segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Quando a Lei Maria da Penha é uma forma de alienação parental

Por  e 
Quando falamos de abuso intrafamiliar contra menor, seja ele de que tipo for, trazemos à baila nossas piores sensações e nossos mais terríveis sentimentos. Não se pode imaginar que aquele que tem o dever de cuidar, amar e educar uma criança seja capaz de causar-lhe qualquer tipo de dano.
Os preconceitos nos fazem acreditar que ninguém seria capaz de submeter a criança a mentiras que ocasionem a distorção da realidade e a criação de falsas memórias como forma de vingança.
No entanto, o que se verifica na prática é que algumas pessoas, seja após o fim da relação, ou em situações que sequer havia uma relação afetiva, como são as gravidezes circunstanciais ou inesperadas, não conseguem separar os conceitos de conjugalidade e parentalidade, utilizando os filhos comuns como objeto de vingança para atingir o outro.
Com a promulgação da Lei da Alienação Parental (Lei 12.318/2010) e uma maior conscientização dos juízes de família das práticas utilizadas por um dos genitores para denegrir a imagem do outro e afastá-lo do convívio com o filho, os mal-intencionados passaram a fazer uso de uma arma muito mais grave e poderosa, as imputações criminosas perante a Justiça criminal, na qual deve ser incluída a fase policial, que começa com a investigação criminal no seio da Polícia Judiciária.
Uma das formas de se conseguir de imediato um afastamento, sem grandes questionamentos e, na maioria das vezes, sem qualquer prova concreta, é a acusação baseada na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que pretende combater a violência doméstica e familiar contra a mulher, por sua vez, fruto de relatório elaborado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, recomendando sua elaboração, diante da violência sistêmica contra o gênero feminino.
O mau uso da supracitada lei vem sendo percebido de forma crescente quando mães, em 73% dos casos que ocorrem alienação parental[1], com a intenção de afastar os pais de seus filhos, registram ocorrências afirmando terem sido ameaçadas ou ofendidas pelos ex-companheiros afetivos ou parceiros esporádicos, para terem o que não conseguiriam pela via das Varas de Família ou dissimuladamente sob alegação de proteção ao filho, em flagrante exercício abusivo de seu poder familiar, tolhendo o pleno exercício do poder familiar do pai, violando o artigo 1.634 do CC, introduzido pela Lei 13.058/14, conhecida como Lei da Guarda Compartilhada.
A concessão das medidas protetivas com cláusula de barreira é praticamente imediata, sendo certo que na quase totalidade das vezes a determinação é de impedimento de contato por qualquer meio de comunicação com a suposta vítima (mãe) e com seus familiares. Pensando na segurança da suposta vítima, nem sempre a autoridade responsável assegura e resguarda o direito de convivência da prole com o genitor afastado.
A utilização dessa medida como forma de afastamento parental se dá de forma bastante simples: na dúvida, proteja-se a vítima e afaste-a do “pretenso abusador”.
E assim se inicia a prática de atos de alienação parental em sua forma mais cruel: as falsas acusações.
E quem são as vítimas? Quando qualquer forma de abuso contra a criança ocorre, temos UMA vítima que deve ser protegida de forma integral, pelo núcleo familiar, pelo Judiciário e pelo Estado.
Mas temos que lembrar também que, no caso da existência de uma falsa acusação, temos ao menos DUAS vítimas: o menor, que é privado da convivência com aquele que é falsamente acusado da prática de ato criminoso que o coloque em risco, e o genitor, que, por causa da falsa acusação, é brutalmente afastado do filho e enfrenta as agruras de um procedimento criminal (e vários outros processos) para fazer prova de algo que não ocorreu.
Exemplificaremos com um caso concreto como situações banais podem transformar em um desastre o relacionamento entre pais e filhos por causa de atos de alienação.
O filho foi matriculado em um colégio pela primeira vez e, dentre as diversas atividades escolares, foi solicitado a um dos genitores, que residia com a criança, a foto da família, para que fosse desenvolvido tarefas de reconhecimento dos membros familiares.
Não obstante a criança ter pai e mãe, os mesmos nunca tiveram um relacionamento afetivo, consequentemente possuíam famílias que sequer se conheciam, situação semelhante à de crianças de pais que se separaram, sejam porque estavam em regime de casamento, companheirismo ou mesmo namorados.
Evidentemente que o colégio está acostumado a lidar com situações como essas, haja vista que o número de filhos de pais que não convivem é comum na sociedade hodierna.
No caso, um dos genitores solicitou ao outro que, se possível, fizessem uma fotografia com o filho entre os dois, já que não possuíam nenhuma foto de pai, mãe e filho para ser apresentada na atividade escolar.
Como os pais dessa criança nunca tiveram laços afetivos, entendeu um dos genitores que o ideal seria a foto da família paterna com a criança e seu genitor, dela com os avós, a madrasta, tios, primos e seus irmãos, e do lado materno os mesmos registros, para que a atividade fosse desenvolvida no sentido de que a criança possuía uma família de pais que não conviviam, porém, não deixariam de ser sua família porque moravam em lugares diferentes, e que o amor familiar haveria, independentemente da configuração familiar existente.
A partir daí um dos genitores informou ao genitor que se ele não permitisse ser fotografado com ela e a criança em um mesmo registro fotográfico iria enviar ao colégio fotos somente dela com o padrasto, para que ficasse configurado que o núcleo familiar da criança seria somente o que ela possui com a genitora, tendo sido retrucado pelo outro que se isso acontecesse tomaria as providências necessária para comunicar as autoridades competentes o que estava ocorrendo, e prometeu processar o genitor “por alienação parental”.
A genitora, em resposta revanchista ao genitor, por não atender sua imposição de registro fotográfico da forma que imaginara, se dirigiu a Delegacia de Atendimento à Mulher e comunicou que estava sendo ameaçada pelo genitor sob o argumento de que o mesmo iria atacá-la após desentendimento por telefone, bem como teria sido ofendida com palavras de baixo calão.
Neste momento percebemos as fraturas de nosso sistema e o quanto existem profissionais despreparados para lidar com essas situações para agir com cautela.
A genitora faz o registro, informa que pode provar tudo por e-mail, porém esse documento não é juntado, e com base nessa alegação procura o plantão judiciário, que lhe concede medida protetiva para que o genitor não possa entrar em contato com a mesma ou seus familiares, além do genitor se manter distante por 500 metros. O Ministério Público, que opinou a favor da medida, sequer requisitou o documento, ainda que após o deferimento da medida, para que restasse demonstrada a materialidade da ameaça, já que teria sido feita por escrito.
Com a decisão, o pai sequer poderia visitar a criança no colégio, tendo em vista que o mesmo se situava à 100 metros de sua residência.
A Lei da Alienação Parental não prevê crime pela prática dessa conduta, mas prevê um rol exemplificativo no artigo 2º, parágrafo único da Lei 12.318/10, nas quais se adéqua perfeitamente falsas imputações ao genitor.
Os atos de alienação parental que implicam em falsas imputações que por si só podem ser ilícitos penais têm preferência o alienador em narrar fatos falaciosos que engendrem crime de ameaça, constrangimento ilegal, injúria, difamação, calúnia, denunciação caluniosa, falsa comunicação de crime, entrega arbitrária, sonegação de incapazes e subtração de incapazes.
No caso concreto, por exemplo, poderia ser considerado crime de constrangimento ilegal a promessa de que, se o genitor não se permitisse fotografar, o outro apresentaria uma foto com o padrasto e não do pai?
Em primeiro lugar ninguém é obrigado a realizar registro fotográfico. Em segundo, não temos dúvidas de que a exclusão da figura paterna em uma atividade escolar de apresentação da família seja um mal à criança, mas poderia ser considerada uma grave ameaça para efeitos de configuração dessa elementar normativa?
A grave ameaça significa violência moral ou uma intimidação que possa causar temor ou medo capaz de anular a liberdade de escolha do genitor. Essa intimidação consiste em uma promessa de um mal atual ou futuro e determinado.
Assevera Bittencourt[2] diz que o “a injustiça do mal não se encerra em si mesma”, como ocorre no crime de ameaça. E prossegue: “Mas deverá relacionar-se ao fim pretendido e à forma de consegui-lo. O mal pode ser justo, mas o fundamento que leva o agente a prometê-lo ou o método utilizado podem não sê-los”.
Na alegação em sede policial para restar configurado o crime de ameaça, é necessária a constatação da promessa de um mal injusto e grave e, neste jaez, a promessa de que irá adotar as providências judiciais ou processar alguém não configura um mal injusto, e sim, dependendo da perspectiva, um mal justo ao alienador.
Assim, fica bem configurado o de constrangimento ilegal e não de ameaça como muitos poderiam pensar.
Para alguns autores, também seria ameaça a promessa de mal atual ou futuro, no entanto, a grave ameaça que consta como elemento normativo do tipo do artigo 146 do CP (constrangimento ilegal) deve estar presente o especial fim de agir ou, como denomina Zaffaroni, de elemento subjetivo do tipo distinto do dolo, para que a vítima, especificamente, faça algo que a lei não manda, ou deixe de fazer o que a lei manda, no caso, registro fotográfico ao lado da genitora.
Nesse sentido, leciona Greco[3] ao distinguir o crime de ameaça com o de constrangimento ilegal:
“Contudo, devemos ter cuidado no que diz respeito a ameaça condicional, quando a realização do mal prometido depender da pratica de algum comportamento - positivo ou negativo - da vítima, uma vez que poderá se configurar, nessa hipótese, no delito de constrangimento ilegal, sendo a ameaça, nesse caso, considerada tão somente um elemento que integra aquela figura típica. Assim, por exemplo, se o agente disser à vítima: ‘Se voltar amanhã a escola eu acabo com você!’, não estará praticando o delito de ameaça, mas, sim, o de constrangimento ilegal, pois estará, por meio da ameaça, constrangendo a vítima a não fazer o que a lei permite, isto e, de estudar normalmente no local onde se encontra regularmente matriculada”.
As questões penais relacionadas ao fato de ter o alienador inventado fatos que deram ensejo à instauração de inquérito por ameaça e injúria não ficam impune, pois caracterizam o crime de denunciação caluniosa prevista no artigo 339 do Código Penal, que consiste em “dar causa à instauração de investigação policial, (....) contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente”, na qual prevê uma pena elevada de reclusão de 2 a 8 anos.
Quando o alienador narra falsamente fato definido como crime a alguém sabendo ser inocente, não seria crime de calúnia previsto no artigo 138 do Código Penal? A distinção entre este e a denunciação caluniosa reside no princípio da especialidade, e seu principal viés divisório é a ofensa ao bem jurídico tutelado, cujo entendimento doutrinário define prevalecer a violação à administração da Justiça, quando a narrativa do fato criminoso a alguém que se sabe inocente dá ensejo à utilização dos instrumentos estatais de persecução, seja na via penal (por exemplo, inquérito policial), administrativa (processo administrativo disciplinar) ou civil (inquérito civil).
E qual seria a distinção entre dar ensejo a procedimento criminal sabendo o alienador ser o fato uma mentira ao crime de falsa comunicação de crime ou contravenção previsto no artigo 340 do CP?
Enquanto a movimentação dos instrumentos de Justiça ocorre para a persecução de uma pessoa, que o alienador sabe inocente, na falsa comunicação de crime narra fato descrito como um ilícito penal que se sabe inexistente. No primeiro, a mentira diz respeito a alguém determinado, e no segundo a mentira diz respeito ao fato, sem relacioná-lo a determinada pessoa.
Uma outra forma muito comum de alienação é o artigo 2º, parágrafo único, I da Lei 12.318/10, que consiste em “realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade” por meio das redes sociais, atingindo a honra do mesmo. Sem esquecer que determinadas postagens, dependendo do aplicativo utilizado, poderão ser localizadas por qualquer motor de busca, e o filho, ao ler, poderá ter contato com as adjetivações negativas que um genitor propala em relação ao outro, podendo acarretar sentimento de culpa na criança e, consequentemente, uma série de danos psicológicos inimagináveis a ela.
Nesse caso, a conduta poderá dar ensejo aos crimes contra a honra, como a calúnia, difamação ou injúria. Na calúnia (138, CP), quando a campanha implicar em narrar fato definido como crime, imputando-o falsamente ao genitor, sabendo não ser este o autor ou pelo fato inexistir, como, por exemplo, informar que todas as vezes que a criança sai com o genitor uma peça de roupa é furtada.
A difamação (139, CP) também é a narrativa de um fato, no entanto, não criminoso, como, por exemplo, divulgar em redes sociais que a criança quando volta dos cuidados do genitor esteja suja e sem alimentação. Neste caso, não importa se o fato seja falso ou verdadeiro, pois o legislador quis foi evitar que a reputação da pessoa fosse atingida com narrativa de fatos inadequados à honra do mesmo, primando pela privacidade da relação de parentalidade.
Já na injúria não é necessário narrativa de um fato, mas a simples adjetivação negativa ou pejorativa às qualidades morais do genitor, como, por exemplo, “pai desnaturado” ou “mãe descuidada”.
No caso concreto, os pais não possuíam contato que não fosse por telefone para avisar que estava indo buscar a criança para seu convívio. A decisão precipitada de afastamento somente produziu efeitos para qualificar o injusto distanciamento do genitor com seu filho.
Como se pode observar é extenso o elenco de condutas delituosas praticadas por um genitor com o profícuo propósito de fazer campanha desqualificadora, dificultar ou até mesmo impedir o exercício da parentalidade, e em se tratando de alienador do gênero feminino, ocorre com muita frequência a utilização da Lei Maria da Penha para se buscar medidas de urgência, aproveitando-se da previsão legal da desnecessária notificação para oitiva do outro genitor, e com isso, o alienador utiliza a Justiça como instrumento da mais qualificada injustiça.


[1] ANDRADE, Mariana Cunha de e NOJIRI, Sergio. Alienação parental e o sistema de Justiça brasileiro: uma abordagem empírica. Revista de Estudos Empíricos em Direito Brazilian Journal of Empirical Legal Studies. vol. 3, n. 2, jul 2016, p. 190.
[2] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Vol. 2. 12ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 988.
[3] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, parte especial, Vol II, 10ªed. Niterói: Impetus, p. 499
Alexandra Ullmann é advogada e psicóloga, sócia do escritório Ullmann e Advogados Associados.
Ruchester Marreiros Barbosa é delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, doutorando em Direitos Humanos na Universidad Nacional de Lomas de Zamora (Argentina), professor de Processo Penal da Emerj, da graduação e pós-graduação de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estacio de Sá (RJ) e do curso CEI. Membro da International Association of Penal Law e da Law Enforcement Against Prohibiton.
Revista Consultor Jurídico, 24 de janeiro de 2018, 13h44
https://www.conjur.com.br/2018-jan-24/quando-lei-maria-penha-forma-alienacao-parental

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