Com o advento da Constituição Federal de 1988, a família deixou de ser
um fim em si mesmo e passou a ser locus de realização existencial dos
seus membros, à medida que o afeto se tornou imprescindível às relações
desenvolvidas entre pais e filhos. Neste contexto, percebe-se que o que
define a relação paterno-filial não é apenas a origem biológica, mas
também, e principalmente, a relação de afeto desenvolvida entre o pai e o
filho, uma vez que,
“para a criança, sua simples origem fisiológica não a leva a ter vínculo com seus pais; a figura dos pais, para ela, são aqueles com que ela tem relações de sentimento, aqueles que se entregam ao seu bem, satisfazendo suas necessidades de carinho, alimentação, cuidado e atenção.”[2]
É cediço que a criança em desenvolvimento necessita da convivência
familiar, a fim de que possa concluir o estágio de formação da sua
personalidade de forma completa e sadia. No entanto, o direito à
convivência familiar não se esgota no poder-dever dos pais de manter os
filhos em sua guarda e companhia, pois “garantir ao filho a convivência
familiar significa respeitar seu direito de personalidade e garantir-lhe
a dignidade, na medida em que depende de seus genitores não só
materialmente.”[3]
Sob essa perspectiva, depreende-se que a convivência familiar decorre
do cuidado, do afeto, da atenção proporcionada pelo pai ao filho,
sobretudo nos momentos em que ele se sente mais carente, como em datas
comemorativas. Portanto, convivência familiar não implica em coabitação,
mas no dever que o pai tem de continuar presente na vida do filho não
apenas fisicamente, mas também moralmente. Diante disso, a distância não
pode ser utilizada como desculpa para justificar a falta de assistência
moral do pai para com o seu filho. Até mesmo porque,
“é de fato simplória a defesa de que a convivência familiar se esgota na garantia da presença física, na coexistência, com ou sem coabitação. A exigência da presença paterna não é apenas física. Soa paradoxal, mas só há visita entre quem não convive, pois quem convive mantém uma relação de intimidade, uma relação verdadeiramente familiar.”[4]
Insta observar que a convivência familiar assegura a integridade
física, moral e psicológica da criança, na medida em que permite que o
desenvolvimento de sua personalidade se dê de forma saudável, em um
ambiente em que é dispensada à criança a atenção de que ela necessita e a
orientação que não pode ser negligenciada nesta fase da vida.
É, nesse sentido, o ensinamento de Claudete Carvalho Canezin:
“A figura do pai é responsável pela primeira e necessária ruptura da intimidade mãe-filho e pala introdução do filho no mundo transpessoal dos irmãos, dos parentes e da sociedade. [...] Assim, a falta da figura do pai desestrutura os filhos, tira-lhes o rumo da vida e debita-lhes a vontade de assumir um projeto de vida. Tornam-se pessoas inseguras, infelizes.”[5]
Destarte, percebe-se que o abandono afetivo nada mais é do que a
atitude omissiva do pai no cumprimento dos deveres de ordem moral
decorrentes do poder familiar, dentre os quais se destacam os deveres de
prestar assistência moral, educação, atenção, carinho, afeto e
orientação à prole.
Convém ressaltar que o abandono afetivo na filiação não ocorre apenas
quando há a ausência física e moral do pai na vida do filho, mas também
quando, embora haja coabitação entre eles, o pai não dispensa ao filho a
menor forma de afeto e atenção. Isso porque, como já asseverado, a
convivência familiar requer a presença moral, muito mais do que a
presença física.
O abandono afetivo desponta mais frequentemente no momento de
dissolução da sociedade conjugal, nos casos em que tem origem o fenômeno
conhecido como recomposição de famílias. Neste contexto, uma vez
dissolvida a sociedade conjugal, atribui-se a guarda dos filhos menores a
ambos os pais ou, nos casos em que isso não seja possível, a um deles.
Com efeito, desde a edição da Lei 11.698/08, passou a ter primazia o
instituto da guarda compartilhada, apenas havendo que se falar em guarda
unilateral quando o melhor interesse da criança, por uma série de
fatores, assim determinar. De toda sorte,
“caso seja possível que os pais separados continuem a compartilhar os cuidados com seus filhos, independentemente de qual seja a residência onde a criança permaneça por mais tempo, a convivência da mesma com ambos os pais está automaticamente garantida.”[6]
Convém salientar que o abandono afetivo é pior do que o abandono
material, conforme destaca Claudete Carvalho Canezin, já que, embora a
carência financeira possa ser suprida por terceiros interessados, como
parentes, amigos, ou até mesmo pelo Estado, através dos programas
assistenciais, “o afeto e o carinho negado pelo pai a seu filho não pode
ser suprido pelo afeto de terceiros, muito menos pode o Estado
suplantar a ausência paterna.”[7]
Por tudo isso, os pais não podem olvidar que, embora a sua relação não
tenha prosperado, os vínculos parentais e afetivos com os filhos são
permanentes, não podendo ser rompidos pela simples falência da sociedade
conjugal, de modo que “quanto à filiação, rompe-se a coexistência ou
coabitação, jamais o dever de convivência”.[8]
Nesse sentido, importa trazer à baila lição de Giselda Hironaka:
“A ausência injustificada do pai origina – em situações corriqueiras – evidente dor psíquica e consequente prejuízo à formação da criança, decorrente da falta não só do afeto, mas do cuidado e da proteção (função psicopedagógica) que a presença paterna representa na vida do filho, mormente quando entre eles já se estabeleceu um vínculo de afetividade.”[9]
Por esses motivos, tem-se observado uma crescente procura pelo
judiciário, a fim de que sejam resolvidos os casos de abandono afetivo
na filiação, oriundos da quebra dos deveres jurídicos decorrentes do
exercício do poder familiar.
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