O tema referente ao abandono afetivo na filiação e o consequente dever
de reparação é novo no ordenamento pátrio, não havendo legislação
específica tratando da matéria. Assim, no momento em que os magistrados e
tribunais vão julgar as demandas interpostas perante o judiciário, a
doutrina passa a ser uma importante fonte de auxílio.
Vale salientar, porém, que não há consenso acerca da sanção a ser
aplicada aos pais que, por omissão, descumpriram alguns dos deveres
decorrentes do poder familiar. Diante disso, há duas correntes que
merecem destaque.
A primeira entende que é possível a reparação civil, utilizando como
argumentos o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o
princípio implícito da afetividade, bem como o princípio da proteção
integral da criança e do adolescente. Por outro lado, a segunda corrente
entende não ser possível a reparação pecuniária nos casos de abandono
afetivo, sob pena de se quantificar o amor, sem se esquecer do fato de
que ninguém pode ser obrigado a amar.
Pelo apanhado da doutrina, verifica-se que Maria Berenice Dias, Paulo
Lôbo, Giselda Hironaka, Bernardo Castelo Branco, Rui Stoco, Rodrigo da
Cunha Pereira, Maria Cláudia da Silva e Claudete Carvalho Canezin se
posicionam favoravelmente à reparação civil do dano moral decorrente do
abandono afetivo na filiação.
Para Maria Berenice Dias, “comprovado que a falta de convívio pode
gerar danos, a ponto de comprometer o desenvolvimento pleno e saudável
do filho, a omissão do pai gera dano afetivo susceptível de ser
indenizado”.[15]
No mesmo sentido, tem-se o ensinamento de Rui Stoco:
“[...] o que se põe em relevo e exsurge como causa de
responsabilização por dano moral é o abandono afetivo, decorrente do
distanciamento físico e da omissão sentimental, ou seja a negação de
carinho, de atenção, de amor e de consideração, através do afastamento,
do desinteresse, do desprezo e falta de apoio e, às vezes, da completa
ausência de relacionamento entre pai (ou mãe) e filho.”[16]
Assim, percebe-se que, para os autores acima citados, deve haver
indenização do dano moral provocado pela conduta omissiva do pai em
cumprir o dever de convivência familiar, tendo em vista que o
descumprimento deste dever impossibilita o desenvolvimento intelectual,
emocional e social da criança. A conduta omissiva do pai, portanto,
atenta contra a dignidade da criança e causa-lhe transtornos
irreversíveis, sendo caracterizado como ato ilícito gerador do dever de
indenizar.
Compartilha desse entendimento Bernardo Castelo Branco:
“A conduta omissiva dos pais no tocante à formação moral dos filhos,
permitindo-lhes o livre acesso a ambientes nocivos ao seu
desenvolvimento, ao contato com jogos, álcool e drogas, entre outros
fatores deturpadores da personalidade, constitui, portanto, a adoção de
comportamento ilícito, uma vez que viola um dever juridicamente imposto
aos titulares do poder familiar.” [17]
Convém ressaltar que o que enseja reparação é o descumprimento do dever
jurídico de conviver com o filho e não a falta de afeto de per si. É,
neste sentido, a lição de Wlademir Paes de Lira, ao dispor que
“o dever dos pais em conviver com os filhos não está relacionado,
apenas, com as questões afetivas, embora estas sejam extremamente
importantes nas definições acerca da convivência. Tal dever está também
relacionado com a paternidade/maternidade responsáveis, previstas no
art. 226 da CF, assim como, está por que não acrescentar, ao direito
fundamental da criança e do adolescente.”[18]
Para a corrente que segue entendendo pela impossibilidade da reparação
civil, ressalta-se o argumento de que a reparação pecuniária do
abandono afetivo provocaria uma monetarização do amor. Esse é o
pensamento de Lizete Schuh, ao relatar que “[...] a simples indenização
poderá representar um caráter meramente punitivo, reafirmando, cada vez
mais, o quadro de mercantilização nas relações familiares.”
[19]
No entanto, defende-se que a indenização, nestes casos, tem o intuito
pedagógico, e não somente punitivo, à medida que também visa inibir
futuras omissões dos pais em relação aos seus filhos.
Ainda em sentido contrário à tese da reparação pecuniária, há os que
argumentam que a infração dos encargos decorrentes do poder familiar
encontra sanção prevista dentro do próprio direito de família, qual
seja, a destituição do poder familiar. Adepto deste argumento é Renan
Kfuri Lopes: “Filio-me ao entendimento que a violação aos deveres
familiares gera apenas as sanções no âmbito do direito de família,
refletindo, evidentemente, no íntimo afetivo e psicológico da relação
[...]”.
[20]
Sob essa ótica, também se posiciona Danielle Alheiros Diniz:
“O descumprimento desse dever de convivência familiar deve ser
analisado somente na seara do direito de família, sendo o caso para
perda do poder familiar. Esse entendimento defende o melhor interesse da
criança, pois um pai ou uma mãe que não convive com o filho não merece
ter sobre ele qualquer tipo de direito.”[21]
Outra tese defendida pelos opositores da reparação do dano moral
decorrente do abandono afetivo é a de que ninguém pode obrigar um pai a
amar um filho, sendo este o cerne da questão. Nestes termos, para Lizete
Schuh:
“É dificultoso cogitar-se a possibilidade de determinada pessoa
postular amor em juízo, visto que a capacidade de dar e de receber
carinho faz parte do íntimo do ser humano, necessitando apenas de
oportunidades para que aflore um sentimento que já lhe faz parte, não
podendo o amor, em que pese tais conceitos, sofrer alterações
histórico-culturais, ser criado ou concedido pelo Poder Judiciário.”[22]
Não obstante, em defesa da corrente doutrinária que admite a reparação
pecuniária, se põe Giselda Hironaka, rebatendo o argumento acima
referido:
“[...] é certo que não se pode obrigar ninguém ao cumprimento do
direito ao afeto, mas é verdade também que, se esse direito for maculado
– desde que sejam respeitados certos pressupostos essenciais – seu
titular pode sofrer as consequências do abandono afetivo e, por isso,
poderá vir a lamentar-se em juízo, desde que a ausência ou omissão
paternas tenham-lhe causado repercussões prejudiciais, ou negativas, em
sua esfera pessoal – material e psicológica – repercussões estas que
passam a ser consideradas, hoje em dia, como juridicamente relevantes.”[23]
Nesse sentido, asseverara-se, mais uma vez, que a indenização se
afigura possível em razão do descumprimento do dever de convivência
familiar, direito fundamental da criança e do adolescente. Corrobora
esse entendimento Priscilla Menezes da Silva:
“O que se deveria tutelar com a teoria do abandono afetivo é o dever
legal de convivência. Não se trata aqui da convivência diária, física,
já que muitos pais se separaram ou nem chegam a viver juntos, mas da
efetiva participação na vida dos filhos, a fim de realmente exercer o
dever legal do poder familiar.”[24]
Vale salientar que Catarina Almeida de Oliveira, levando em
consideração que o princípio da afetividade envolve a ideia de
solidariedade familiar, não se confundindo, portanto, com o sentimento
de afeto existente entre pai e filho, destacou que a lei pode sim
obrigar os indivíduos a amarem seus filhos, mas claro que de forma
objetiva. Para ela, portanto,
“ao confundir a afetividade que pode ser realizada, independentemente
do sentimento que se tenha, com aquelas outras expressões do amor (...),
corre-se o risco de afastar da proteção do Judiciário, situações que
tenham esse princípio como cerne, como por exemplo, o abandono afetivo, o
que justificaria o argumento contrário de que a lei não pode obrigar
ninguém a amar. Pode sim. Objetivamente.”[25]
Ainda para os opositores da indenização nos casos de abandono afetivo, a
propositura de ação de reparação civil afetaria ainda mais a relação
paterno-filial, prejudicando a convivência familiar. Por isso é que os
próprios adeptos da responsabilização civil nos casos de abandono
afetivo destacam que esta análise deve ser feita de forma prudente e
contextualizada, a fim de evitar a quebra do vínculo afetivo, por
ventura, ainda existente entre pai e filho. Neste sentido, assevera
Bernardo Castelo Branco:
“[...] a particularidade que cerca a relação paterno-filial, eis que
fundada essencialmente na afetividade entre os sujeitos que dela
participam, não permite a aplicação integral dos princípios que regem a
responsabilidade civil. Logo, mesmo no campo específico do dano moral,
cabe aferir em que medida o comportamento adotado foi capaz de romper os
eventuais laços de afeto entre pais e filhos, uma vez que a
admissibilidade da reparação não pode servir de estopim a provocar a
desagregação da família ou o desfazimento dos vínculos que devem existir
entre os sujeitos daquela relação.” [26]
Importa destacar, por oportuno, que outras controvérsias surgem, até
mesmo dentro dos adeptos da teoria da responsabilização civil nos casos
de abandono afetivo, a exemplo do tipo de caráter que seria assumido
pela indenização. Para alguns autores, como Giselda Hironaka
[27],
o verdadeiro objetivo da indenização seria impedir futuras negligências
no campo afetivo, de maneira que a ela teria caráter educativo e
pedagógico. Contudo, para os pais que praticaram a conduta ilícita, a
indenização não deixa de ter caráter punitivo e dissuasório, conforme
entende Cláudia Maria da Silva
[28]. Há, ainda, aqueles que defendem o caráter compensatório da indenização, a exemplo de Claudete Carvalho Canezin
[29] e os de pensamento mais moderado, como Maria Isabel Pereira da Costa
[30],
que defendem que o valor decorrente da indenização deve ser utilizado
para o pagamento de tratamento psicológico do filho, tendo em vista as
péssimas condições deste tratamento na rede pública de saúde e o alto
custo das redes não conveniadas.
De toda sorte, pelo estudo realizado, verifica-se que, para grande
parte da doutrina, deve haver uma análise responsável e prudente dos
requisitos autorizadores da responsabilização civil nos casos de
abandono afetivo, para que, uma vez comprovado o nexo de causalidade
entre o dano sofrido pelo filho e a atitude omissiva e voluntária do pai
no cumprimento do dever de convivência familiar, possa surgir o dever
de indenizar. Este é o pensamento de Paulo Lôbo:
“[...] Entendemos que o princípio da paternidade responsável
estabelecido no art. 226 da Constituição não se resume ao cumprimento do
dever de assistência material. Abrange também a assistência moral, que é
dever jurídico cujo descumprimento pode levar à pretensão
indenizatória.”[31]
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