Por Saul Tourinho Leal
Parecia que estávamos no século XIX. Ninguém acreditou quando viu aquele vasto número de pessoas brancas, segurando tochas, marchando, sob a escuridão da noite, pelo campus da Universidade da Virgínia, em Charlottesville. "Sangue e solo", gritavam, ao mesmo tempo em que exigiam medidas de ódio contra negros, gays, judeus e imigrantes. Considerado como de "ultra direita", o movimento se associa à supremacia branca e ao nazismo. O espetáculo visual miserável de intimidação e hostilidades está protegido pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que garante a liberdade de expressão.
O estopim dessa explosão repulsiva teria sido uma medida adotada pela Câmara de Vereadores, em abril, que aprovou lei determinando a remoção de uma estátua do general Robert Lee no parque que tinha o seu nome e foi rebatizado de Parque da Emancipação. Durante a Guerra Civil (1862-1865), Lee foi um dos comandantes do Exército Confederado, do Sul, opositor da abolição da escravatura defendida pelo presidente Abraham Lincoln e os Estados do Norte.
Ao final da marcha, os "protestantes" se posicionaram ao redor da estátua de Thomas Jefferson, no campus da Universidade. Logo ele, o pai da Declaração de Independência, estava ali, assistindo a tudo aquilo.
A verdade é que sempre houve, nos Estados Unidos, grupos como o que se viu vagando pela Universidade da Virgínia. A eleição de Donald Trump deu a eles a esperança de retorno à vida pública nacional. Seria um triunfo tardio. O próprio Jefferson se insere nesse contexto de exortação tardia à escravidão. Ele teve vários filhos com sua escrava, Sally Hemigs, mas jamais os reconheceu. A paternidade só foi comprovada em 1998, por exames de genética nos descendentes da Sally, até hoje atacados pela família de Jefferson. O ex-presidente dos Estados Unidos – foi o terceiro – era dono de escravos. Possuía 267 escravos na Virgínia e atuava no tráfico negreiro.
Jefferson morava em Paris durante a Revolução Francesa. Atraído por ela, acreditou que o terror e as execuções na guilhotina eram aceitáveis em nome do avanço das novas ideias políticas. Segundo ele: "A árvore da liberdade precisa ser irrigada de tempo em tempo pelo sangue de patriotas e tiranos. É a sua forma natural de crescer". A turba de Charlottesville parece ter dado ouvidos, nesse particular, a Thomas Jefferson.
Os gritos de "sangue e solo" vistos no campus da Universidade têm inspiração romântica. O romantismo é a forma de ver a vida pelo passado. É como o filme Meia-Noite em Paris, de Woody Allen. O passado é sempre melhor do que o presente. É uma espécie de fuga infantil.
Quem melhor explica a ideia de "sangue e solo" - mote da marcha dos supremacistas brancos na Virgínia - é Steve Pinker, o decifrador da mente coletiva que leciona em Harvard. Pinker esclarece que quatro correntes ideológicas se opuseram às conquistas do século das luzes. A primeira foi "um nacionalismo militante que veio a ser conhecida como 'sangue e solo' – a ideia de que um grupo étnico e a terra na qual ele se originou formam um todo orgânico com qualidade morais únicas e que sua grandeza e glória são mais preciosas que as vidas e a felicidade de seus membros individualmente". Também recorda o "militarismo romântico", a ideia de que "a guerra é nobre, enaltecedora, virtuosa, gloriosa, heroica, empolgante, bela, santa, emocionante". Uma outra seria o "socialismo marxista, para o qual a história é uma gloriosa luta de classes que culmina na subjugação da burguesia e na supremacia do proletariado". Por fim, a quarta, teria sido "o nacional-socialismo, para o qual a história é uma gloriosa luta de raças que culmina na subjugação das raças inferiores e na supremacia dos arianos" (Os Anjos Bons da Nossa Natureza, p. 269).
O que se viu na Virgínia, portanto, é uma evocação romântica ao movimento "sangue e solo" que apresentou um viés contrailuminista no século XIX, associando a vinculação com certo lugar à superioridade de grupos em detrimento de outros vindos de fora. É um prato cheio contra imigrantes.
Dificilmente grupos como esse conseguirão reverter as conquistas recentes da humanidade. Se antes havia o Iluminismo, hoje temos o que se pode chamar de Revolução Humanitária, um marco na redução histórica da violência, e, segundo o próprio Steve Pinker, "uma das realizações de que a humanidade mais deve se orgulhar".
Matanças supersticiosas, punições cruéis, execuções frívolas e escravidão constituem um legado repulsivo que jamais assumirá o controle de nossas vidas novamente. Por mais que tolos fantasiados marchem romanticamente com suas tochas nas madrugadas dos Estados Unidos eles não têm mais a força que um dia tiveram a ponto de reverterem os virtuosos frutos dessa Revolução humanitária, que são: o crescimento da empatia entre as pessoas e das pessoas com outras espécies; a celebração da vida humana; o reconhecimento da dignidade de todos, indistintamente; a consolidação de uma cultura do conhecimento ou "das letras"; a fundação de um humanismo esclarecido; a persistência com os marcos da civilização; e a própria manutenção de ideais universais trazidos pelo Iluminismo.
Ainda que radicais conservadores digam o contrário, os Estados Unidos jamais retornará para as Leis Jim Crow. Os direitos civis nos fizeram sentir repulsa pelos linchamentos raciais. Isso, independentemente da cor da nossa pele. As pessoas mudaram e, com elas, a nação ganhou outra conformação psicológica. Com a insistência em abordar os direitos da mulher, por exemplo, veio o declínio do estupro e do espancamento. A bandeira dos direitos das crianças reduziu o infanticídio, os maus-tratos e o bullying. Lutar por direitos da comunidade gay resultou no declínio dos espancamentos e na descriminalização da homossexualidade em muitos países do mundo. Vem de pautas como a dos direitos dos animais a discussão sobre o que podemos fazer para pôr fim à crueldade com os bichos. São muitas as conquistas. É preciso mais do que turbas fantasiadas assustando pessoas pela madrugada para que todas esses frutos sejam perdidos. Para isso acontecer, seria necessário derrubar instituições como o Poder Judiciário independente, a imprensa livre e o acesso à educação plural. Não irão tão longe.
Demônios interiores como o desejo de dominação, a aptidão pela revanche, o sadismo e a inclinação a se conduzir por ideologias, serão sempre vilões da história, jamais mocinhos. É por isso que movimentos como o que se viu na Universidade da Virgínia impressionam mais pela ousadia em se exibir de maneira tão ultrapassada do que por verdadeiramente assumir o controle da vida da maioria da população. Não custa ser vigilante, é claro, mas a vida se dá mesmo é para frente, não para trás. Por isso, esses movimentos de flashback coletivo às maldades do passado dificilmente serão vitoriosos. Ainda bem.
http://www.migalhas.com.br/ConversaConstitucional/114,MI263665,31047-Supremacia+branca+na+Virginia+e+os+demonios+da+nossa+natureza
Interessantíssimo. Obrigada por proporcionar-me essa oportunidade de reflexão.
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