Ser mulher sempre foi um ato de coragem. Hoje, não é diferente. Para entender, vale conhecer a história de Paula de Oliveira Pereira, 28 anos, dona de casa, mãe de quatro crianças entre 11 anos e 11 meses nascidas em hospitais públicos da grande São Paulo. Ela foi, há poucas semanas, apresentada ao país pela imprensa em razão de uma drama pessoal que experimentou.
Em 2015, Paula teve o terceiro filho. Ficou 14 horas em trabalho de parto, sem acompanhante, embora a lei lhe assegure esse direito. Pediu anestesia, em vão. Sozinha e fora de si, caiu da maca. O corpo esmagou sua barriga no chão. Depois de ser recolhida pela equipe médica, ainda se debatendo, ouviu que não estava contribuindo para o parto "andar logo". Foi quando a enfermeira resolveu agir. Saltando sobre Paula, passou a empurrar o bebê pressionando a parte superior do útero. Estava deitada sobre a gestante. É a manobra de Kristeller, desaconselhada pelo Ministério da Saúde. Paula perdeu o ar. A barriga se transformou num hematoma. Ela passou semanas sem levantar da cama, mas o menino nasceu. Foi um parto "desumanizado". Algo cotidiano.
Para dar a luz nas condições acima só mesmo tendo nervos de aço. Acontece que somos seres humanos, trazemos conosco emoções, não aço.
Ano passado, Paula percebeu que era hora de encarar mais um parto. Tendo experiência de sobra no assunto, entrou em pânico. Desesperada, comprou uma arma e preparou um plano. Chegaria ao hospital e exigiria uma cesárea. Se não fosse atendida, se mataria ali mesmo.
Mandou uma mensagem para a mãe avisando. A senhora comunicou à polícia e correu para o hospital em socorro de Paula. Persuadidos, os médicos fizeram a cesárea. Em seguida, os policiais a separaram do seu bebê e a levaram presa, num camburão, tão logo teve alta, três dias depois do parto. Porte ilegal de arma foi a acusação.
Paula foi encaminhada para a delegacia de Itapecerica e depois para o Centro de Detenção Provisória (CDP) Feminino de Franco da Rocha. Ainda carregava na barriga os pontos da cesárea. Passou 21 dias presa. Segundo o art. 5º, L, da Constituição, às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação. Paula nem viu o filho, nem o amamentou. A promotora de Justiça de Itapecerica da Serra pediu sua absolvição. A juíza concordou.
O relato, fruto das várias entrevistas que Paula concedeu à imprensa depois que O Estado de São Paulo a descobriu, escandaliza uma rotina que grita em silêncio nos hospitais brasileiros. Há partos que são uma tortura.
Grávida, sozinha, em pânico, desorientada, Paula sofreu. Quantas Paulas vagam por aí? Os episódios relatados correspondem ao que a literatura especializada chama de "violência obstétrica". Na Venezuela, é um crime com expresso tratamento legal. Na Argentina, também. No Brasil, estudos e discussões começam a se adensar a respeito da questão e o caso de Paula trouxe tudo à tona com mais força.
A violência obstétrica pode ocorrer na gestação, no parto e no pós-parto ou no atendimento em situações de abortamento. Humilhar a gestante com gritos e xingamentos, negar a aplicação de anestesia ou equivalentes, não permitir a entrada de um acompanhante, adotar procedimentos como a manobra de Kristeller e mutilar a mulher, são exemplos de violência contra a gestante. Paula sofreu um caso clássico de violência obstétrica.
Enquanto a divulgação de episódios de violência obstétrica começa a pipocar pelo país, há, do outro lado, o instrumento mais poderoso a conter essa prática cruel. A Constituição distribui empatia às gestantes.
O preâmbulo diz que o nosso Estado democrático se destina a assegurar o "bem-estar". A dignidade da pessoa humana, por sua vez, é um dos fundamentos da República (art. 1º, III). É preciso que todas as Paulas saibam disso. A Constituição é por elas, não contra; defende-as, não as acusa; ameniza seus sofrimentos, não os intensifica.
Segundo os depoimentos de Paula, o parto foi internalizado como sofrimento e humilhação. Acontece que, pelo art. 5º, III, da Constituição, ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante. Se assim o é, então como essas mulheres têm passado por tudo isso?
Se a Constituição não pretendesse construir uma sociedade sensível às gestantes não teria assegurado como direitos dos trabalhadores urbanos e rurais a licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias (art 7º, XVIII). A proteção à maternidade é um direito social (art. 6º, caput). O art. 10, II, 'b' traz restrições severas à dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. Não bastasse, a previdência social atenderá, nos termos da lei, a proteção à maternidade, especialmente à gestante (art. 201, II). Outra conclusão não há que não seja a de que a Constituição é atenta às gestantes.
Não se trata simplesmente do direito à saúde ou do direito à vida, entendida como vida digna. A Constituição, generosa e repleta de empatia, se dedica especificamente às gestantes, ou seja, abre um campo normativo próprio ao enfrentamento da violência obstétrica.
Há um conjunto eloquente de dispositivos realçando a vulnerabilidade da gestante e conferindo-lhe especial proteção. Além disso, tanto a dignidade da pessoa humana quanto a vedação à tortura ou a tratamento desumano ou degradante encontram perfeito emprego em situações como a vivida por mulheres como Paula.
Essa articulação dos dispositivos constitucionais pode acelerar uma revolução humanitária nos partos no Brasil. Dar a luz não pode significar ver as trevas. O Poder Judiciário deve ser procurado. O Ministério Público e a Defensoria Pública já demonstraram disposição em enfrentar a questão. Além disso, o Congresso Nacional, por meio de leis, deve estimular o Poder Executivo a disciplinar a violência obstétrica considerando-se o contexto brasileiro e a experiência internacional com o assunto. Já há iniciativas nesse sentido.
Quanto a Paula, O Globo noticiou que ela está grávida de novo, agora, de quatro meses. É o quinto filho gestado no ventre de quem não completou sequer 30 anos. Moradora em Embu das Artes, na grande São Paulo, ela vive em uma casa de um cômodo com os quatro filhos e o marido desempregado.
Paula segue em busca de uma cesárea ou, pelo menos, do direito de não ser mais vítima de violência obstétrica. A hiper exposição do seu drama deu a ela visibilidade suficiente para não precisar mais enfrentar tudo o que enfrentou num hospital. Mas há ainda muitas Paulas por aí. A Constituição quer conhecê-las e protegê-las. O nascimento de crianças há de simbolizar a renovação das esperanças, o sopro da vida, não tortura e humilhação. Para isso, uma boa saída: mais e mais respeito à Constituição.
http://www.migalhas.com.br/ConversaConstitucional/114,MI264106,71043-A+violencia+obstetrica+a+luz+da+Constituicao
Em 2015, Paula teve o terceiro filho. Ficou 14 horas em trabalho de parto, sem acompanhante, embora a lei lhe assegure esse direito. Pediu anestesia, em vão. Sozinha e fora de si, caiu da maca. O corpo esmagou sua barriga no chão. Depois de ser recolhida pela equipe médica, ainda se debatendo, ouviu que não estava contribuindo para o parto "andar logo". Foi quando a enfermeira resolveu agir. Saltando sobre Paula, passou a empurrar o bebê pressionando a parte superior do útero. Estava deitada sobre a gestante. É a manobra de Kristeller, desaconselhada pelo Ministério da Saúde. Paula perdeu o ar. A barriga se transformou num hematoma. Ela passou semanas sem levantar da cama, mas o menino nasceu. Foi um parto "desumanizado". Algo cotidiano.
Para dar a luz nas condições acima só mesmo tendo nervos de aço. Acontece que somos seres humanos, trazemos conosco emoções, não aço.
Ano passado, Paula percebeu que era hora de encarar mais um parto. Tendo experiência de sobra no assunto, entrou em pânico. Desesperada, comprou uma arma e preparou um plano. Chegaria ao hospital e exigiria uma cesárea. Se não fosse atendida, se mataria ali mesmo.
Mandou uma mensagem para a mãe avisando. A senhora comunicou à polícia e correu para o hospital em socorro de Paula. Persuadidos, os médicos fizeram a cesárea. Em seguida, os policiais a separaram do seu bebê e a levaram presa, num camburão, tão logo teve alta, três dias depois do parto. Porte ilegal de arma foi a acusação.
Paula foi encaminhada para a delegacia de Itapecerica e depois para o Centro de Detenção Provisória (CDP) Feminino de Franco da Rocha. Ainda carregava na barriga os pontos da cesárea. Passou 21 dias presa. Segundo o art. 5º, L, da Constituição, às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação. Paula nem viu o filho, nem o amamentou. A promotora de Justiça de Itapecerica da Serra pediu sua absolvição. A juíza concordou.
O relato, fruto das várias entrevistas que Paula concedeu à imprensa depois que O Estado de São Paulo a descobriu, escandaliza uma rotina que grita em silêncio nos hospitais brasileiros. Há partos que são uma tortura.
Grávida, sozinha, em pânico, desorientada, Paula sofreu. Quantas Paulas vagam por aí? Os episódios relatados correspondem ao que a literatura especializada chama de "violência obstétrica". Na Venezuela, é um crime com expresso tratamento legal. Na Argentina, também. No Brasil, estudos e discussões começam a se adensar a respeito da questão e o caso de Paula trouxe tudo à tona com mais força.
A violência obstétrica pode ocorrer na gestação, no parto e no pós-parto ou no atendimento em situações de abortamento. Humilhar a gestante com gritos e xingamentos, negar a aplicação de anestesia ou equivalentes, não permitir a entrada de um acompanhante, adotar procedimentos como a manobra de Kristeller e mutilar a mulher, são exemplos de violência contra a gestante. Paula sofreu um caso clássico de violência obstétrica.
Enquanto a divulgação de episódios de violência obstétrica começa a pipocar pelo país, há, do outro lado, o instrumento mais poderoso a conter essa prática cruel. A Constituição distribui empatia às gestantes.
O preâmbulo diz que o nosso Estado democrático se destina a assegurar o "bem-estar". A dignidade da pessoa humana, por sua vez, é um dos fundamentos da República (art. 1º, III). É preciso que todas as Paulas saibam disso. A Constituição é por elas, não contra; defende-as, não as acusa; ameniza seus sofrimentos, não os intensifica.
Segundo os depoimentos de Paula, o parto foi internalizado como sofrimento e humilhação. Acontece que, pelo art. 5º, III, da Constituição, ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante. Se assim o é, então como essas mulheres têm passado por tudo isso?
Se a Constituição não pretendesse construir uma sociedade sensível às gestantes não teria assegurado como direitos dos trabalhadores urbanos e rurais a licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias (art 7º, XVIII). A proteção à maternidade é um direito social (art. 6º, caput). O art. 10, II, 'b' traz restrições severas à dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. Não bastasse, a previdência social atenderá, nos termos da lei, a proteção à maternidade, especialmente à gestante (art. 201, II). Outra conclusão não há que não seja a de que a Constituição é atenta às gestantes.
Não se trata simplesmente do direito à saúde ou do direito à vida, entendida como vida digna. A Constituição, generosa e repleta de empatia, se dedica especificamente às gestantes, ou seja, abre um campo normativo próprio ao enfrentamento da violência obstétrica.
Há um conjunto eloquente de dispositivos realçando a vulnerabilidade da gestante e conferindo-lhe especial proteção. Além disso, tanto a dignidade da pessoa humana quanto a vedação à tortura ou a tratamento desumano ou degradante encontram perfeito emprego em situações como a vivida por mulheres como Paula.
Essa articulação dos dispositivos constitucionais pode acelerar uma revolução humanitária nos partos no Brasil. Dar a luz não pode significar ver as trevas. O Poder Judiciário deve ser procurado. O Ministério Público e a Defensoria Pública já demonstraram disposição em enfrentar a questão. Além disso, o Congresso Nacional, por meio de leis, deve estimular o Poder Executivo a disciplinar a violência obstétrica considerando-se o contexto brasileiro e a experiência internacional com o assunto. Já há iniciativas nesse sentido.
Quanto a Paula, O Globo noticiou que ela está grávida de novo, agora, de quatro meses. É o quinto filho gestado no ventre de quem não completou sequer 30 anos. Moradora em Embu das Artes, na grande São Paulo, ela vive em uma casa de um cômodo com os quatro filhos e o marido desempregado.
Paula segue em busca de uma cesárea ou, pelo menos, do direito de não ser mais vítima de violência obstétrica. A hiper exposição do seu drama deu a ela visibilidade suficiente para não precisar mais enfrentar tudo o que enfrentou num hospital. Mas há ainda muitas Paulas por aí. A Constituição quer conhecê-las e protegê-las. O nascimento de crianças há de simbolizar a renovação das esperanças, o sopro da vida, não tortura e humilhação. Para isso, uma boa saída: mais e mais respeito à Constituição.
http://www.migalhas.com.br/ConversaConstitucional/114,MI264106,71043-A+violencia+obstetrica+a+luz+da+Constituicao
Nenhum comentário:
Postar um comentário