Aos 24 de setembro de 2018, foi sancionada a Lei nº 13.715, que dispõe sobre a hipótese de perda do poder familiar pelo autor de determinados crimes contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar.
Rompendo uma certa tradição que vinha sendo mantida pelo legislador, a Lei nº 13.715 cria hipótese de perda do poder familiar tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente (§2º, do Art. 23) assim como no Código Civil (parágrafo único e incisos, do Art. 1.638). Antes da edição da nova Lei as hipóteses de destituição do poder familiar eram tratadas apenas no Código Civil.
Acontece que sob o pretexto de dispor sobre nova hipótese de perda do poder familiar pelo autor de determinados crimes contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar – em clara e bem-vinda política de enfrentamento à violência contra a mulher – a Lei nº 13.715 acabou criando flagrante dicotomia entre o Estatuto da Criança e do Adolescente e Código Civil.
Para o Estatuto da Criança (Art. 23, §2º) a Lei nº 13.715 previu como hipótese de perda do poder familiar a “condenação por crime doloso sujeito à pena de reclusão contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar”. Ou seja, a prática pelo genitor-agressor de qualquer crime doloso sujeito à pena de reclusão contra a genitora-vítima deverá importar na destituição do poder familiar do autor da infração penal.
Entretanto, a mesma Lei nº 13.715 (!) foi menos severa no Código Civil. Para este Diploma codificado não bastará a condenação genérica por crime doloso sujeito à pena de reclusão. O § Único, do Art. 1.638, exigirá para a perda do poder familiar que o crime praticado contra a genitora-vítima sejam os seguintes: a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher; e, b) estupro ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão.
Na hipótese do genitor-agressor praticar o denominado delito de lesão corporal simples – nenhuma violência é simples! – do Art. 129, §9º, do Código Penal (Violência Doméstica), inclusive uma dezena de vezes contra a mesma vítima, nada acontecerá contra o genitor-agressor (!), pois o Estatuto da Criança exigirá a pena de reclusão para o delito – o Art. 129, §9º, comina pena de detenção (!) – e o Código Civil, por sua vez, não admitirá a lesão corporal simples como causa de perda do poder familiar, mesmo quando o crime se tratar de violência familiar contra a mulher.
Para a Lei nº 13.715 a criança poderá assistir sua mãe ser espancada pelo seu pai, todos os dias, sem qualquer arranhão na titularidade do poder familiar desse carrasco doméstico. Claro, desde que do espancamento a vítima fique moída e destruída em cima de uma cama por no máximo vinte e nove dias (Art. 129, §1º, Inciso I, do Código Penal), quando ainda estaremos diante da hipótese de lesão corporal simples. A reincidência na lesão corporal simples pouco importa para a nova Lei (!).
O que se vê, de clara dicotomia legislativa, é que muitas vezes estaremos diante de casos de crime doloso sujeito à pena de reclusão contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar que, de outro lado, não se constitua homicídio, feminicídio, lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher e, ainda, estupro ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão.
Tomemos o seguinte exemplo: marido e mulher são sócios de uma renomada sociedade limitada. A pretexto de eliminar sua sócia – e esposa – do pleito para eleição do conselho fiscal da empresa, para que esta não descubra desvio de dinheiro da sociedade comercial, praticado pelo marido e outros dois sócios, estes resolvem matá-la envenenada, colocando chumbinho em seu sanduíche da tarde. Denunciados a tempo por outro sócio, são presos em flagrante, não vindo a se consumar o crime.
De acordo com o Código Penal o marido no exemplo acima praticou o delito do Art. 270 do Código Penal, denominado “Envenenamento de Substância Alimentícia”, em concurso de agentes, que se consuma com o envenenamento dispensando-se a ingestão do produto mortal, apenado com reclusão, de competência do juízo criminal comum. Não havendo de se falar, evidentemente, em hipótese de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
A partir da edição da Lei nº 13.715 para o Estatuto da Criança, no exemplo dado, estaríamos diante de hipótese de destituição do poder familiar, pois trata-se de caso sujeito a pena de reclusão – o envenenamento de substância alimentícia é punido com pena de reclusão de dez a quinze anos – . Já para o Código Civil, o caso passaria ao longe da hipótese de perda do poder familiar, que exige a prática dos crimes de homicídio, feminicídio, lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte ou estupro, sempre envolvendo violência doméstica e familiar.
Qual o diploma legal aplicável?! A dicotomia é evidente, promovida pela mesma Lei (!).
Não me atrevo a mergulhar na seara e nuances do Direito Penal, mas muitos operadores desse ramo do Direito poderão exemplificar muitas hipóteses em que estaremos diante de crime doloso apenado com reclusão que não se inclua no rol específico do parágrafo único, do Art. 1.638 do Código Civil. Ainda mais quando este último Diploma também exige para a perda do poder familiar que o crime tenha sido cometido “envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
Para piorar ainda mais a situação: A mesma Lei nº 13.715 exigirá no Estatuto da Criança o trânsito em julgado da condenação, utilizando a expressão “a condenação criminal”. E no Código Civil bastará a “prática contra a outrem”, dispensando inclusive a ação penal, podendo-se perquirir a culpa civil, sob o crivo da independência das instâncias civil e penal.
A Lei nº 13.715 também poderia ter eliminado a impropriedade técnica do uso da expressão “incapacidade para o exercício do poder familiar” do Art. 92, Inciso II, do Código Penal de 1940, mas manteve o equívoco ao repeti-la. Na seara Infanto-Juvenil Cível trabalhamos com os termos “suspensão” e “extinção” do poder familiar. A expressão “incapacidade” poderá gerar muitas interpretações e incertezas jurídicas. Essa incapacidade seria definitiva ou provisória, sujeita a condição?
Outra falha pode ser apontada na Lei nº 13.715, demonstrando o pouco conhecimento da realidade social e familiar do País. Muitos lares são habitados por padrastos que não detém a guarda judicial, muito menos o poder familiar (através da adoção), sem a presença de família extensa. Exigindo a nova Lei a elementar “contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar”, tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente (§2º, do Art. 23) assim como no Código Civil (§ Único e Incisos, do Art. 1.638), poderia o padrasto-feminicida (não detentor de poder familiar!) pleitear a guarda judicial de seu enteado beneficiário de pensão por morte do INSS de sua genitora assassinada? Nos casos de união estável ou namoro sob o mesmo teto a situação ficaria ainda mais delicada para aplicação da Lei nº 13.715, pois a definição de poder familiar além de legal é também registral.
Uma última observação: A Lei nº 13.715 cria a figura bisonha da destituição do poder familiar dos avós (!): “perderá também por ato judicial o poder familiar aquele que: (...) II – praticar contra (...) descendente” (Art. 1.638, Inciso II, do Código Civil). Ora, avós não detém poder familiar, quando muito a guarda judicial, não podem adotar por expressa vedação legal (Art. 42, §1º, do Estatuto da Criança). Acredito que a Lei nº 13.715 desejaria criar caso de revogação de guarda avoenga ou restrição de visitação. Acredito...
Como se vê, o que poderia ser resolvido com um mero “control c control v”, repetindo-se textualmente as hipóteses de perda do poder familiar no Estatuto da Criança e no Código Civil, ou mesmo alterando-se apenas este último, como era de nossa tradição legislativa moderna, a Lei nº 13.715 acaba criando dúvidas e incertezas sobre sua aplicabilidade prática, desafiando seus operadores a uma interpretação única e precisa para cada caso.
Carlos Eduardo Rios do Amaral - Defensor Público dos Direitos da Criança e do Adolescente no Estado do Espírito Santo
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