quarta-feira, 13 de março de 2013

Da família recomposta

O tema em debate surge no âmbito das assim denominada famílias reconstituídas (reconstitutedfamily) ou recompostas (blendedfamily), segundas famílias, novas famílias, novas núpcias (remarriage) ou, simplesmente, famílias alargadas provenientes de recasamentos ou relacionamentos afetivos anteriores.

Em obra dedicada ao assunto, Waldyr Grisard Filho[viii] apresenta um conceito desta nova modalidade de arranjo familiar contemporâneo:“Família reconstituída é a estrutura familiar originada do casamento ou da união estável de um casal, na qual um ou ambos de seus membros têm um ou vários filhos de uma relação anterior. Numa formulação mais sintética, é a família na qual ao menos um dos adultos é um padrasto ou madrasta. Ou que exista ao menos um filho de uma união anterior de um dos pais. Nesta categoria entram tanto as sucessivas uniões de viúvos e de viúvas como de divorciados e divorciadas com filhos de uma relação precedente e as primeiras de mães e pais solteiros.”

Prossegue explicitando que “(...) também compreende o núcleo familiar originado de uma união estável, cujos integrantes cumprem as mesmas funções que as do novo cônjuge do pai ou da mãe”[ix]

O fato é que essa nova “constelação familiar”[x]surge estigmatizada pelo rótulo de “problemática”, sendo por vezes considerada como uma “família de segunda classe”, em que o fracasso do relacionamento afetivo anterior acaba por transmitir aos seus novos membros a instabilidade emocional inerente à redefinição dos novos papéis assumidos pelos adultos.

Nada mais inadequado do que estereotipar essas entidades familiares com qualificações preconceituosas, merecendo tais arranjos familiares idêntica proteção e respeito, haja vista a aplicação direta dos princípios constitucionais da igualdade, solidariedade e afetividade.
“A possibilidade de que um grupo familiar reconstituído funcione com baixo nível de conflitos dependerá da disponibilidade de que seus membros aceitem um modelo familiar distinto do anterior e que as relações entre seus membros sejam permeáveis. Os filhos deste tipo de relação experimentam dificuldades com relação aos limites, o espaço e o tempo que se lhes dedica e a autoridade a que devem obedecer, porque implica passar de um modelo a outro (de um nuclear para outro binuclear), em que antigas pautas seguem vigentes junto a novas.[xi]
Prossegue esclarecendo que “Estas famílias caracterizam-se pela ambiguidade. Em seu processo de constituição implica reconhecer uma estrutura complexa, conformada por uma multiplicidade de vínculos e nexos, na qual alguns de seus membros pertencem a sistemas familiares originados em uniões precedentes. As crianças podem passar a ter novos irmãos, que, se serem irmãos, o são em seu funcionamento cotidiano. Padrastos e madrastas cumprem suas funções, muitas vezes, sobrepondo-as às dos pais biológicos. Aparecem novos tios e avós, provenientes de outras famílias. A rede social se expande e surgem crises e conflitos de autoridade e lealdade, que exige o estabelecimento de um conjunto de pautas para uma interação estável no tempo e flexível em sua formulação. Sendo imprecisas as interações, pois não se tem claro quais são os laços ou a autoridade, o novo grupo familiar tem uma gigantesca tarefa a cumprir, qual seja, a de construir sua própria identidade, pois os seus integrantes organizam-se sob condições individuais, sociais e culturais diferentes.[xii]

Os vínculos afetivos que se formam a partir dessa nova configuração familiar, especialmente entre padrastos/madrastas e enteados constituem elemento central para a estabilização emocional e o próprio êxito da relação conjugal formada.

Ademais, frágil e precipitada se mostra a ideia de que se constituirá uma “paternidade instantânea” entre o “novo namorado da mamãe” ou a “nova namorada do papai”, à medida que o vínculo biológico se mostra muito mais forte na sedimentação do afeto, dependendo a dinâmica da recomposição da linha de substituição utilizada: integração ou exclusão.

Conforme pesquisa realizada por Cristina Lobo[xiii] na literatura especializada, “Ao contrário (do pai), o padrasto não é umparente das crianças, mas invade-lhes o quotidiano, entra- lhes em casa, muitas vezes sem pedir autorização, ocupaumlugar privilegiado no quarto da mãe e, por tudo isso, tem de provar com o tempo que é capaz de ser “qualquer coisa no meio” — entre parente e estranho ou um “parente estranho”( Beer, 1988) - umamigo, um cúmplice, um outsider íntimo (Papernow, 1993).E quem sabe - com algum tempo, imaginação, jeito e paciência—umsegundo pai ouumquase-pai. Tudo indica que o papel de padrasto, sendoumpapel de composição, se constrói com vontade e no tempo, e cuja legitimidade se conquista continuamente (Théry, 1995).Pais e padrastos, numa configuração familiar recomposta, não devem serpensados em separado. Porque só através da relação das crianças com os seus pais, elas poderão reconhecer no padrasto alguém que pode partilhar com eles a sua educação (idem).Naverdade, o padrasto não entra na família por causa das crianças, mas porcausa de um adulto (neste caso a mãe) e, para além disso, numa fase de reforço dos laços entre a mãe guardiã e os filhos. Ou seja, as mães sozinhas e os seus filhos criam um novo sistema familiar, e é precisamente neste sistema em que se partilha uma história, se intensificam relações e se restabelecem regras, que chega o padrasto (Cherlin e Furstenberg Jr., 1994).Em todo o caso, a chegada do novo companheiro da mãe também pode representar um reforço no orçamento da nova família, e consequentemente um aumento da estabilidade económica e da qualidade de vida do agregado familiar (Morgan, 1991).”

O fenômeno da paternageme a construção do vínculo afetivo entre um padrasto e um filho não biológico leva tempo para se desenvolver, sendo certo que a simples presença de outro adulto na casa, não significará, necessariamente a negação do pai biológico.

Em interessante estudo psicológico[xiv], Graciela Leus Tomé e Ligia Schermann, destacam que fatores como idade do enteado, ausência de contato com o pai biológico e o comportamento da genitora detentora da guarda mostram-se fundamentais para o êxito do relacionamento afetivo entre padrastos e enteados.

Ou seja, não necessariamente um padrasto pretende substituir o pai biológico do enteado, não se podendo presumir, em hipótese alguma, a caracterização de vinculo paternal socioafetivo quando este, efetivamente, jamais existiu ou foi pretendido pelas partes envolvidas na relação afetiva.

Mero decurso de tempo não pode servir como parâmetro definidor de uma paternidade socioafetiva, devendo-se perquirir sobre as genuínas intenções das participes da relação paterno-filial.

Não se pode afastar, logicamente, a possibilidade do reconhecimento de uma verdadeira paternidade socioafetivaconstruída, desde que se façam presentes os requisitos sedimentados pela doutrina (nome, trato e fama) e a qualidade do vinculo afetivo justifique esta caracterização.

Deve existir inequívoca manifestação do padrasto/madrasta, como, por exemplo, na hipótese de adoção pelo cônjuge ou companheiro do filho exclusivo de seu consorte (artigo 41, § 1º do Estatuto da Criança e Adolescente), ou inclusão do patronímico do padrasto (Lei 12.294/2009), inexistindo no ordenamento uma “presunção de paternidade socioafetiva.”

Simples cuidado ou colaboração com as despesas materiais do filho do outro companheiro não podem se converter em paternidade presumida, sob pena de se extinguir do sistema normativo o vínculo de afinidade disposto no artigo 1595 do Código Civil.

Outrossim, no intuito até mesmo de fomentar um saudável relacionamento familiar, inviável seria impor tratamentos discriminatórios no âmbito familiar, dispensando o padrasto melhores condições ao filho comum em detrimento do enteado, filho exclusivo de sua consorte.

Natural que no decorrer da evolução afetiva, seja dispensado ao enteado a mesma consideração dirigida ao filho natural, todavia, tal benesse não pode se converter em “direito adquirido” do favorecido, ou ainda, impor ao padrasto suportar um encargo financeiro perpétuo mesmo após eventual ruptura do relacionamento com a genitora do menor.

Aliás, curioso seria se a cada novo relacionamento afetivo do genitor, o menor “colecionasse” sucessivos co-devedores da obrigação alimentar, onerando-se indevidamente terceiros em detrimento da responsabilidade atribuída por lei aos pais biológicos.

Tal postura somente viria a fomentar a discórdia familiar, acarretando ainda, dificuldades para pessoas com filhos edificar novos relacionamentos afetivos, haja vista a possibilidade de futura responsabilização de terceiros pelo encargo financeiro dos genitores do alimentando.

Não se pode esquecer as gravosas conseqüências jurídicas para o devedor de alimentos, podendo este sofrer descontos em seus rendimentos, ser incluído em cadastros restritivos de crédito ou mesmo ter sua prisão civil decretada judicialmente, razões estas que, certamente justificam maior atenção no tratamento do assunto.

Ademais, a possibilidade de pensionamento até a maioridade civil, ou mesmo a conclusão de estudos universitários do alimentando, poderá acarretar prejuízos a terceiras pessoas não vinculadas ao relacionamento afetivo desfeito, tais como ascendentes e descendentes do padrasto, haja vistaprevisão do artigo 1698 do Código Civil.

A transmissibilidade da obrigação alimentar (artigo 1700 do Código Civil), poderá atingir, ademais, o patrimônio de terceiros desvinculados da relação conjugal desfeita, parentes consangüíneos do padrasto, em patente violação ao direito de propriedade e herança de fundo constitucional. (artigo 5º, XXII e XXX)

O “pai e mãe afim”[xv], na denominação cunhada por WaldyrGrisard Filho estabelece com o enteado mera guarda de fato, mantendo-se as responsabilidades inerentes ao poder familiar com os genitores naturais (pai e mãe), conforme disposto nos artigos 1632, 1634, 1636 e 1703 do Código Civil.

Daí que se mostra absolutamente temerário pretender impor ao padrasto, especialmente após o término do relacionamento afetivo entabulado com a genitora, uma obrigação alimentar que compete, exclusivamente, aos pais biológicos ou demais parentes consanguíneos, na esteira dos artigos 1694 e 1698 do diploma civil.


ROSALINO, Cesar Augusto. Redirecionamento da obrigação alimentar em face do padrasto. A jabuticaba no Direito de Família. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3541, 12 mar. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23947>. Acesso em: 13 mar. 2013.

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