terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Fortaleza obtém vitória na cobrança pelo uso do solo

É possível que os municípios cobrem, das concessionárias de serviços de telecomunicações, energia, gás e TV a Cabo, uma remuneração pela passagem das redes de infraestrutura em seu solo urbano? Embora o tema ainda não tenha sido pacificado na jurisprudência brasileira, a Justiça cearense vem decidindo pela possibilidade da cobrança, julgando constitucional da Lei 8.744/03, do município de Fortaleza.

O juiz Irandes B. Sales, da 1ª Vara da Fazenda Pública, garantiu à Prefeitura de Fortaleza o direito de cobrar pelo uso, por parte da empresa de TV por assinatura Net, de logradouros públicos, do espaço aéreo, do solo e subsolo para a passagem de cabos de comunicação. Sales negou Mandado de Segurança, que pedia a suspensão da cobrança, contra ato da Secretaria de Meio Ambiente e Controle Urbano de Fortaleza.

Em outra ocasião, em Agravo de Instrumento relatado pelo desembargador José Arísio Lopes da Costa, hoje presidente do Tribunal de Justiça do Ceará, a 3ª Câmara Cível reformou decisão que suspendia a cobrança efetuada à Telemar, confirmando o entendimento de que a cobrança da lei municipal é juridicamente possível, tendo em vista o que dispõe o artigo 103 do Código Civil brasileiro. O dispositivo prevê: "O uso comum de bens públicos pode ser gratuito ou retribuído, conforme for estabelecido legalmente pela entidade a cuja administração pertencerem."

A questão é transversal a pelo menos quatro áreas do direito: tributário, administrativo, ambiental e constitucional. De um lado, as concessionárias alegam que os municípios não podem instituir a cobrança, uma vez que apenas a União poderia legislar sobre serviços de telecomunicação e energia (CF, arts. 21, incisos XI; XII, a e b e 22, IV). argumentam ainda que o solo urbano e o espaço aéreo é um bem de uso comum do povo, e que assim qualquer cobrança oneraria o próprio serviço, que tem caráter público e seria voltado para os próprios cidadãos.

Os municípios, de outro lado, defendem a legalidade da cobrança com fundamento na necessidade da ordenação do solo urbano. Realizados os estudos técnico-jurídicos, alguns optaram pela instituição de taxa, cujo fato gerador seria o exercício do poder de Polícia; outros, como no caso do município de Fortaleza, inclinaram-se pela cobrança de uma tarifa, em contra-prestação ao uso especial de um bem de uso comum sob sua administração e gerenciamento. Os municípios entendem que têm obrigação de preservar e controlar o meio ambiente urbano, o qual alegam ser afetado pela passagem das redes de infraestrutura.

É fato que no final dos anos 90, e no início dos anos 2000, o Brasil viveu um período de grande expansão da oferta dos serviços de telecomunicações e energia. Questionada por uns e defendida por outros, a privatização ocorrida durante o governo do presidente Fernando Henrique trouxe a algumas cidades brasileiras — fenômeno crescente ainda nos dias de hoje — a necessidade de suporte de grandes redes de infraestrutura no seu espaço urbano: cabos, fios e dutos, ora subterrâneos, ora utilizando-se de postes no espaço aéreo, passaram a cortar as principais capitais brasileiras, e avançam agora também sobre as cidades do interior.

A Procuradoria-Geral do Município de Fortaleza diz que a questão da ordenação do solo urbano é fundamental, conforme explica o procurador Henrique Araújo: "Os casos de explosão de bueiros no Rio de Janeiro, com vítimas fatais, demonstram que as administrações precisam ter o controle do seu subsolo. Em Fortaleza, há constantes problemas com a malha viária e passeios relacionados às redes de infraestrutura. A ordenação e a cobrança pelo uso do solo são fundamentais para manter um meio ambiente urbano livre de perigo para os cidadãos."

Para Guilherme Rodrigues, procurador e presidente da Associação dos Procuradores de Fortaleza, a tese municipalista deve prevalecer. "Nossa mobilização não trata apenas de questões de cunho corporativista, até porque temos a clara compreensão de que o fortalecimento da advocacia pública também passa pelos resultados alcançados na defesa dos interesses do ente que representamos. As recentes decisões proferidas demonstram que o Poder Judiciário está sensível a uma análise mais acurada do tema, e que essa não é uma matéria encerrada". 

STJ e STF
O STJ já teve oportunidade de apreciar algumas normas municipais que instituíram taxas ou tarifas pelo uso do solo. O entendimento não é unânime.

Os acórdãos que decidiram pela impossibilidade de uma taxação (REsp 1.195.374/RJ, REsp 863.577/RS e Ag 1.089.887/SP) seguem o RMS 12.081/SE. Nesta decisão, de 2001, relatada pela ministra Eliana Calmon, o município de Barra dos Coqueiros foi proibido de instituiu taxa de licença para publicidade e pela exploração de atividade ruas, em razão da a instalação de postes para serviços de energia elétrica e telecomunicações.

À época, os fundamentos lançados pela relatora foram no sentido de que não haveria serviço público divisível ou exercício do poder de polícia pela simples instalação de postes. Argumentou ainda que a administração só pode cobrar preço público quando explora atividade comercial ou industrial.

Por outro lado, no julgamento de recurso da empresa de TV a Cabo Net RIO, no Resp 599.046, o ministro Humberto Martins entendeu que os municípios podem ordenar seu espaço urbano e cobrar pelo seu uso, sem que isso interfira na competência da União prevista no artigo 21, XI e XII, a e b, e 22, IV, da Constituição, e sem contrariar a Lei Federal 9.472/97. Citou como precedente o RMS 22.885/DF.

Já no STF o debate foi mais aprofundado . O caso paradigma foi o RE 581.947/RO, de relatoria do ministro Eros Grau e julgado em maio de 2010, no qual se apreciou taxa instituída pelo município de Ji-Paraná pelo exercício do poder de polícia, quando à fiscalização da ordenação da rede elétrica.

Eros Grau, hoje aposentado, fez uma análise densa sobre o dever-poder que as concessionárias de serviço público de energia têm em relação aos usuários, ressaltando inclusive o direito que têm de fazer desapropriações em nome do estado. Teceu ainda considerações sobre os bens públicos e o seu uso, entendendo que a passagem das redes de infraestrutura, embora se desvirtuando do uso normal dos bens de uso comum, não gera direito à cobrança, porque são como se fossem servidões administrativas que têm de ser necessariamente suportadas pelos municípios, em razão de ser também de caráter público o serviço prestado.

No entanto, em todas as vezes que se referiu ao custo suportado pelos municípios, o relator ressalvou a possibilidade de uma indenização, desde que previamente prevista em lei: "O fato é que, ainda que os bens do domínio público e do patrimônio administrativo não tolerem o gravame das servidões, sujeitam-se, na situação a que respeitam os autos, aos efeitos da restrição decorrente da instalação, no solo, de equipamentos necessários à prestação de serviço público. Por certo que não conduzindo, a imposição dessa restrição, à extinção de direitos, não acarreta o dever de indenizar, salvo disposição legal expressa em contrário, no caso contudo inexistente."

Ao proferir seu voto, o ministro Ricardo Lewandowisk pontuou: "Fiquei impressionado, senhor presidente, com a argumentação do município recorrente no sentido de que, no exercício do poder de polícia, ele, município, realiza atividade de fiscalização examinando os recuos de testadas e sacadas de edificações, a colocação de placas e faixas de propaganda, o plantio e podas de árvores, o tráfego de veículos com gabarito elevado e a adequação de quaisquer eventos nos espaços comuns ante a influência dos acidentes geográficos existentes nos locais, dentre estes os equipamentos da rede de força elétrica (....). Então eu não afasto a possibilidade de o município editar uma lei específica para cobrar taxa se prestar esses serviço de forma efetiva ou potencial."

O ministro Ayres Britto também discordou do relator, embora o tenha acompanhado: "Senhor presidente, só lembraria — peço que figure da ata 3 que não estou de todo convencido quanto aos fundamentos do belo voto do eminente relator. Vou acompanhar Sua Excelência mas, por um dever de busca da verdade científica perante mim mesmo, seguirei meditando sobre o tema. E penso que temos um encontro marcado, como diria o ministro Gilmar Mendes, com essa matéria."

Ao que ponderou o ministro Gilmar: "Senhor presidente, também estava comentando com o ministro Ricardo Lewandowski que o caso longe me parece estar de um tratamento pacífico, porque os municípios acabam...talvez a lei não tenha conseguido apreender o objeto do serviço prestado, mas certamente há e pode haver o exercício de poder de polícia."

"Noutras palavras, não vamos apagar as luzes para o município", sentenciou o presidente Cezar Peluso.

No entendimento da Procuradoria-Geral do Município de Fortaleza, embora o recurso não tenha sido provido e trouxesse uma cobrança com fundamento diferente da lei fortalezense, a discussão segue em aberto: "Os ministros do STF claramente não fecharam questão. Acompanharam o relator com muitas ressalvas e ponderações, deixando o assunto para uma discussão mais aprofundada, inclusive quanto ao poder de polícia", ressalta Henrique Araújo.

Processo TJ-CE 0010141-32.2006.8.06.0000/0
Revista Consultor Jurídico

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