quarta-feira, 13 de março de 2013

Redirecionamento da obrigação alimentar em face do padrasto

(...) Com efeito, meses atrás, a grande imprensa noticiou “decisão inédita” proferida liminarmente em primeiro grau de jurisdição pela Justiça de Santa Catarina em que restou fixada pensão alimentícia em favor de enteada, tendo o então ex-padrasto de suportar ônus financeiro fixado em 20% (cerca de R$ 1.500,00) sobre seus rendimentos.[ii]

Conforme informações disponíveis na imprensa, a adolescente seria filha biológica do primeiro casamento da mãe, tendo convivido com o padrasto por cerca de 10 anos, período em que este, contribuiu com o pagamento das despesas com saúde, educação e lazer da jovem, sem prejuízo da pensão de um salário mínimo já recebida pela menor de seu pai biológico.

Pelo que consta, referida decisão judicial fundamentou-se numa “nova visão do Direito de Família”, prestigiando-se o vínculo afetivo então existente entre as partes, capaz de se presumir a existência de uma paternidade socioafetiva construída ao longo do tempo.

Confesso que levei algum tempo para compreender essa curiosa e alvissareira decisão, ainda mais, se considerado a existência de regras bastante objetivas dispostas pelo legislador nos artigos 1694 e seguintes do Código Civil Brasileiro no que tange à obrigação alimentar.

Ademais, incongruente se mostra decisão judicial que, simplesmente, presume a existência de uma paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica íntegra entre a menor e seu genitor, que, aliás, já suporta encargo alimentar pago mensalmente.

Consoante será demonstrado linhas abaixo, instaurou-se uma verdadeira miscelânea conceitual, contrapondo-se vínculos de parentesco com liames de afinidade, visando, criar uma obrigação alimentar até então inexistente no ordenamento posto, de modo a se concluir afoitamente que “padrasto” e “pai” seriam parâmetros equivalentes, o que, obviamente, resvala em impropriedade lógica e conceitual.

Já ressaltei em outras oportunidades o desconforto gerado por tais decisões judiciais, que, na melhor exegese, não se mostram saudáveis à democracia.

Não é bom para a legitimação do Direito enquanto instrumento social de pacificação, tergiversa com regras postas pelo legislador estatal e fomenta a insegurança jurídica, somente reforçando o conhecido dito popular: “cada cabeça, uma sentença.”

Antes de mais nada, urge desde logo ressaltar que não se pretende adentrar na seara fática da situação posta em debate, tampouco imiscuir-se no mérito da decisão judicial prolatada, cabendo somente às partes envolvidas no litigio fazer uso dos meios processuais adequados à eventual reforma do decidido.

O debate que ora se propõe repousa na legitima e honesta dialética doutrinária, no saudável debate necessário à evolução das ciências sociais, compreendendo-se a amplitude dos institutos jurídicos e suas conseqüências no teatro da vida real.

Também já salientei que a Doutrina familiarista evoluiu enormemente na ultima década, reformulando conceitos e trazendo à lume parâmetros interpretativos, institutos e princípios fincados na nova ordem constitucional vigente após 1988.

 A constitucionalização do ordenamento jurídico não poderia excluir, logicamente, o direito de família, ramo imprescindível à manutenção dos vínculos sociais, garantindo-se a introdução de valores como liberdade, responsabilidade, igualdade, solidariedade e afetividade.

É inegável que o direito civil brasileiro, em especial, o direito de família passou por profundas transformações a partir da vigência da atual Constituição Federal, superando o tradicional modelo patriarcal rural, fundado no matrimônio indissolúvel, na desigualdade conjugal e assimetria do tratamento legal dos filhos.

A problemática que surgiu desta revolução conceitual advém exatamente do influxo de informações e teorias, que acabaram por desconstruir bases sedimentadas por décadas, a ponto de não se reconhecer mais unidade, coerência e integridade no ordenamento vigente.

A inflação de interpretações acarretou deconfiguração nosistema jurídico, de modo a trazer ao cidadão insegurança, receio e angústia ao se deparar com a imprevisibilidade da prestação jurisdicional, culminando em decisionismo e solipsismo judicial.

Se por um lado o magistrado não se limita hoje a mero autômato, aplicador do direito posto, apenas a “boca da lei”, como pretendiam os revolucionários pós 1789, de outra parte, também não pode adotar entendimentos sedimentados em subjetividade pessoal, divorciados da norma estatal legitimamente criada pelo legislador instituído.

O direito, definitivamente, não é aquilo que o intérprete quer que ele seja, sob pena de se subverter a ordem democrática vigente, subordinando relações sociais ao arbítrio de cada um, a ponto de não se justificar mais a existência de um Estado organizado, dotado de soberania e supremacia perante o cidadão.  
Parafraseando o Professor LênioStreck[iii], o “Direito acaba sendo conceitos sem coisas”, um emaranhado de subjetividades plasmadas por vaidade intelectual que acabam por desaguar na desordem e insegurança jurídica.
“O Direito não está ao nosso dispor. Ou seríamos pequenos tiranos, ao estilo ledroitc'est moi. Interpretação não é ato de vontade. Os sentidos dos textos não estão ao nosso dispor. A interpretação é um encontro. Uma fusão de horizontes (o do texto — inteiro alerte-se — e o do intérprete).[iv]
O magistrado não pode transformar em comando normativo seu mero querer ou entendimento individual. Quando não se trata de disposição legal expressa (e ausente a possibilidade de relativizar o comando, em virtude de princípios ou regras postos), cabe ao magistrado fundamentar e dialeticamente convencer da razoabilidade de seu provimento.

Ora, se a lei não previu hipóteses em que a obrigação alimentar pode ser legitimamente direcionada às pessoas ligadas por vínculo de afinidade, não compete ao intérprete ou aplicador da lei inovar, criar ou simplesmente alterar o sentido e conteúdo do texto legal, sob pena de usurpar a competência do Poder Legislativo e ofender o principio da tripartição dos poderes, tão caro à jovem democracia brasileira.

A propalada ideia de que “julgar é um ato de vontade” não se coaduna com a existência de um Estado de Direito, em que limites normativos são postos ao julgador, sob pena de se prestigiar um poder inquisitivo, arbitrário e ilegítimo, fundado apenas no “tribunal da razão”, no “interpretacionismo” doirresponsável aplicador da norma.[v]

O ativismo judicial utilizado de forma inadequada pode levar àquilo que o Professor LenioEstreck denomina de “álibis persuasivos”[vi], fortalecendo um protagonismo do intérprete fundado em decisionismo e subjetividade, ancorada em princípios constitucionais que se mostram justificadores de qualquer decisão.

Daniel Sarmento também pondera sobre a necessidade de cuidado redobrado da inconseqüente aplicação dos princípios: “E a outra face da moeda (do uso desmesurado dos princípios) é o lado do decisionismo do “oba-oba”. Acontece que muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de, através deles, buscarem justiça – ou o que entendem por justiça – passaram a negligenciar do seu dever de fundamentar racionalmente seus julgamentos. Esta “euforia” com os princípios abriu um espaço maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com seus jargões grandiloqüentes e com sua retórica inflamada, mas um decisionismo. Os princípios constitucionais , neste quadro, convertem-se em verdadeiras “varinhas de condão”: com ele, o julgador consegue fazer quase tudo o que quiser.”[vii]

Tecidas tais considerações iniciais, resta analisar a viabilidade jurídica bem como os reflexos sociais do pretendido redirecionamento da obrigação alimentar em face do denominados parentes “afins”, sem antes trazer ao debate conceitos jurídicos imprescindíveis para a adequada compreensão da celeuma instaurada.

ROSALINO, Cesar Augusto. Redirecionamento da obrigação alimentar em face do padrasto. A jabuticaba no Direito de Família. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3541, 12 mar. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23947>. Acesso em: 13 mar. 2013.

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