Durante muito tempo, perdurou, no país, discussão jurisprudencial
acerca da possibilidade de aquisição de bem público mediante usucapião.
Discussão essa que se encerrou somente com a edição do Decreto nº.
19.429/31, que sagrou vencedora a tese da não incidência da prescrição
aquisitiva em desfavor dos entes públicos. A Constituição Federal de
1988, por sua vez, repetiu a proibição contida no referido ato normativo
executivo federal.[1] Doravante, não restaram
quaisquer dúvidas de que o particular não pode, em nenhuma hipótese,
adquirir bem público móvel ou imóvel mediante usucapião.
Os princípios administrativos da supremacia e da indisponibilidade do
interesse público servem de supedâneo ideológico a essa e a outras
normas jurídicas protetoras do patrimônio público.
Aliás, a doutrina é assente no sentido de que os bens públicos são, em
regra, imprescritíveis, impenhoráveis e não sujeitos à oneração.[2] Ou seja, os entes públicos não correm o mínimo risco de perder os seus bens em ações de usucapião e em execuções.
Contudo, a Constituição Federal de 1988, a despeito de ter consagrado a
impenhorabilidade dos bens públicos, elegeu a função social da
propriedade como um dos princípios regentes da ordem econômica.[3]
Portanto, o particular que não usufruir de sua propriedade em
consonância com os ditames constitucionais, ou seja, aquele que não lhe
imprimir um mínimo caráter produtivo, certamente correrá o risco de
perdê-la para outro que assim o faça, assertiva essa verificada com
facilidade nas demandas relativas à usucapião. Isso compele os
indivíduos a contribuírem, de uma forma ou de outra, para com o
desenvolvimento econômico e social da nação. A esse respeito, a doutrina
leciona: “A função social [da propriedade] pretende erradicar algumas
deformidades existentes na sociedade, na quais o interesse egoístico do
indivíduo põe em risco os interesses coletivos”.[4]
No entanto, aqueles que deveriam dar bons exemplos aos particulares no
uso e na exploração de seus bens, os entes públicos, não poucas vezes,
possuem ativos aos quais não conferem o mínimo destino produtor, e
chegam até mesmo a deixá-los abandonados, uma vez não correrem o menor
risco de perdê-los. Paradoxal, não? Faça o que mando, mas não faça o que
faço. Essa conhecida máxima bem resume o tratamento conferido pelos
entes públicos à questão da propriedade.
Esse disparate, porém, tem explicações, embora careça inteiramente de justificativas válidas, é o que mais adiante se verá.
2 DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS PÚBLICOS
Segundo o direito administrativo, os bens públicos se dividem em três
distintas categorias, quais sejam: bens públicos de uso comum do povo,
bens públicos de uso especial e bens dominicais. Os primeiros são
aqueles que a todos pertencem e que podem ser usados por todos, tais
como estradas, ruas, praças, o meio ambiente, entre outros. Os segundos
são os que pertencem a certo ente público e que são úteis à prestação de
determinados serviços públicos, tais como hospitais, escolas,
ambulâncias, viaturas de polícia etc. Quanto aos bens dominicais, a
doutrina especializada assim os define:
Bens públicos dominicais (Código Civil, art. 66, III) – são os bens públicos não destinados à utilização imediata do povo, nem aos usuários de serviços ou aos beneficiários diretos de atividades. São bens sem tal destino, porque não o receberam ainda ou porque perderam um destino anterior. Ex: dinheiro dos cofres públicos, títulos de crédito pertencentes ao poder público, terras devolutas, terrenos de marinha.[5]
Portanto, existem diferentes classes de bens públicos e, como já fora
explicado, os bens dominicais não estão diretamente ligados à finalidade
essencial dos entes públicos, ou seja, à promoção do bem comum. Os bens
dominicais servem, portanto, aos próprios entes públicos, em vez de a
toda a coletividade por eles representada.
No entanto, pelo simples fato de pertencerem a entes públicos, os bens
dominicais gozam das mesmas prerrogativas inerentes às duas outras
classes de bens públicos, ou seja, não são passíveis de prescrição,
penhora ou oneração. Pois que vigem impolutos os princípios da
supremacia e da indisponibilidade do interesse público.
Imagine, portanto, que determinada prefeitura disponha de um prédio que
não lhe apresente mais serventia, razão pela qual passou este a
integrar a categoria dos bens dominicais, pelo que poderia ser vendido, e
o produto de sua venda revertido aos cofres públicos.
Acrescente-se a isso o fato de que a municipalidade poderia doar
unidades habitacionais do referido imóvel a moradores sem-teto que não
dispusessem de recursos financeiros para adquiri-las mediante a compra,
afinal, a Constituição Federal de 1988, conhecida entre nós brasileiros
pela alcunha de constituição cidadã, assegura a todo brasileiro o
direito à habitação.
Contudo, em vez de assim proceder, o ente público não vende, tampouco
confere uma nova destinação ao imóvel em questão, mas simplesmente o
abandona. Além de ser atacado por vândalos, o comentado prédio passa a
ser ocupado por pessoas carentes, sem casa para morar e que nunca
poderão adquirir sua propriedade mediante usucapião, mas terão de
aguardar um gesto de nobreza e humanidade do administrador público.
Agora imagine que o governante não adote essa atitude benevolente, mas
que, em nome do ente público por ele representado, reivindique, em
juízo, a posse do bem esbulhado. Dezenas e, talvez, centenas de pessoas
sejam novamente lançadas na rua, e fiquem sem abrigo, tudo em nome de um
suposto interesse público, supremo e indisponível!
Mas em que consistiria o verdadeiro interesse público nessa hipotética
situação? Em ver assegurado o direito constitucional à habitação de um
sem número de cidadãos? Ou na reintegração de posse de um bem abandonado
a um ente público que, até então, não lhe conferiu destinação
específica e utilidade pública? Certamente ambas as respostas à pergunta
proposta são válidas, embora diametralmente opostas no que tange ao
quesito da justiça social.
Aprender a classificar o interesse público constitui condição
imprescindível à promoção da verdadeira justiça. Tema do próximo
capítulo.
3 DA CLASSIFICAÇÃO DOS INTERESSES PÚBLICOS
Classificam-se os interesses públicos em duas distintas categorias,
quais sejam: os interesses públicos primários e os secundários.
O interesse público primário consiste no complexo de interesses
coletivos prevalentes na sociedade e que pode, quase sempre, ser
concebido como o bem comum; e o interesse público secundário, por sua
vez, é o interesse do ente público que vai a juízo e que, muitas vezes,
encontra-se completamente dissociado dos interesses públicos primários
e, portanto, dos interesses coletivos.[6]
Interesses públicos primários seriam, desta feita, as aspirações de
todos os cidadãos e entidades civis por uma vida melhor; ao passo que os
secundários seriam os dos entes públicos propriamente ditos.
4 DA SUPREMACIA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS
Ensina o direito administrativo que, em um conflito de interesses entre
um ente público e um particular, devem prevalecer os interesses daquele
em detrimento dos interesses deste. Eis, em apertada síntese, uma
definição do princípio da supremacia do interesse público.
No direito moderno, a supremacia do interesse público sobre o privado
se configura como verdadeiro postulado fundamental, pois que confere ao
próprio indivíduo condições de segurança e de sobrevivência. A
estabilidade da ordem social depende dessa posição privilegiada do
Estado e dela dependem a ordem e a tranquilidade das pessoas... Pode-se
extrair desse fundamento que toda vez que colide um interesse público
com um interesse privado, é aquele que tem que prevalecer.[7]
A indisponibilidade do interesse público, ao seu turno, pode ser
conceituada como a impossibilidade de se dispor dos interesses públicos,
senão por meio de lei.
Em recente artigo de nossa autoria, demonstramos como os princípios
administrativos da supremacia e da indisponibilidade do interesse
público foram superestimados ao ponto de perverter o verdadeiro sentido
da existência dos entes públicos que, em vez de existirem para a
promoção do bem comum, passaram a ter sua existência quase que
completamente dissociada aos objetivos supostamente por eles
perseguidos.[8]
Assim, na hipotética situação aventada em capítulo anterior, o conflito
de interesses não seria entre o particular e o público; mas, sim, entre
duas diferentes categorias de interesse público, o interesse público
primário consistente na efetivação do direito individual e
constitucional de moradia, e o interesse público secundário,
representado pelo direito à obtenção pelo ente público da reintegração
de posse de um bem cuja propriedade não lhe pode ser solapada.
Dizer que o interesse público primário deve prevalecer sobre o
secundário é fácil, e é o que faz a maioria dos tratadistas que estudam o
assunto, mas esclareça-se que, no caso ora descrito, fazer prevalecer o
interesse público primário sobre o secundário implicaria na
transgressão da disposição constitucional que torna os bens públicos, em
geral, imprescritíveis...
5 DOS BENS DOMINICAIS
A doutrina administrativa enxerga a categoria dos bens públicos
dominicais com muitos bons olhos, pois que lhes atribui algumas
utilidades.
Tradicionalmente, apontam-se as seguintes características para os bens
dominicais: 1. Comportam uma função patrimonial ou financeira, porque se
destinam a assegurar rendas ao Estado, em oposição aos demais bens
públicos, que são afetados a uma destinação de interesse geral; a
consequência disso é que a gestão dos bens dominicais não era
considerada serviço público, mas uma atividade privada da Administração;
2. Submetem-se a um regime jurídico de direito privado, pois a
Administração Pública age, em relação a eles, como um proprietário
privado.[9]
Observe-se, no entanto, que muitos bens dominicais não se destinam a
assegurar rendas aos entes públicos, mas, simplesmente, deixaram de ser
destinados ao uso específico, um terreno baldio, um prédio fechado, um
equipamento obsoleto, um veículo que sofrera perda total em um acidente,
esses são apenas alguns exemplos do que se observa em grande parte das
administrações públicas, sejam elas federal, estaduais ou municipais.
Assim, enquanto esses bens jazem parados à espera de um adequado
destino a ser determinado pelo gestor público, deixam de gerar receitas
e, muitas vezes, passam a representar elevados custos aos cofres
públicos, pois que necessitam de serviços de estocagem, limpeza,
conservação, manutenção, vigilância patrimonial entre outros. Onde está a
função social da propriedade? No regime jurídico de direito privado,
apenas.
Interessante é notar que, geralmente, a inércia do administrador
público em conferir destinação específica aos bens dominicais e assim
obter ganhos e vantagens para o erário, não se encaixa no conceito de
malbaratamento do patrimônio público.
Apontam-se como malbaratamento do patrimônio público somente a
aquisição, alienação, doação e locação fraudulenta de bem público que
importem em sua perda ou desvalorização.
Atualmente, parece inexistir preocupação do legislador no que tange à
destinação de bens dominicais ao uso específico da administração. E, por
isso, inúmeros bens, móveis e imóveis, que neste exato momento deveriam
promover o bem-estar geral, estão abandonados, sujeitos à depredação e
ainda a importar em pesados gastos de manutenção para os tesouros
públicos.
Mais um inexorável efeito colateral da equivocada interpretação dos
princípios administrativos da supremacia e da indisponibilidade do
interesse público, por nós já tão combatida.
É de um imperdoável cinismo que as pessoas morram nas filas dos
hospitais, sem atendimento médico, enquanto os entes públicos abarrotam
seus almoxarifados com quinquilharias inúteis ou simplesmente especulem
no mercado imobiliário.
Às vezes, os próprios entes públicos são vítimas da omissão de seus
gestores, pois que pagam aluguel de bens que usam no exercício de suas
atividades, enquanto possuem outros de mesma natureza e valor,
inutilizados ou subutilizados, que não são vendidos e o produto de sua
venda revertido ao erário. Um comportamento como esse por um acaso não
constituiria verdadeiro malbaratamento? Evidentemente que sim, a menos
que existam razões a justificá-lo, todavia as tais, geralmente, não
existem.
Ademais, são justamente os bens dominicais aqueles mais vulneráveis aos
ataques dos particulares e dos gestores ímprobos, pois que, geralmente,
não são de fácil identificação e deles não se costuma dar falta.
Infelizmente, malbaratamento, peculato e confusão patrimonial, são
palavras comumente ouvidas ao se tratar de tais bens.
Constitui prática corrente afixar as chamadas etiquetas de patrimônio
aos bens móveis integrantes do cabedal da administração, no entanto,
parece não haver qualquer preocupação em caracterizar os imóveis
públicos integrantes da categoria de bens dominicais para que assim se
possa cobrar a atribuição de destinação específica a esses.
Aqui não se advoga o fim da imprescritibilidade, da impenhorabilidade e
da desoneração dos bens públicos, em geral, mas, sim, que se criem
regras aptas a fazer com que os gestores públicos imprimam finalidade
social aos bens públicos, e que passem a limitar, ao máximo, o número
daqueles contidos na categoria dos bens dominicais.
Afinal, segundo lição de Celso Antonio Bandeira de Mello, o princípio
da supremacia do interesse público e, por extensão, a predominância do
interesse público primário sobre o secundário,
[...] tem apenas a compostura que a ordem jurídica lhe houver atribuído na Constituição e nas leis com ela consonantes. Donde jamais caberia invocá-lo abstratamente, com prescindência do perfil constitucional que lhe haja sido irrogado, e, como é óbvio, muito menos caberia recorrer a ele contra a Constituição ou as leis. Juridicamente, sua dimensão, intensidade e tônica são fornecidas pelo Direito posto, e só por este ângulo é que pode ser considerado e invocado.[10]
6 CONCLUSÃO
A respeito do que fora discutido acerca dos bens públicos dominicais e do disparate que os envolve, pode-se concluir:
1) Os bens públicos classificam-se em: bens de uso comum do povo, bens
públicos de uso especial da administração e bens públicos dominicais;
2) Os bens dominicais são aqueles que não têm destinação específica e
que, assim como os demais bens públicos, são imprescritíveis,
impenhoráveis e não estão sujeitos à oneração;
3) Existem duas distintas categorias de interesses públicos, a saber:
primários e secundários e que, em um conflito entre os tais, deve-se
conferir prevalência, tanto quanto possível, àqueles em detrimento
destes;
4) Os princípios da supremacia e da indisponibilidade dos interesses
públicos foram superdimensionados, pelo que se perverteu o verdadeiro
sentido da existência dos entes públicos que, em vez de existirem para a
promoção do bem comum, passaram a ter sua existência quase que
completamente dissociada dos objetivos supostamente por eles
perseguidos;
5) A injustificada manutenção de bens dominicais no acervo patrimonial
público não constitui prática administrativa salutar, pois que assim a
propriedade deixa de cumprir sua função social e, por vezes, deveria ser
considerada malbaratamento do patrimônio público;
6) Necessita-se criar regras que limitem, ao mínimo possível, o número
de bens dominicais integrantes do patrimônio dos entes públicos, pois
que, em pouco ou nada, contribuem para com o bem-estar geral.
O presente trabalho não pretende contrariar um postulado resultante de
anos de evolução histórico-jurídica que é a imprescritibilidade dos bens
públicos, proposta essa muito ousada em nosso sentir; mas objetiva
chamar a atenção de todos e, principalmente das autoridades
legislativas, para a grande injustiça consistente em se acumular bens
dominicais enquanto não se asseguram aos cidadãos os seus mais básicos e
elementares direitos.
CARVALHO, Wesley Corrêa. Bens dominicais: o imperdoável paradoxo da Administração Pública. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3508, 7 fev. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23663>. Acesso em: 7 fev. 2013.
Nenhum comentário:
Postar um comentário