Por Marcílio Toscano Franca Filho e Inês Virgínia Prado Soares
A nova gestão municipal de São Paulo completa na próxima quarta-feira (1º/2) seu primeiro mês e, entre outras medidas, parece ter declarado guerra ao grafite. Essa “war on graffiti” – tristemente presente em tantos lugares hoje em dia – tem resultado em rápidas remoções, penalidades mais severas, aumento da vigilância e segregação das áreas grafitadas.
A supressão de grafites que faziam parte da paisagem urbana da cidade de São Paulo, uma das tarefas da operação Cidade Linda, expôs não somente a difícil relação que esse tipo de arte mantém com o poder público, seja ele mecenas, regulador, incentivador, protetor, comprador ou censor, mas também a dificuldade dos governos de garantir e respeitar os direitos culturais.
Entre o cinza das paredes e a perspectiva de tornar a cidade linda e limpa, há um desconforto de grande parte da população, que pressente, com razão, que as tintas carregadas nessa discussão não se harmonizam com um cenário citadino mais humano.
Situado em um complexo cruzamento entre os sistemas comunicacionais escriturais (como letra) e os sistemas comunicacionais picturais (como traço), o grafite detém uma dignidade intelectual e estilística que lhe dota de amparo legal e proteção jurídica. Como movimento estético, o grafite – que não se confunde com o ato de pichar, conduta tipificada como crime por lei – começou a ganhar força a partir da década de 1970 e logo foi absorvido pelo mercado dito “mainstream” de arte.
Não demorou para ser aplaudido por teóricos, críticos, curadores, museus, galerias, casas de leilão e por um público formado por passantes, flâneurs, turistas e moradores da cidade. Instituições do porte do Museu de Arte de São Paulo (MASP), do Brooklyn Museum (Nova York), do Amsterdam Museum (Holanda), das Bienais de Veneza e São Paulo e do Tate Modern (Londres) já abrigaram mostras sobre o tema.
Essa valorização criou um paradoxo: originalmente concebido para ser algo anônimo, surpreendente, espontâneo, efêmero e marginal, o grafite, os grafiteiros e, sobretudo, os seus apreciadores começaram a reivindicar estabilidade temporal e proteção jurídica para as obras.
Mesmo não havendo muitos litígios sobre o direito ao grafite no Brasil, há sobre ele consistente proteção extraída da constituição federal, que destaca a necessidade de tutelar os valores cotidianos da cidade, a liberdade de manifestação artística, a participação dos cidadãos na vida cultural urbana, além de considerar como patrimônio cultural brasileiro os espaços destinados às manifestações artístico-culturais (artigos 182, 215, 216 e 225). E mais: tanto o “direito à paisagem” como o “direito à integridade da obra de arte”, ambos previstos em nossa legislação, também constituem fundamentos para a proteção do grafite, dos grafiteiros e dos cidadãos urbanos.
Grafite é um bem cultural vocacionado à fruição coletiva e sua proteção encontra respaldo no próprio direito, previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de todo homem participar livremente da vida cultural da comunidade e de fruir as artes.
Esse direito cultural ao grafite contém dupla dimensão: o direito de grafitar e o direito de apreciar e fruir os grafites, implicando ambos no dever estatal de promoção da cultura e de oferta de políticas e serviços que garantam a fruição dos direitos culturais. E se a omissão nessa oferta é uma deficiência que precisa ser corrigida cotidianamente, a atuação do Estado “estético”, que opta por destruir obras de arte nos espaços públicos, é uma disfunção que precisa ser rechaçada.
O argumento de que o grafite, por ser uma arte efêmera, pode e deve desaparecer, devendo ser “conservado” apenas por fotos e por imagens de cinema, não se sustenta. A arte começou nas paredes das cavernas e foi preciso proteger e conservar aquelas manifestações rupestres para melhor compreender a própria humanidade. Não parece legítimo privar as futuras gerações dos belos murais de Kobra, Nunca, Nina Pandolfo ou Os Gêmeos tanto quanto não seria justo privá-las da estátua que Alfredo Ceschiatti esculpiu de José Bonifácio de Andrada e Silva, localizada na Praça do Patriarca, no centro de São Paulo. E o que dizer da fachada de 55m de altura que, em 1984, Tomie Ohtake transformou em um enorme e colorido painel abstrato, na lateral do edifício Santa Mônica, na rua Xavier de Toledo? Não pode haver hierarquia entre essas manifestações artísticas.
Há quem defenda substituir os grafites paulistanos por jardins verticais. Esses jardins são lindos, de fato! Mas a questão contemporânea da urbanidade comporta sempre mais de uma resposta e, se o intuito é a humanização do cinza paulistano, uma das respostas possíveis passa também pela frase do sagaz geógrafo e urbanista alemão Karl Ganser: “Die Kunst ist der nächste Nachbar der Wildnis”! “A arte é o vizinho mais próximo da natureza” – diz num grande letreiro na entrada do Natur-Park Schöneberger Südgelände, em Berlim.
O ideal seria aprendermos com os tristes episódios de “guerra ao grafite”. Em 2007, por exemplo, um painel do britânico Banksy que parodiava uma cena de Pulp Fiction, de Tarantino, localizado ao lado da estação de Old Street, em Londres, foi apagado por funcionários do metrô, sob o argumento de que a pintura conferia uma atmosfera degradante ao local.
Em 2014, na cidade inglesa de Clacton-o-Sea, outro grafite de Banksy, com um grupo de pombos cinzentos com cartazes anti-imigração diante de um pássaro bonito e exótico, também foi apagado, desta vez por ser considerado racista. Também em 2014, um grafite de autoria de Francisco Rodrigues, o Nunca, na Av. 23 de Maio, já havia sido apagado pela prefeitura. No ano anterior, 2013, um mural da dupla Os Gêmeos nas imediações da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, foi apagado pela Companhia Municipal de Limpeza Urbana.
São Paulo tem uma vocação criativa, e uma boa maneira de valorizar esse perfil de inovação da cidade – justamente no ano em que são comemorados os 95 anos da Semana de Arte Moderna de 1922 – é prestigiar a sua singular indústria cultural, da qual o grafite faz parte ao lado da gastronomia, da literatura, do cinema, da música, do design, da moda...
Ignorar a importância social, artística, econômica, turística, antropológica e urbanística que os grafites possuem é um erro grave. Em tempos de Cidade Linda, quanto antes acontecer o repúdio ao Estado censor ou “estético”, menor o prejuízo para a cidade – um território que é tela, museu, galeria, academia, escola de arte e atração turística para todos os que nela transitam.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).
Marcílio Toscano Franca Filho é doutor em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal), com pós-doutorado no Instituto Universitário Europeu, em Florença (Itália), procurador do Ministério Público de Contas da Paraíba, professor da Faculdade de Direito da UFPB e coautor do livro Direito da Arte (Ed. Atlas).
Inês Virgínia Prado Soares é procuradora regional da República em São Paulo, doutora em Direito pela PUC-SP, com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e autora do livro Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro (Ed. Forum).
Revista Consultor Jurídico, 30 de janeiro de 2017, 8h01
http://www.conjur.com.br/2017-jan-30/direito-civil-atual-visao-estetica-poder-publico-nao-apagar-direito-grafite
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