O tema em debate surge no âmbito das assim denominada famílias
reconstituídas (reconstitutedfamily) ou recompostas (blendedfamily),
segundas famílias, novas famílias, novas núpcias (remarriage) ou,
simplesmente, famílias alargadas provenientes de recasamentos ou
relacionamentos afetivos anteriores.
Em obra dedicada ao assunto, Waldyr Grisard Filho[viii] apresenta um
conceito desta nova modalidade de arranjo familiar
contemporâneo:“Família reconstituída é a estrutura familiar originada do
casamento ou da união estável de um casal, na qual um ou ambos de seus
membros têm um ou vários filhos de uma relação anterior. Numa
formulação mais sintética, é a família na qual ao menos um dos adultos é
um padrasto ou madrasta. Ou que exista ao menos um filho de uma união
anterior de um dos pais. Nesta categoria entram tanto as sucessivas
uniões de viúvos e de viúvas como de divorciados e divorciadas com
filhos de uma relação precedente e as primeiras de mães e pais
solteiros.”
Prossegue explicitando que “(...) também compreende o núcleo familiar
originado de uma união estável, cujos integrantes cumprem as mesmas
funções que as do novo cônjuge do pai ou da mãe”[ix]
O fato é que essa nova “constelação familiar”[x]surge
estigmatizada pelo rótulo de “problemática”, sendo por vezes considerada
como uma “família de segunda classe”, em que o fracasso do
relacionamento afetivo anterior acaba por transmitir aos seus novos
membros a instabilidade emocional inerente à redefinição dos novos
papéis assumidos pelos adultos.
Nada mais inadequado do que estereotipar essas entidades familiares com
qualificações preconceituosas, merecendo tais arranjos familiares
idêntica proteção e respeito, haja vista a aplicação direta dos
princípios constitucionais da igualdade, solidariedade e afetividade.
“A possibilidade de que um grupo familiar reconstituído funcione com baixo nível de conflitos dependerá da disponibilidade de que seus membros aceitem um modelo familiar distinto do anterior e que as relações entre seus membros sejam permeáveis. Os filhos deste tipo de relação experimentam dificuldades com relação aos limites, o espaço e o tempo que se lhes dedica e a autoridade a que devem obedecer, porque implica passar de um modelo a outro (de um nuclear para outro binuclear), em que antigas pautas seguem vigentes junto a novas.[xi]”
Prossegue esclarecendo que “Estas famílias caracterizam-se pela
ambiguidade. Em seu processo de constituição implica reconhecer uma
estrutura complexa, conformada por uma multiplicidade de vínculos e
nexos, na qual alguns de seus membros pertencem a sistemas familiares
originados em uniões precedentes. As crianças podem passar a ter novos
irmãos, que, se serem irmãos, o são em seu funcionamento cotidiano.
Padrastos e madrastas cumprem suas funções, muitas vezes, sobrepondo-as
às dos pais biológicos. Aparecem novos tios e avós, provenientes de
outras famílias. A rede social se expande e surgem crises e conflitos de
autoridade e lealdade, que exige o estabelecimento de um conjunto de
pautas para uma interação estável no tempo e flexível em sua formulação.
Sendo imprecisas as interações, pois não se tem claro quais são os
laços ou a autoridade, o novo grupo familiar tem uma gigantesca tarefa a
cumprir, qual seja, a de construir sua própria identidade, pois os seus
integrantes organizam-se sob condições individuais, sociais e culturais
diferentes.[xii]”
Os vínculos afetivos que se formam a partir dessa nova configuração
familiar, especialmente entre padrastos/madrastas e enteados constituem
elemento central para a estabilização emocional e o próprio êxito da
relação conjugal formada.
Ademais, frágil e precipitada se mostra a ideia de que se constituirá
uma “paternidade instantânea” entre o “novo namorado da mamãe” ou a
“nova namorada do papai”, à medida que o vínculo biológico se mostra
muito mais forte na sedimentação do afeto, dependendo a dinâmica da
recomposição da linha de substituição utilizada: integração ou exclusão.
Conforme pesquisa realizada por Cristina Lobo[xiii] na literatura
especializada, “Ao contrário (do pai), o padrasto não é umparente das
crianças, mas invade-lhes o quotidiano, entra- lhes em casa, muitas
vezes sem pedir autorização, ocupaumlugar privilegiado no quarto da mãe
e, por tudo isso, tem de provar com o tempo que é capaz de ser “qualquer
coisa no meio” — entre parente e estranho ou um “parente estranho”(
Beer, 1988) - umamigo, um cúmplice, um outsider íntimo (Papernow,
1993).E quem sabe - com algum tempo, imaginação, jeito e
paciência—umsegundo pai ouumquase-pai. Tudo indica que o papel de
padrasto, sendoumpapel de composição, se constrói com vontade e no
tempo, e cuja legitimidade se conquista continuamente (Théry, 1995).Pais
e padrastos, numa configuração familiar recomposta, não devem
serpensados em separado. Porque só através da relação das crianças com
os seus pais, elas poderão reconhecer no padrasto alguém que pode
partilhar com eles a sua educação (idem).Naverdade, o padrasto não entra
na família por causa das crianças, mas porcausa de um adulto (neste
caso a mãe) e, para além disso, numa fase de reforço dos laços entre a
mãe guardiã e os filhos. Ou seja, as mães sozinhas e os seus filhos
criam um novo sistema familiar, e é precisamente neste sistema em que se
partilha uma história, se intensificam relações e se restabelecem
regras, que chega o padrasto (Cherlin e Furstenberg Jr., 1994).Em todo o
caso, a chegada do novo companheiro da mãe também pode representar um
reforço no orçamento da nova família, e consequentemente um aumento da
estabilidade económica e da qualidade de vida do agregado familiar
(Morgan, 1991).”
O fenômeno da paternageme a construção do vínculo afetivo entre um
padrasto e um filho não biológico leva tempo para se desenvolver, sendo
certo que a simples presença de outro adulto na casa, não significará,
necessariamente a negação do pai biológico.
Em interessante estudo psicológico[xiv], Graciela Leus Tomé e Ligia
Schermann, destacam que fatores como idade do enteado, ausência de
contato com o pai biológico e o comportamento da genitora detentora da
guarda mostram-se fundamentais para o êxito do relacionamento afetivo
entre padrastos e enteados.
Ou seja, não necessariamente um padrasto pretende substituir o pai
biológico do enteado, não se podendo presumir, em hipótese alguma, a
caracterização de vinculo paternal socioafetivo quando este,
efetivamente, jamais existiu ou foi pretendido pelas partes envolvidas
na relação afetiva.
Mero decurso de tempo não pode servir como parâmetro definidor de uma
paternidade socioafetiva, devendo-se perquirir sobre as genuínas
intenções das participes da relação paterno-filial.
Não se pode afastar, logicamente, a possibilidade do reconhecimento de
uma verdadeira paternidade socioafetivaconstruída, desde que se façam
presentes os requisitos sedimentados pela doutrina (nome, trato e fama) e
a qualidade do vinculo afetivo justifique esta caracterização.
Deve existir inequívoca manifestação do padrasto/madrasta, como, por
exemplo, na hipótese de adoção pelo cônjuge ou companheiro do filho
exclusivo de seu consorte (artigo 41, § 1º do Estatuto da Criança e
Adolescente), ou inclusão do patronímico do padrasto (Lei 12.294/2009),
inexistindo no ordenamento uma “presunção de paternidade socioafetiva.”
Simples cuidado ou colaboração com as despesas materiais do filho do
outro companheiro não podem se converter em paternidade presumida, sob
pena de se extinguir do sistema normativo o vínculo de afinidade
disposto no artigo 1595 do Código Civil.
Outrossim, no intuito até mesmo de fomentar um saudável relacionamento
familiar, inviável seria impor tratamentos discriminatórios no âmbito
familiar, dispensando o padrasto melhores condições ao filho comum em
detrimento do enteado, filho exclusivo de sua consorte.
Natural que no decorrer da evolução afetiva, seja dispensado ao enteado
a mesma consideração dirigida ao filho natural, todavia, tal benesse
não pode se converter em “direito adquirido” do favorecido, ou ainda,
impor ao padrasto suportar um encargo financeiro perpétuo mesmo após
eventual ruptura do relacionamento com a genitora do menor.
Aliás, curioso seria se a cada novo relacionamento afetivo do genitor, o
menor “colecionasse” sucessivos co-devedores da obrigação alimentar,
onerando-se indevidamente terceiros em detrimento da responsabilidade
atribuída por lei aos pais biológicos.
Tal postura somente viria a fomentar a discórdia familiar, acarretando
ainda, dificuldades para pessoas com filhos edificar novos
relacionamentos afetivos, haja vista a possibilidade de futura
responsabilização de terceiros pelo encargo financeiro dos genitores do
alimentando.
Não se pode esquecer as gravosas conseqüências jurídicas para o devedor
de alimentos, podendo este sofrer descontos em seus rendimentos, ser
incluído em cadastros restritivos de crédito ou mesmo ter sua prisão
civil decretada judicialmente, razões estas que, certamente justificam
maior atenção no tratamento do assunto.
Ademais, a possibilidade de pensionamento até a maioridade civil, ou
mesmo a conclusão de estudos universitários do alimentando, poderá
acarretar prejuízos a terceiras pessoas não vinculadas ao relacionamento
afetivo desfeito, tais como ascendentes e descendentes do padrasto,
haja vistaprevisão do artigo 1698 do Código Civil.
A transmissibilidade da obrigação alimentar (artigo 1700 do Código
Civil), poderá atingir, ademais, o patrimônio de terceiros desvinculados
da relação conjugal desfeita, parentes consangüíneos do padrasto, em
patente violação ao direito de propriedade e herança de fundo
constitucional. (artigo 5º, XXII e XXX)
O “pai e mãe afim”[xv], na denominação cunhada por WaldyrGrisard Filho
estabelece com o enteado mera guarda de fato, mantendo-se as
responsabilidades inerentes ao poder familiar com os genitores naturais
(pai e mãe), conforme disposto nos artigos 1632, 1634, 1636 e 1703 do
Código Civil.
Daí que se mostra absolutamente temerário pretender impor ao padrasto,
especialmente após o término do relacionamento afetivo entabulado com a
genitora, uma obrigação alimentar que compete, exclusivamente, aos pais
biológicos ou demais parentes consanguíneos, na esteira dos artigos 1694
e 1698 do diploma civil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário