneth as perguntas que deveríamos fazer seriam: qual o tipo de auto-relação que caracteriza a forma de reconhecimento de um direito, e, como é possível que uma pessoa desenvolva a consciência de ser sujeito de direito? (MELO, 2004). Para Honneth o reconhecimento de direitos nas sociedades tradicionais está ancorado a concepção de status. Porém, nas sociedades modernas e contemporâneas, o direito deve ser geral, não sendo mais permitida a atribuição de privilégios e exceções. Em outras palavras, direitos devem andar separados de juízos de valor. Mas estariam os paradigmas da justiça usualmente alinhados com a “moralidade” aptos a dar conta de reivindicações pelo reconhecimento da diferença? (FRASER, 2007). Essa é uma pergunta central no pensamento de Nancy Fraser para se distinguir “questões de justiça” de “questões de boa vida”[6], e se realizar a transformação da ordem simbólica através da desconstrução dos termos que estão subjacentes às diferenciações de estatutos existentes de forma a mudar a identidade social (FRASER, 2002). Por essa linha de raciocínio e pensando o conflito em torno da guarda de filhos como uma questão de justiça, podemos tentar refletir sobre quais demandas sociais (reconhecimento, redistribuição, equidade, etc.) estariam representadas nessa disputa.
Observando a recente jurisprudência dos Tribunais brasileiros sobre guarda de filhos menores de idade em processos de separação e divórcio não é difícil perceber algumas dissonâncias entre os elementos de equidade, reconhecimento e redistribuição. BRITO (2003), em análise de jurisprudências produzidas entre os anos de 2008 e 2010 por tribunais de três estados brasileiros, buscando identificar as razões e motivos que embasam as decisões de aceitação ou rejeição da guarda compartilhada, detectou:
“Na investigação empreendida, foi possível concluir pela existência de certa dissonância entre os argumentos utilizados para se negar a aplicação da guarda compartilhada e os resultados de trabalhos e pesquisas desenvolvidos pelas ciências humanas sobre o tema. Ou seja, os achados das pesquisas não fornecem dados que sustentem as conclusões dos referidos julgados. Tampouco se encontram na Lei nº 11.698/08 as justificativas alegadas em muitos acórdãos”.
O que em termos fáticos diz respeito ao campo dos direitos da criança, para alguns setores dos movimentos feministas, é uma questão relativa aos direitos dos homens e das mulheres, e portanto, imerso, nas chamadas ideologias de gênero. Em artigo publicado em 2014 a Organização Não – Governamental feminista Geledés afirmava:
“A declaração automática da guarda compartilhada somada ao conceito raso apresentado pelo projeto pode gerar resultados negativos para a sociedade brasileira e principalmente para as crianças e mulheres vítimas de violência doméstica”[7]. (...) Infelizmente, tais pesquisas ainda possuem poucos dados e não é possível verificar qual o nível de conflito/interesse dos genitores na busca das responsabilidades igualitárias com os filhos, e quantos deles, após a regulamentação das visitas, cumpriram os acordos e se fizeram presentes na vida dos filhos”.
Em nota técnica datada de 21 de Novembro de 2014 o Centro de Estudos Feministas e Assesoria (CFEMEA) alertava sobre o perigo de aprovação do PLC 177/2013[8] destacando:
“A automaticidade da declaração de guarda, caso o projeto venha a ser aprovado, poderá, além de prejudicar as crianças envolvidas, ampliar e prolongar eventuais situações de violência doméstica, forçando a vítima a ter a constante presença do agressor próximo a ela. Por isso é importante que cada caso seja analisado, de modo que cada família tenha suas particularidades contempladas pelo judiciário”[9].
Ocorre que o cerne do instituto jurídico da guarda compartilhada não está na figura dos genitores, mas sim, no bem-estar físico, emocional e psíquico das crianças e dos adolescentes. Em estudo de revisão da literatura internacional sobre guarda compartilhada, NORONHA & VALENTIN (2015) apontaram:
“As conclusões dos primeiros estudos científicos com forte nível de evidência foram categóricas: os “filhos do divórcio” adoecem mais do que os filhos de famílias nuclearese dentre os primeiros, aqueles criados em regimes monoparentais adoecem mais do que os criados em arranjos biparentais. O fator crucial para definir o duplo referencial é que além do exercício compartilhado da autoridade parental, deve haver o duplo referencial em termos da custódia física das crianças e adolescentes. Neste sentido, existem evidências suficientes de que mesmo as crianças e adolescentes criados sob a malfadada guarda alternada adoecem menos do que aqueles em guarda unilateral de um dos pais. O último estudo que poderia ser considerado contrário à guarda compartilhada foi publicado em 1999, e ainda assim, pode ser contestado, por tratar-se de um pequeno estudo de caso e cujos resultados foram abaixo do nível de significância estatística”.
Por que então haveria tanto óbice para a aplicação de um instituto jurídico que em essência iguala homens e mulheres em direitos e deveres, e proporciona ao infante as melhores e mais plenas capacidades de desenvolvimento?
4. RESULTADOS
A compreensão da simbologia e das representações sociais que envolvem os discursos sobre os papéis de pai e mãe, em relação a guarda dos filhos passa fundamentalmente pelas noções de conjugalidade e parentalidade. A relação conjugal ao longo do século XX ganhou muita importância devido a concepção de que a família molda o desenvolvimento psicossocial de seus membros ao longo de toda a vida, e não apenas na infância (ALMEIDA & CUNHA, 2013). Assim, toda e qualquer ruptura na conjugalidade implicaria em ressignificações da família, uma vez que, segundo CANO, GABARRA, MORÉ & CREPALDI (2009), a estrutura da família se altera com a dissolução da conjugalidade.
Por mais complexo que possa ser a permanência dos laços parentais é “essencial ao bem estar dos filhos” após o término da relação conjugal segundo FÈRES-CARNEIRO (1998). Quem se separa é o casal conjugal, e não, o casal parental. Em 1961 quando o psiquiatra e psicanalista Paul Claude Recamier cunhou o termo parentalidade, através da junção das palavras maternalidade e paternalidade, ele já via a necessidade de se integrar o bebê na ótica da teoria psicanalítica, quando do tratamento de adultos perturbados. De lá para cá o conceito foi se ampliando com o intuito de abarcar não apenas o caráter biológico, da simples concepção de filhos, mas para se tornar um processo psíquico de internalização dos desejos de ter uma criança, de acompanhar a gravidez, e de fazer parte do desenvolvimento da criança ao longo da vida.
Falar em guarda de filhos, via de regra, para o senso comum, significa quase que a mesma coisa que falar em guarda materna. A guarda unilateral é vista pelas mães como causadora de forte sobrecarga sobre o guardião exclusivo, porém, poucas mulheres entendem que o pai deva ter um papel mais ativo nos cuidados e na vida dos filhos. Em pesquisa realizada em 2014, SCHNNEBELI & MENANDRO, entrevistaram 15 homens e 15 mulheres solteiros, casados, separados/ divorciados, em união estável e viúvos, com vistas a conhecer os motivos que levavam homens e mulheres a optar por determinado tipo de guarda de filhos. Um dos principais resultados encontrados foi a forte ligação entre as noções de conjugalidade e parentalidade, tendo o filho como representação do “elo” do casal. A maioria dos respondentes (homens e mulheres) disseram que os filhos devem ficar com as mães, inclusive, os participantes homens, que detinham a guarda dos filhos. A justificativa dada pelos respondentes adveio de uma espécie de “concepção natural” de que a mãe é a pessoa mais preparada para ficar com filho. Porém, no decorrer das entrevistas, com o aprofundamento do estudo, certas opiniões foram sendo modificadas. Para as pesquisadoras, inicialmente, o que se manifestou entre os participantes da pesquisa foi o preconceito natural contra a figura do pai.
Ao passar das entrevistas em profundidade para as respostas a um questionário padronizado alguns participantes modificaram seus pontos de vistas sobre a guarda de filhos, e eme especial, sobre a guarda compartilhada. Quando indagados a responder sobre o significado da guarda compartilhada, a possibilidade de ambos os genitores conviverem com seus filhos, foi apontada como a grande vantagem. O aspecto negativo mais citado foi a possível confusão que essa modalidade de guarda pode causar na criação dos filhos, em função da falta de referência de lar. Outro aspecto de suma importância sobre a guarda compartilhada apontado pelos genitores e que ela envolve pactuação, isto é, acordos entre os genitores.
A conclusão da pesquisa aponta que “as representações sociais dos papéis feminino e masculino, ainda sob ancoragem tradicional, dicotomizada, influenciam em muito as representações sociais da maternidade” refletindo também sobejamente às representações do casamento e da conjugalidade. Para as pesquisadoras o modo como mães e pais representam os tipos de guarda, passa necessariamente, pelo modo como representam seus papéis de mulher e homem, de mãe e de pai. Por esse entendimento, a questão de gênero assume lugar central na definição da escolha do tipo de guarda, de maneira totalmente diferente por homens e mulheres. De acordo com os achados das autoras, a noção de parentalidade sequer foi alcançada pelos discursos dos entrevistados.
De modo um pouco diferente, mas tendo por base a mesma linha de raciocínio que diferencia pais e mães em relação a conexão entre seus papéis conjugais e parentais, o Poder Judiciário brasileiro entende que a separação conjugal gera situações de não colaboração entre os genitores que seriam prejudiciais aos infantes. Analisando acórdãos prolatados por importantes Tribunais de Justiça brasileiros a pesquisadora (LEILA TORRACA, 2013) detectou a forte presença desse pensamento em julgados de 2ª instância:
(...) Porquanto, nem mesmo a determinação judicial no sentido de impor a guarda compartilhada às partes possibilita, no plano fático, o funcionamento desta espécie de guarda, atrelada inegavelmente à colaboração de ambos os genitores no desenvolvimento do infante (Proc. Nº 1.0525.08.146080-6/001 (1) - TJMG)[10]
O que o acórdão acima deixa bastante claro é a suposição de que após a separação conjugal a possibilidade de colaboração entre os genitores fica prejudicada. É bem verdade que os processos de separação e divórcio trazem as partes muitas mágoas e ressentimentos, e em muitos casos cessa-se o diálogo entre a partes. No entanto, sabemos também que a “suposta” colaboração em prol das crianças não ocorre em sua plenitude entre casais que se encontram casados. Cada vez mais no mundo atual, pais e mães delegam a terceiros o cuidado parental. Nos casos de famílias pobres, esse cuidado é realizado por demais entes familiares, como tios, tias, avôs e avós, e nas camadas médias e mais abastadas, ele é feito por creches, escolinhas, babás e empregadas.
Segundo a análise da pesquisadora na integra do acórdão o relator afirma que a lei[11] significa um retrocesso, pois entende que o critério de melhores condições, que norteia as decisões sobre a guarda unilateral, atenderia de forma adequada aos interesses da criança. Para a autora avaliar com quem a criança deve possuir vínculos mais afetivos (no caso mãe), com a finalidade de decidir sobre o regime de guarda, significa condenar o menor a uma filiação unilateral, contribuindo para a geração de distanciamento físico e afetivo por parte do outro genitor.
Em outro acordão do TJMG a não modificação do regime de guarda unilateral para guarda compartilhada foi justificada pela não existência de conduta desabonadora por parte da genitora guardiã. Nas palavras do relator do acórdão: “Ademais, inexiste nos autos qualquer indicação de conduta desabonadora da genitora que pudesse afastar o exercício da guarda da filha [...]” (Proc. Nº 1.0079.09.923860-6/001 (1) - TJMT[12].
Ora, somente então uma conduta inadequada por parte da mãe seria justificativa para a alteração do regime de guarda? Por essa linha de raciocínio fica evidente a superioridade do gênero feminino, em relação ao masculino quanto a aptidão para o exercício da guarda de filhos.
A comprovação desse argumento fica totalmente evidenciada pelo texto do acórdão nº 70033272063 do TJRS no qual, segundo Torraca “mesmo ao reconhecer que tanto o pai quanto a mãe estariam aptos ao exercício da guarda da criança, o relator da jurisprudência optou por não aplicar a guarda compartilhada, tendo em vista que não havia fato desabonador da conduta materna no exercício da guarda única”[13].
Tal qual para pais e mães e para os juízes, a questão da separação entre conjugalidade e parentalidade também foi reportada em outro estudo que analisou opiniões de psicológos brasileiros que atuam em Varas de Família sobre a guarda compartilhada. Apesar de haver uma confluência entre as respostas dos participantes de que “os profissionais chamados a intervir devem mediar as relações, levando os pais a compreender que o fim da conjugalidade não deve significar que um deles tenha que abrir mão do exercício da parentalidade”, quando inquiridos a indicar quais fatores seriam importantes na opinião deles para recomendar a guarda compartilhada, itens como relacionamento entre os pais e flexibilidade dos pais, obtiveram os maiores escores na escala de importância. Isto é, apesar do discurso dos profissionais de Psicologia parecer se preocupar com a parentalidade, na prática, ele é todo calcado na noção de conjugalidade. Alguns outros trechos da parte qualitativa da pesquisa sobre a concepção de guarda compartilhada, não deixam dúvidas sobre a dualidade entre os conceitos de conjugalidade e parentalidade na ótica dos Psicólogos.
“Penso ser por possível naqueles casos em que os casais tenham uma boa elaboração da separação, onde os filhos não estejam ocupando o lugar de projeção das mágoas pessoais”
“É necessário que a relação entre o casal esteja bem resolvida e que haja uma boa comunicação entre eles”[14].
Como conclusão de seu estudo, LAGO & BANDEIRA (2009) identificaram que 80% dos profissionais estudados tinham experiência no assunto guarda compartilhada. Não obstante, quando questionados sobre serem ou não favoráveis a aplicação do regime de guarda compartilhada 64% se disseram favoráveis, 8% desfavoráveis e 28% afirmaram não ter uma opinião fechada, não sendo possível recomendar a guarda compartilhada sem uma análise da situação concreta dos casos.
5. CONCLUSÕES
Pela pesquisa em questão podemos perceber que alguns pesquisadores e estudiosos brasileiros buscaram compreender através de estudos com diferentes públicos-alvo quais são as visões e os argumentos utilizados por segmentos da sociedade brasileira acerca da guarda de filhos. A constatação mais evidente, traço comum a todos os estudos aqui analisados, diz respeito a pouca clareza e ao superficial entendimento sobre os conceitos de conjugalidade e parentalidade. Na realidade, o conceito de conjugalidade parece ser o único que é colocado em evidência, se tornando assim, caracterizador de todas as relações familiares. Sem a conjugalidade parece não ser possível se falar de família, e muito menos de prole. As representações sociais e simbolismos em torno das figuras de pai e mãe continuam a existir fortemente ligadas ao conceito de conjugalidade. O casal conjugal é o elo inicial. Se não há conjugalidade, “parece não ser possível falar em parentalidade”. Mesmo com todo o avanço das minorias em prol do reconhecimento de seus sentimentos, de suas liberdades e de seus desejos, a sociedade brasileira parece continuar insistindo na manutenção da visão clássica de família, colocando a margem, e sob os auspícios dos rigores da lei, todo e qualquer indivíduo que ouse querer compor novos arranjos familiares, diferentes, dos ditados pela clássica família patriarcal brasileira.
No afã de garantir o empoderamento e os direitos das mulheres, setores dos movimentos feministas, não percebem que o rechaço ao regime da biparentalidade só continua a acarretar sobre elas mesmas, maiores ônus. Utilizando a justificativa da violência contra mulher e do abandono de filhos, o feminismo radical apenas reifica a velha dualidade biológica (macho versus fêmea), fazendo do conflito de gênero, e da divisão segundo o sexo, a marca distintiva e definidora, não de uma concepção parental, a ser reivindicada por homens e mulheres, mas do exercício da maternidade e da paternidade, que em última instância, parece estar mais preocupado apenas com o cuidar, e não com o conviver. Nessa mesma órbita gravita o poder judiciário brasileiro, totalmente distante das modernas concepções científicas e dos novos anseios da sociedade, insistindo na velha e empoeirada cantilena social de que a mãe cabe o cuidar, e ao pai o prover.
Apesar das limitações da pesquisa em questão foi possível constatar que: a parca literatura nacional sobre o tema é um forte indicativo da dominância de uma visão “naturalizada” sobre a questão, a guarda compartilhada altera a balança de poder entre homens e mulheres, portanto, vem sendo rechaçada por setores do movimento feminista, o poder judiciário apesar de justificar suas decisões com base no “melhor interesse da criança”, na prática, o que faz é condenar crianças e adolescentes a viverem órfãos de pais e vivos, e os profissionais da psicologia que deveriam analisar a problemática sobre um prisma mais amplo e levando em conta os múltiplos vetores sociais que atuam sobre os processos de ruptura conjugal, manifestam desconfiança e preconceito em relação a novos regimes de guarda.
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NOTAS
[1] Apud DE SINGLY, François. Sociologia da família contemporânea. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2004.
[2] Em 22 de Dezembro de 2014 foi sancionada a Lei 13.058/2014 que substituiu a antiga lei 11.698/2008. A nova lei da guarda compartilhada foi fruto da luta dos movimentos sociais de pais, mães e familiares de filhos de casais separados / divorciados em prol de uma maior isonomia entre pais e mães no exercício das funções parentais. A Lei 13.058/2014 transformou a guarda compartilhada em regra em casos de separações e divórcios quando da existência de filhos menores de idade.
[4] Conforme dados extraídos do Sistema de Recuperação Automática do IBGE – SIDRA em março de 2016.
[5] Em 1984 não havia no Brasil legislação sobre guarda compartilhada. Entretanto, o instituto jurídico da guarda compartilhada já era conhecido, e em alguns casos, aplicado por aqui. Até o ano de 2014 o IBGE utilizou no questionário de coleta de dados da pesquisa Registro Civil a expressão “ambos os cônjuges” para designar concessões de guardas de filhos menores tanto ao pai quanto a mãe desses menores.
[6] Nancy Fraser destaca que grande parte da filosofia moral recente concentra-se em disputas acerca da posição relativa dessas diferentes ordens de normatividade.
[7] Disponível em: <http://www.geledes.org.br/feministas-analisam-plc-da-guarda-compartilhada-aprovada-no-senado/>. Acesso em: 18 mai. 2016.
[8] O PLC 117/2013 tratou da alteração dos arts. 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, para estabelecer o significado da expressão “guarda compartilhada” e dispor sobre sua aplicação.
[9] Disponível em: <http://www.cfemea.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4476&catid=212&Itemid=146>. Acesso em: 24 mai. 2016.
[10] Idem, p. 302
[11] Referindo-se a Lei 11.698/2008 (primeira lei da guarda compartilhada)
[12] ibidem, p. 306
[13] ibidem, p. 306
[14] Para outras informações vide: <
Fonte: VALENTIN, Fernando. Por trás da guarda de filhos: o que os números não dizem. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 22, n. 4962, 31 jan.2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/55212>. Acesso em: 1 fev. 2017.
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