(...) Com efeito, meses atrás, a grande imprensa noticiou “decisão inédita”
proferida liminarmente em primeiro grau de jurisdição pela Justiça de
Santa Catarina em que restou fixada pensão alimentícia em favor de
enteada, tendo o então ex-padrasto de suportar ônus financeiro fixado em
20% (cerca de R$ 1.500,00) sobre seus rendimentos.[ii]
Conforme informações disponíveis na imprensa, a adolescente seria filha
biológica do primeiro casamento da mãe, tendo convivido com o padrasto
por cerca de 10 anos, período em que este, contribuiu com o pagamento
das despesas com saúde, educação e lazer da jovem, sem prejuízo da
pensão de um salário mínimo já recebida pela menor de seu pai biológico.
Pelo que consta, referida decisão judicial fundamentou-se numa “nova
visão do Direito de Família”, prestigiando-se o vínculo afetivo então
existente entre as partes, capaz de se presumir a existência de uma
paternidade socioafetiva construída ao longo do tempo.
Confesso que levei algum tempo para compreender essa curiosa e
alvissareira decisão, ainda mais, se considerado a existência de regras
bastante objetivas dispostas pelo legislador nos artigos 1694 e
seguintes do Código Civil Brasileiro no que tange à obrigação alimentar.
Ademais, incongruente se mostra decisão judicial que, simplesmente,
presume a existência de uma paternidade socioafetiva em detrimento da
paternidade biológica íntegra entre a menor e seu genitor, que, aliás,
já suporta encargo alimentar pago mensalmente.
Consoante será demonstrado linhas abaixo, instaurou-se uma verdadeira
miscelânea conceitual, contrapondo-se vínculos de parentesco com liames
de afinidade, visando, criar uma obrigação alimentar até então
inexistente no ordenamento posto, de modo a se concluir afoitamente que
“padrasto” e “pai” seriam parâmetros equivalentes, o que, obviamente,
resvala em impropriedade lógica e conceitual.
Já ressaltei em outras oportunidades o desconforto gerado por tais
decisões judiciais, que, na melhor exegese, não se mostram saudáveis à
democracia.
Não é bom para a legitimação do Direito enquanto instrumento social de
pacificação, tergiversa com regras postas pelo legislador estatal e
fomenta a insegurança jurídica, somente reforçando o conhecido dito
popular: “cada cabeça, uma sentença.”
Antes de mais nada, urge desde logo ressaltar que não se pretende
adentrar na seara fática da situação posta em debate, tampouco
imiscuir-se no mérito da decisão judicial prolatada, cabendo somente às
partes envolvidas no litigio fazer uso dos meios processuais adequados à
eventual reforma do decidido.
O debate que ora se propõe repousa na legitima e honesta dialética
doutrinária, no saudável debate necessário à evolução das ciências
sociais, compreendendo-se a amplitude dos institutos jurídicos e suas
conseqüências no teatro da vida real.
Também já salientei que a Doutrina familiarista evoluiu enormemente na
ultima década, reformulando conceitos e trazendo à lume parâmetros
interpretativos, institutos e princípios fincados na nova ordem
constitucional vigente após 1988.
A constitucionalização do ordenamento jurídico não poderia excluir,
logicamente, o direito de família, ramo imprescindível à manutenção dos
vínculos sociais, garantindo-se a introdução de valores como liberdade,
responsabilidade, igualdade, solidariedade e afetividade.
É inegável que o direito civil brasileiro, em especial, o direito de
família passou por profundas transformações a partir da vigência da
atual Constituição Federal, superando o tradicional modelo patriarcal
rural, fundado no matrimônio indissolúvel, na desigualdade conjugal e
assimetria do tratamento legal dos filhos.
A problemática que surgiu desta revolução conceitual advém exatamente
do influxo de informações e teorias, que acabaram por desconstruir bases
sedimentadas por décadas, a ponto de não se reconhecer mais unidade,
coerência e integridade no ordenamento vigente.
A inflação de interpretações acarretou deconfiguração nosistema
jurídico, de modo a trazer ao cidadão insegurança, receio e angústia ao
se deparar com a imprevisibilidade da prestação jurisdicional,
culminando em decisionismo e solipsismo judicial.
Se por um lado o magistrado não se limita hoje a mero autômato,
aplicador do direito posto, apenas a “boca da lei”, como pretendiam os
revolucionários pós 1789, de outra parte, também não pode adotar
entendimentos sedimentados em subjetividade pessoal, divorciados da
norma estatal legitimamente criada pelo legislador instituído.
O direito, definitivamente, não é aquilo que o intérprete quer que ele
seja, sob pena de se subverter a ordem democrática vigente, subordinando
relações sociais ao arbítrio de cada um, a ponto de não se justificar
mais a existência de um Estado organizado, dotado de soberania e
supremacia perante o cidadão.
Parafraseando o Professor LênioStreck[iii], o
“Direito acaba sendo conceitos sem coisas”, um emaranhado de
subjetividades plasmadas por vaidade intelectual que acabam por desaguar
na desordem e insegurança jurídica.
“O Direito não está ao nosso dispor. Ou seríamos pequenos tiranos, ao estilo ledroitc'est moi. Interpretação não é ato de vontade. Os sentidos dos textos não estão ao nosso dispor. A interpretação é um encontro. Uma fusão de horizontes (o do texto — inteiro alerte-se — e o do intérprete).[iv]”
O magistrado não pode transformar em comando normativo seu mero querer
ou entendimento individual. Quando não se trata de disposição legal
expressa (e ausente a possibilidade de relativizar o comando, em virtude
de princípios ou regras postos), cabe ao magistrado fundamentar e
dialeticamente convencer da razoabilidade de seu provimento.
Ora, se a lei não previu hipóteses em que a obrigação alimentar pode
ser legitimamente direcionada às pessoas ligadas por vínculo de
afinidade, não compete ao intérprete ou aplicador da lei inovar, criar
ou simplesmente alterar o sentido e conteúdo do texto legal, sob pena de
usurpar a competência do Poder Legislativo e ofender o principio da
tripartição dos poderes, tão caro à jovem democracia brasileira.
A propalada ideia de que “julgar é um ato de vontade” não se coaduna
com a existência de um Estado de Direito, em que limites normativos são
postos ao julgador, sob pena de se prestigiar um poder inquisitivo,
arbitrário e ilegítimo, fundado apenas no “tribunal da razão”, no
“interpretacionismo” doirresponsável aplicador da norma.[v]
O ativismo judicial utilizado de forma inadequada pode levar àquilo que
o Professor LenioEstreck denomina de “álibis persuasivos”[vi],
fortalecendo um protagonismo do intérprete fundado em decisionismo e
subjetividade, ancorada em princípios constitucionais que se mostram
justificadores de qualquer decisão.
Daniel Sarmento também pondera sobre a necessidade de cuidado redobrado
da inconseqüente aplicação dos princípios: “E a outra face da moeda (do
uso desmesurado dos princípios) é o lado do decisionismo do “oba-oba”.
Acontece que muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da
possibilidade de, através deles, buscarem justiça – ou o que entendem
por justiça – passaram a negligenciar do seu dever de fundamentar
racionalmente seus julgamentos. Esta “euforia” com os princípios abriu
um espaço maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido
sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com seus jargões
grandiloqüentes e com sua retórica inflamada, mas um decisionismo. Os
princípios constitucionais , neste quadro, convertem-se em verdadeiras
“varinhas de condão”: com ele, o julgador consegue fazer quase tudo o
que quiser.”[vii]
Tecidas tais considerações iniciais, resta analisar a viabilidade
jurídica bem como os reflexos sociais do pretendido redirecionamento da
obrigação alimentar em face do denominados parentes “afins”, sem antes
trazer ao debate conceitos jurídicos imprescindíveis para a adequada
compreensão da celeuma instaurada.
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