Atentos às mudanças ocorridas na estrutura familiar e conscientes de
que a afetividade passou a ser o instrumento propulsor das famílias
contemporâneas, os tribunais pátrios vêm recepcionando demandas cujo
objeto é a reparação civil do dano moral decorrente do descumprimento do
dever de convivência familiar.
A primeira decisão acerca do referido tema foi proferida pelo juiz
Mario Romano Maggioni, em 15.09.2003, na 2ª Vara da Comarca de Capão da
Canoa – RS (Processo n.º 141/1030012032-0) [32].
Na ocasião, o pai foi condenado ao pagamento de 200 salários-mínimos de
indenização por dano moral, em razão do abandono afetivo e moral da
filha de 9 anos.
Ao fundamentar sua decisão, o magistrado priorizou os deveres
decorrentes da paternidade, insculpidos no art. 22 da Lei n.º 8.069/90,
dispondo que:
“aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos (art. 22, da lei nº 8.069/90). A educação abrange não somente a escolaridade, mas também a convivência familiar, o afeto, amor, carinho, ir ao parque, jogar futebol, brincar, passear, visitar, estabelecer paradigmas, criar condições para que a criança se auto-afirme”.
Ademais, destacou as consequências negativas que podem decorrer do abandono afetivo na filiação, ao considerar que:
“a ausência, o descaso e a rejeição do pai em relação ao filho recém-nascido, ou em desenvolvimento, violam a sua honra e a sua imagem. Basta atentar para os jovens drogados e ver-se-á que grande parte deles derivam de pais que não lhes dedicam amor e carinho; assim também em relação aos criminosos.”
Ressalte-se, por oportuno, que o Ministério Público, intervindo no
feito por haver interesse de menores, através da promotora De Carli dos
Santos, se mostrou contrário à admissibilidade da indenização no caso de
abandono afetivo, por considerar que não compete ao judiciário condenar
alguém ao pagamento de indenização por desamor. Contudo, em que pese
tais argumentações, a sentença foi julgada procedente, transitando em
julgado em razão da não interposição de recurso pelo réu, considerado
revel no processo.
Outra decisão favorável foi proferida pelo magistrado Luis Fernando
Cirillo, em 05.06.2004, na 31ª Vara Cível do Foro Central de São
Paulo-SP (Processo n.º 01.036747-0) [33], no
qual se reconheceu que, conquanto não seja razoável um filho pleitear
indenização contra um pai por não ter recebido dele afeto, “a
paternidade não gera apenas deveres de assistência material, e que além
da guarda, portanto independentemente dela, existe um dever, a cargo do
pai, de ter o filho em sua companhia”.
Prosseguindo em sua argumentação, o magistrado entendeu que não devem
prosperar teses no sentido de que julgar procedente referidas demandas
implicaria numa monetarização do afeto, até porque também “não tem
sentido sustentar que a vida de um ente querido, a honra e a imagem e a
dignidade de um ser humano tenham preço, e nem por isso se nega o
direito à obtenção de um benefício econômico em contraposição à ofensa
praticada contra esses bens”.
Merece destaque, ainda, a decisão proferida pela Sétima Câmara Cível do
Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais (TAMG) que, seguindo a
mesma linha de argumentação das decisões supramencionadas, reformou a
sentença proferida pela 19ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte -
MG, para condenar o pai ao pagamento de indenização por danos morais no
valor de R$ 44.000,00 (quarenta e quatro mil reais), independentemente
do descumprimento da prestação alimentar, ao argumento de que restou
configurado nos autos o dano à dignidade do menor, provocado pela
conduta ilícita do pai que não cumpriu o dever que a lei lhe impõe de
manter o convívio familiar com o filho.
A ementa encontra-se assim redigida:
INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS – RELAÇÃO PATERNO-FILIAL- PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE.
A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana. (TAMG, AC 4085505-54.2000.8.13.0000, 7ª C. Cível, Rel. Juiz Unias Silva, julg. 01.04.2004, pub. 29.04.04).
No mesmo sentido, é de ressalte decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), datada de 2009, in verbis:
Responsabilidade civil. Ação de indenização por dano moral que a Autora teria sofrido em razão do abandono material e afetivo por seu pai que somente reconheceu a paternidade em ação judicial proposta em 2003, quando ela já completara 40 anos. Procedência do pedido, arbitrada a indenização em R$ 209.160,00. Provas oral e documental. Apelante que tinha conhecimento da existência da filha desde que ela era criança, nada fazendo para assisti-la, diferentemente do tratamento dispensado aos seus outros filhos. Dano moral configurado. Quantum da indenização que adotou como parâmetro o valor mensal de 2 salários mínimos mensais que a Apelada deixou de receber até atingir a maioridade. Indenização que observou critérios de razoabilidade e de proporcionalidade. Desprovimento da apelação. (TJRJ, AC 0007035-34.2006.8.19.0054, 8ª C. Cível, Rel. Des. Ana Maria Oliveira, julg. 20.10.2009).
Da leitura dos referidos julgados, percebe-se que parte da
jurisprudência entende que a infração dos encargos decorrentes do poder
familiar, previstos no art. 1.634 do CC/02, acarreta o dever de
indenizar, sobretudo, quando a atitude voluntária e injustificada
importa prejuízo para os direitos da personalidade do filho menor, bem
como à sua dignidade, casos em que resta configurado o dano moral.
É oportuno reforçar que o dano moral pode encontrar-se caracterizado
independentemente do cumprimento da prestação alimentícia, a qual está
intimamente ligada ao abandono material. Assim, a despeito de restar
configurado prejuízo à esfera patrimonial do menor, pode haver
configuração do abandono moral, em razão do descumprimento por parte do
pai do dever de prestar assistência moral ao filho, prejudicando o
desenvolvimento completo e sadio da personalidade do mesmo.
Conquanto se tenham notícias de decisões favoráveis, como as que foram
expostas, a questão da reparação civil em caso de abandono moral e
afetivo na filiação não encontra consenso. Assim, há decisão conflitante
proferida no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG):
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. PAI. ABANDONO AFETIVO. ATO ILÍCITO. DANO INJUSTO. INEXISTENTE. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. MEDIDA QUE SE IMPÕE.O afeto não se trata de um dever do pai, mas decorre de uma opção inconsciente de verdadeira adoção, de modo que o abandono afetivo deste para com o filho não implica ato ilícito nem dano injusto, e, assim o sendo, não há falar em dever de indenizar, por ausência desses requisitos da responsabilidade civil. (TJMG, AC 0063791-20.2007.8.13.499, 17ª C. Cível, Rel. Des Luciano Pinto, julg. 27.11.2008, pub. 09.01.09).
Verifica-se que o entendimento do julgado retrotranscrito é no sentido
de que o afeto não é um dever do pai e, portanto, o seu descumprimento
não representa ato ilícito ou dano injusto geradores do dever de
indenizar.
Nesse sentido, posiciona-se o Superior Tribunal de Justiça (STJ), para o
qual o descumprimento dos deveres jurídicos decorrentes do poder
familiar encontra solução no próprio direito de família, com a perda do
poder familiar, prevista pelo art. 1.638, II, CC/02.
Esse é o conteúdo da decisão no Recurso Especial (REsp) n.º 757.411 – MG:
RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido. (STJ, REsp n.º 757.411 – MG, 4ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julg. 29/11/05, DJ 27/03/06, p. 299).
É interessante destacar o voto do Ministro Relator, no referido
julgado, para quem não seria cabível a reparação civil nos casos de
abandono afetivo:
“No caso de abandono ou do descumprimento injustificado do dever de sustento, guarda e educação dos filhos, porém, a legislação prevê como punição a perda do poder familiar, antigo pátrio-poder, tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 24, quanto no Código Civil, art. 1638, inciso II. Assim, o ordenamento jurídico, com a determinação da perda do poder familiar, a mais grave pena civil a ser imputada a um pai, já se encarrega da função punitiva e, principalmente, dissuasória, mostrando eficientemente aos indivíduos que o Direito e a sociedade não se compadecem com a conduta do abandono, com o que cai por terra a justificativa mais pungente dos que defendem a indenização pelo abandono moral. Por outro lado, é preciso levar em conta que, muitas vezes, aquele que fica com a guarda isolada da criança transfere a ela os sentimentos de ódio e vingança nutridos contra o ex-companheiro, sem olvidar ainda a questão de que a indenização pode não atender exatamente o sofrimento do menor, mas também a ambição financeira daquele que foi preterido no relacionamento amoroso.”
Frise-se que, recentemente, o STJ manteve o seu entendimento no
julgamento do REsp n.º 514350 / SP, cuja ementa segue transcrita:
CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. RECONHECIMENTO. DANOS MORAIS REJEITADOS. ATO ILÍCITO NÃO CONFIGURADO.
I. Firmou o Superior Tribunal de Justiça que "A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária" (REsp n.º 757.411/MG, 4ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, unânime, DJU de 29.11.2005). II. Recurso especial não conhecido. (STJ, REsp n.º 514.350 – SP, 4ª Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julg. 28/04/09, DJe 25/05/09).
Com efeito, o abandono afetivo na filiação enseja a perda do poder
familiar. Contudo, isso não implica na impossibilidade da reparação
civil do dano moral, uma vez que estejam presentes todos os requisitos
para sua caracterização. Neste sentido, tem-se o entendimento do
Ministro Barros Monteiro que, no REsp n.º 757.411 – MG, se mostrou
contrário ao voto do relator, indicando que não há unanimidade no
entendimento do STJ. Eis seu posicionamento:
“Penso que daí decorre uma conduta ilícita da parte do genitor que, ao lado do dever de assistência material, tem o dever de dar assistência moral ao filho, de conviver com ele, de acompanha-lo e de dar-lhe o necessário afeto [...] Penso também, que a destituição do poder familiar, que é uma sanção do Direito de Família, não interfere na indenização por dano moral, ou seja, a indenização é devida além dessa outra sanção prevista não só no Estatuto da Criança e do Adolescente, como também no Código Civil anterior e no atual. [...].”
Da referida decisão foi interposto Recurso Extraordinário (RE) para o
Supremo Tribunal Federal (STF), ao qual foi negado provimento pela
Segunda Turma Cível:
EMENTA CONSTITUCIONAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO.CONVERSÃO EM AGRAVO REGIMENTAL. ABANDONO AFETIVO. ART. 229 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. DANOS EXTRAPATRIMONIAIS. ART. 5º, V E X, CF/88. INDENIZAÇÃO. LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL E SÚMULA STF 279. 1. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental, consoante iterativa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 2. A análise da indenização por danos morais por responsabilidade prevista no Código Civil, no caso, reside no âmbito da legislação infraconstitucional. Alegada ofensa à Constituição Federal, se existente, seria de forma indireta, reflexa. Precedentes. 3. A ponderação do dever familiar firmado no art. 229 da Constituição Federal com a garantia constitucional da reparação por danos morais pressupõe o reexame do conjunto fático-probatório, já debatido pelas instâncias ordinárias e exaurido pelo Superior Tribunal de Justiça. 4. Incidência da Súmula STF 279 para aferir alegada ofensa ao artigo 5º, V e X, da Constituição Federal. 5. Agravo regimental improvido. (STF, RE 567164 ED/MG, 2ª Turma Cível, Rel. Min. Ellen Gracie, julg. 18.08.09, DJe 11.09.09).
Verifica-se, do referido acórdão, que não houve julgamento do mérito do
RE, em virtude de o abandono afetivo ser matéria de ordem
infraconstitucional e pela necessidade de reexame de provas, o que
contraria a Súmula n.º 279 do STF. É de ressalte, também, que, por esses
motivos, até o presente momento não houve pronunciamento do Pretório
Excelso relativamente ao tema ora tratado.
Contrariamente ao posicionamento do STJ sustentado até então, deve-se
destacar que é a infração do dever legal de manter a convivência
familiar (art. 1634, II, CC/02), aliada a infração dos deveres de guarda
e educação (art. 22 do ECA) que ensejam a reparação civil do dano moral
decorrente do abandono afetivo na filiação. Portanto, não se trata de
obrigar um pai a amar um filho, mas de responsabilizar civilmente aquele
que descumpre um dever jurídico.
Outrossim, não se trata de monetarizar o afeto, até mesmo porque a
indenização, nestes casos, também assume um papel pedagógico, como
entende Giselda Hironaka e Rodrigo da Cunha Pereira. Destarte, a
indenização assume o escopo de evitar novas condutas omissivas do pai em
relação aos seus filhos, considerando que a dor da alma ou o prejuízo
no desenvolvimento do filho não podem ser reparados em sua totalidade.
Ademais, se fosse suficiente o argumento de que se estaria
quantificando o afeto para afastar a responsabilidade civil dos pais,
ter-se-ia uma gritante contradição, já que também não se pode
quantificar a dignidade, a imagem, a honra, ou quaisquer outros direitos
da personalidade, e nem por isso o judiciário deixa de conceder
indenizações nos casos em que restam configurados danos a esses direitos
extrapatrimoniais.
Acerca da decisão proferida pelo STJ, convém destacar, por oportuno, importante lição de Maria Berenice Dias:
“Profunda foi a reviravolta que produziu, não só na justiça, mas nas próprias relações entre pais e filhos, a nova tendência da jurisprudência, que passou a impor ao pai o dever de pagar indenização, a título de danos morais, ao filho pela falta de convívio, mesmo que venha atendendo ao pagamento da pensão alimentícia. A decisão da justiça de Minas Gerais, apesar de ter sido reformada pelo STJ, continua aplaudida pela doutrina e vem sendo amplamente referendada por outros julgados. Imperioso reconhecer o caráter didático dessa nova orientação, despertando a atenção para o significado do convívio entre pais e filhos. Mesmo que os genitores estejam separados, a necessidade afetiva passou a ser reconhecida como bem juridicamente tutelado.”[34]
Ouvindo os reclames da doutrina e dos Tribunais de Justiça que
consagravam a possibilidade jurídica de indenização do dano moral
decorrente do abandono afetivo da filiação, a Terceira Turma do Superior
Tribunal de Justiça modificou o entendimento até então consagrado,
asseverando a viabilidade da exigência de indenização por dano moral
decorrente de abandono afetivo pelos pais, uma vez que, nas palavras da
Ministra Nancy Andrighi: “amar é faculdade, cuidar é dever.”
Por oportuno, transcreve-se o atual posicionamento da Corte Superior:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE.1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família.2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88.3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico.4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial.6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada.7. Recurso especial parcialmente provido. (STJ, Resp 1159242 / SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 24.04.12, DJe 10.05.12).
MACHADO, Gabriela Soares Linhares. Análise doutrinária e jurisprudencial acerca do abandono afetivo na filiação e sua reparação. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3508, 7 fev. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23666>. Acesso em: 29 mar. 2013.
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