É dever dos pais, de acordo com a Constituição Federal de 1988, artigo 227
[20],
bem como da família e da sociedade, assegurar à criança, ao jovem e ao
adolescente a convivência familiar e comunitária, bem como mantê-los a
salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
Prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu dispositivo 22,
que “Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos
menores”. Os genitores são, pois, os responsáveis pela criação,
formação, desenvolvimento e proteção dos descendentes. Devem prover,
consequentemente, atenção, carinho e afeto à prole, além de fornecer o
necessário a sua sobrevivência digna.
Parentes de primeiro grau em linha reta, os pais são, por conseguinte,
os primeiros a serem chamados para cumprir a obrigação de prestar
alimentos, visto que se prefere os mais próximos aos mais remotos.
Como dito nos capítulos anteriores, a obrigação de prestar alimentos
advinda da relação de parentesco decorre do princípio da solidariedade e
do princípio da dignidade da pessoa humana. O primeiro, disciplinado no
artigo 3º, inciso I, CF/88[21], impõe dever de
assistência amorosa, espiritual e moral àqueles unidos por vínculos
afetivos. O segundo é um dos fundamentos da República Federativa do
Brasil, nos termos do artigo 1?, III da Carta Magna de 1988[22],
e consagra um valor que visa proteger a pessoa, conferindo-lhe respeito
e direitos inerentes a sua qualidade de ser humano. Nas palavras de
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010, p. 703), é,
portanto, uma “concreta expressão da solidariedade (social e familiar) e
da dignidade humana”.
Os filhos têm, ante o exposto, o direito de exigir dos pais que lhes
sejam prestados alimentos, até que possam se sustentar por seus próprios
meios, e os genitores, consequentemente, são responsáveis pela
prestação de assistência financeira à prole, bem como de assistência
afetiva, sendo a segunda, em muitos aspectos, até mais importante que a
monetária.
Não seria justo, por outro lado, que o ascendente, quanto atingisse uma
idade avançada e não tivesse condições de prover o próprio sustento,
não pudesse contar com o auxílio material dos descendentes. Nesse
diapasão, antevendo esta possibilidade, o artigo 1.696 do Código Civil[23] prevê que os filhos também devem alimentos aos pais, visto que a obrigação alimentar é mútua.
De acordo com Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010, p.
709), “em razão do caráter recíproco dos alimentos, se, por um lado, os
descendentes (capazes ou não) podem reclamar alimentos de seus
ascendentes, estes poderão, identicamente, cobrar alimentos de seus
descendentes capazes”.
É, destarte, um dever de mão dupla, ou seja, merecer solidariedade
implica, também, em contrapartida, ser solidário. No caso analisado
neste trabalho, o direito de exigir está, portanto, diretamente
relacionado com pretérito provimento daquele que o pleiteia. Assim,
considerando ter o genitor descumprido os deveres inerentes ao poder
familiar, não assegurando aos filhos inúmeros direitos aos quais faziam
jus, como prestação alimentar e assistência moral e afetiva, descabe,
posteriormente, pretender atribuir-lhes deveres e obrigações com
fundamento, justamente, no dever de solidariedade que deixou de observar
anteriormente. Ao adotar uma postura omissa em relação aos
descendentes, o genitor descumpre os deveres inerentes à sua qualidade
de ascendente e, portanto, não se pode valer da sua omissão.
Ante o exposto, verifica-se que o não cumprimento da obrigação de
auxílio moral, afetivo e financeiro por parte dos pais libera, por
conseguinte, os filhos de uma contraprestação posterior, deixando de
prevalecer o princípio da reciprocidade supracitado. Os Tribunais
Pátrios já se manifestaram a respeito, corroborando com tal afirmativa,
conforme pode se verificar através dos julgados que se seguem:
Ementa: ALIMENTOS. SOLIDARIEDADE FAMILIAR. DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES
INERENTES AO PODER FAMILIAR. É descabida a fixação de alimentos em
benefício do genitor que nunca cumpriu os deveres inerentes ao poder
familiar, deixando de prestar aos filhos os cuidados e o afeto de que
necessitavam durante o seu desenvolvimento. NEGARAM PROVIMENTO.
(Apelação Cível Nº 70038080610, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça
do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 30/09/2010);
AÇÃO DE ALIMENTOS. AGRAVO RETIDO NÃO CONHECIDO. SENTENÇA QUE FIXOU O
PAGAMENTO PELA FILHA EM FAVOR DA GENITORA DE VERBA ALIMENTÍCIA NO
PATAMAR DE 60% DO SALÁRIO MÍNIMO. PRETENSÃO DE EXONERAÇÃO OU REDUÇÃO DOS
ALIMENTOS. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE VÍNCULO AFETIVO ENTRE AS PARTES.
DEVER DE AMPARO PREVISTO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, ART. 229 E NO
CÓDIGO CIVIL DE 2002, ARTS. 1.695 E 1.696. RELATIVIZAÇÃO DA OBRIGAÇÃO.
GENITORA QUE NÃO PRESTOU ASSISTÊNCIA AOS FILHOS DESDE SUAS TENRAS
IDADES. INADMISSIBILIDADE DO PLEITO INICIAL. RECURSO PROVIDO. (Apelação
Cível n. 2006.010332-8, de Itajaí, Tribunal de Justiça de Santa Catarina
rel. Des. Nelson Schaefer Martins, j. 22/04/2010);
Ementa: ALIMENTOS. SOLIDARIEDADE FAMILIAR. DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES
INERENTES AO PODER FAMILIAR. É descabida a fixação de alimentos em
benefício do genitor que nunca cumpriu os deveres inerentes ao poder
familiar, deixando de pagar alimentos e prestar aos filhos os cuidados e
o afeto de que necessitavam durante o seu desenvolvimento. AUSÊNCIA DE
NECESSIDADE. Da mesma forma, evidenciado que o genitor não está
impossibilitado para o exercício de atividade laboral e não comprova
eventual necessidade, injusto se mostra impelir os filhos a arcar com
alimentos. Negado provimento ao apelo. (Apelação Cível Nº 70019179894,
Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice
Dias, Julgado em 09/05/2007);
Ementa: ALIMENTOS. SOLIDARIEDADE FAMILIAR. DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES
INERENTES AO PODER FAMILIAR. É descabido o pedido de alimentos, com
fundamento no dever de solidariedade, pelo genitor que nunca cumpriu com
os deveres inerentes ao poder familiar, deixando de pagar alimentos e
prestar aos filhos os cuidados e o afeto de que necessitavam em fase
precoce do seu desenvolvimento. Negado provimento ao apelo. (SEGREDO DE
JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70013502331, Sétima Câmara Cível, Tribunal
de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 15/02/2006).
Corrobora-se, ante as ementas acima anexadas, que a relativização do
princípio da reciprocidade no dever de prestar alimentos entre parentes e
do princípio de solidariedade familiar não decorre tão só do fato de o
ascendente inadimplir a obrigação alimentar, mas, principalmente, da não
prestação de cuidados e afeto aos descendentes no momento em que mais
necessitavam.
Diante da gravidade de tal omissão, o descumprimento das obrigações
inerentes ao parentesco, por outro lado, pode ensejar a caracterização
de alguns delitos previstos no Código Penal Brasileiro e nas legislações
cíveis.
Os Tribunais têm se inclinado, cada vez mais, a caracterizar como crime
de abandono material, previsto no artigo 244 do Código Penal[24],
o não pagamento injustificado dos alimentos, descaracterizada nos casos
de mera omissão ocasional ou de simples atraso. Trata-se, no caso, de
crime contra a assistência familiar, sujeito a pena de detenção de 1 a 4
anos e multa de 1 a 10 salários-mínimos.
Por outro lado, verificada a atitude omissiva repetitiva no cumprimento
da obrigação de prestar alimentos, tal conduta configura, também, ato
atentatório à dignidade da justiça, ensejando, por conseguinte, a
condenação do devedor em litigância de má-fé, com a devida aplicação da
multa pertinente, bem como o pagamento de indenização em favor do
alimentado, nos termos dos artigos 17[25] e 18[26] do Código de Processo Civil (DIAS, 2011, p. 589-590).
A reiterada e injustificável mora do devedor, bem como os transtornos
causados por esse atraso, por seu turno, são capazes de ensejar dano
moral ao credor, visto que fere sua dignidade humana, pois se presume,
pela própria natureza dos alimentos, que são devidos nos casos em que o
aquele não tem condições de arcar com a própria mantença, sendo, por
conseguinte, indispensáveis à sua sobrevivência.
Cabe ressaltar, inicialmente, que a evolução dos valores éticos da
civilização ocidental levou à crescente valorização do afeto como centro
das relações familiares. No ordenamento jurídico pátrio, a afetividade
encontra respaldo constitucional, de modo a projetar a família como
grupo social fundado, na sua essência, em laços de afeto. Ainda que se
valorize os laços sanguíneos do indivíduo, a existência do afeto nas
relações humanas nada mais é do que um corolário do princípio da
dignidade humana.
Nossa legislação, por seu turno, protege o direito à convivência
familiar justamente para resguardar a dignidade, a formação e a proteção
do ser humano em desenvolvimento, pois a ausência de prestação de afeto
pela família influenciará consideravelmente o futuro daquele indivíduo.
Assim, tendo um dos genitores falhado em relação aos deveres inerentes
ao poder familiar, quais sejam os de sustento, de guarda e de educação
dos filhos, bem como deixando de prestar-lhes atenção e afeto, não pode,
posteriormente, invocar a solidariedade familiar em seu benefício, pois
essa foi, inclusive, por ele desrespeitada. Desarrazoado, portanto,
qualquer pretensão de buscar dos descendentes o que lhes negou durante
toda a vida. Torna-se irrelevante, nesse diapasão, a análise do trinômio
possibilidade-necessidade-razoabilidade, aspecto inerente à fixação do
montante a ser pago a título de alimentos, uma vez que, independente das
condições favoráveis à prestação alimentar, a obrigação não persiste.
Verifica-se, portanto, que os parentes, mais especificamente, no caso,
os pais, quando não prestarem qualquer auxílio material, moral ou
afetivo aos seus descendentes, deles não podem exigir, em contrapartida,
a prevalência do princípio da reciprocidade quanto aos alimentos
devidos em razão da impossibilidade de prover, por si só, sua
subsistência. Isso se dá, primordialmente, como explicitado ao do
estudo, ao fato de que o abandono, ensejador, inclusive, de multa,
indenização e condenação penal, faz cessar a responsabilidade dos
descendentes para com seus ascendentes, deixando, portanto, de
prevalecer o princípio da solidariedade e o princípio da dignidade da
pessoa humana previstos na Constituição Federal Brasileira.
QUARANTA, Roberta Madeira; OLIVEIRA, Érica Siqueira Nobre de.
A obrigação de prestar alimentos entre pais e filhos: o dever de reciprocidade. Jus Navigandi, Teresina,
ano 18,
n. 3744,
1 out. 2013
.
Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25429>. Acesso em: 5 nov. 2013.
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