terça-feira, 6 de março de 2018

A boa-fé processual e relativização da irrepetibilidade dos alimentos

(...)
5. A RELATIVIZAÇÃO DA IRREPETIBILIDADE DOS ALIMENTOS

Fixados os alimentos judicialmente, é por meio das ações exoneratórias, geralmente com pedidos liminares, movidas pelos devedores, que deverão ser comprovadas as causas extintivas do dever de pensionar.

Por ser necessária a prestação jurisdicional, haja vista a existência de conflito, é razoável perceber que não existe cooperação e sequer relacionamento saudável entre alimentante e alimentado, sendo a prova inequívoca capaz de lastrear uma tutela de evidência muitas vezes “diabólica”. Isso porque, comprovar prontamente o estabelecimento de nova união conjugal, o exercício de profissão remunerada ou o fim dos estudos do credor dos alimentos não é das tarefas mais simples.

Assim, a presunção de carência do credor dos alimentos é postergada, sendo o devedor obrigado a arcar com uma obrigação que já não é mais necessária por anos, devido à necessidade do trânsito em julgado da ação exoneratória.

Tal entendimento possui razão de existir, conforme elucida Rolf Madaleno:
Com isso estaria protegido o credor, figura mais frágil, de uma exoneração automática, que lhe retiraria abruptamente os recursos de sua mantença durante seus estudos ou sua enfermidade grave, causas reais e inibidoras do exercício labora que lhe toca por dever moral e social, alcançado juntamente com sua maioridade civil.

Tivesse o alimentando, ainda dependente, sido afetado por uma exoneração liminar, e muito provavelmente sofreria graves prejuízos na sua diuturna mantença [...]

Todavia, os decisores têm preferido sacrificar o devedor que compromete somente uma percentagem dos seus rendimentos, ao invés do credor, que poderia ser automática, liminar e precipitadamente privado da sua renda, possivelmente a única a lhe assegura a subsistência. Dessa maneira o julgador prolonga, não somente os alimentos, mas, também, a presunção de necessidade que o legislador considerou absoluta no correr do pátrio poder, mas quer fez cessar com o advento da maioridade civil.[43]

Inadmissível, contudo, é o credor dos alimentos, conhecedor que a presunção de carência financeira ainda milita em seu favor, procrastinar o curso do feito exoneratório[44]. Nesse caso é notório o abuso de direito daquele que se vale da especial proteção dada por todo o ordenamento jurídico, em especial, presunção de carência financeira e a impossibilidade de restituição dos alimentos, através de meios de defesas processuais infundados ou manifestamente incompatíveis com a solidariedade e a colaboração que devem perdurar um uma relação alimentar familiar.[45]

Nesse sentido elucida Theodoro Jr.:
[...] consiste o abuso do direito processual nos atos de má-fé praticados por quem tenha uma finalidade de agir no curso do processo, mas que dela se utiliza não para seus fins normais, mas para protelar a solução do litígio ou para desviá-la da correta apreciação judicial, embaraçando, assim, o resultado justo da prestação jurisdicional[46]

Conforme preceitua o art. 1.695 do Código Civil, os alimentos somente são devidos diante da necessidade do alimentando, de modo a proteger sua dignidade. Disso extrai-se, como já exposto, que por ser destinado à sobrevivência, os alimentos são prontamente consumidos, sendo, em regra, incabível sua devolução.

Ocorre que, cessado o estado de necessidade financeira, o credor dos alimentos não possui direito de exigir quaisquer verbas, sendo os alimentos que ele eventualmente receber não mais destinados à sua subsistência, o que afastaria, portanto, a natureza alimentar e existencial das pensões recebidas[47] e, via de consequência, a característica irrepetibilidade.

Nesse sentido, os alimentos que somente seriam cabíveis diante da necessidade do credor, passam a ser destinados ao enriquecimento deste, pois, é bom enfatizar, que não é a sentença judicial que desconstitui de carência do alimentando, mas sim a realidade fática. Portanto, ausente a causa geradora da obrigação alimentar, deve preponderar entre as partes o espírito da cooperação, honestidade e transparência, possuindo o pensionado o dever ético de restituir aquilo que não mais lhe cabia.

Sobre o tema se pronunciou Fernanda Pessanha do Amaral Gurgel:
Desta feita, com o intuito de conciliar a regra da irrepetibilidade dos alimentos com a conseqüência provocada pelo enriquecimento sem causa, deve ser admitida a possibilidade de restituição judicial da obrigação alimentícia, em caráter excepcional, na hipótese evidente em que o credor, ao receber a quantia, não demonstra nenhuma necessidade econômica, configurando tal fato um afrontoso enriquecimento indevido de sua parte, com o qual o sistema jurídico não pode compactuar. Com efeito, a flexibilização da irrepetibilidade dos alimentos se faz necessária para evitar o enriquecimento indevido daquele que continua a receber os alimentos sem mais deles necessitar.[48]

Ora, o devedor dos alimentos possui a legítima expectativa de que essa obrigação patrimonial somente perdurará enquanto o elemento necessidade se fizer presente, não devendo a ele ser imposto o encargo de frequentemente diligenciar acerca da vida privada do alimentando para verificar se a causa geradora dos alimentos ainda existe.

Com isso, citam-se algumas situações cotidianas[49] que revelam notória ofensa à boa-fé objetiva, devido ao fato do credor das prestações não informar ao então devedor que a causa justificante da obrigação não mais existe:
Filhos maiores e capazes que passam a auferir renda suficiente para o próprio sustento[50];
Ex-cônjuge/companheiro que constitui novo casamento ou união estável[51];
Ex-cônjuge/companheiro que possui bens ou patrimônio suficiente para o próprio sustento.[52]

Rolf Madaleno vai além. Para ele, até mesmo nas situações de procrastinação do alimentando, que “se manteve omisso ao dever social de lograr por seu esforço sustento, não cursando faculdade”[53], a irrepetibilidade da verba alimentar poderia ser afastada.

Saliente-se, por fim, que é nesse sentido que expressiva doutrina vem se pronunciando.

Maria Berenice Dias:
Admite-se a devolução exclusivamente quando comprovado que houve má-fé ou postura maliciosa do credor. Em nome da irrepetibilidade, não é possível dar ensejo ao enriquecimento injustificado (CC 884). É o que se vem chamando de relatividade da não restituição.

Cristiano Chaves:
À luz dos argumentos expostos, infere-se, tranqüilamente, uma relativização da irrepetibilidade dos alimentos, evitando o enriquecimento sem causa quando a obrigação for cumprida em favor de quem já não mais possuía a necessidade de perceber os alimentos. Por evidente, tal mitigação somente ocorre em casos nos quais o alimentando tinha ciência da cessação da causa e, ainda assim, continua a receber os alimentos, caracterizando a falta de justa causa e, por conseguinte, o atentado contra o princípio da confiança.[54]

Belmiro Pedro Welter:
O endeusamento do princípio da irrepetibilidade dos alimentos fomenta a indústria do enriquecimento sem causa, na medida em que, em alguns casos, após ampla tessitura probatória, é comprovado que o devedor ostenta obrigação alimentar reduzida ou inexistente, mas, mesmo assim, a propriedade lhe é confiscada sob o manto da legalidade, represando a autêntica responsabilidade sem débito, mas sem qualquer vínculo legal ou obrigacional.[55]

Renata Almeida e Walsir Edson Rodrigues Jr.:
Contudo, cabe alertar que tal característica não é absoluta. Diante, por exemplo, do desrespeito ao princípio da boa-fé objetiva e do enriquecimento sem causa, admite-se a relativização da irrepetibilidade.[56]

Rolf Madaleno:
A prática vem demonstrando quando pode se tornar injusto o princípio da incondicional irrepetibilidade, quando se trata de obrigação alimentar entre parentes maiores e capazes, cônjuges, e conviventes, muito embora o princípio da não devolução de alimentos indevidamente prestados tenha tráfego nas hipóteses de dever alimentar onde os credores de alimentos são menores e incapazes.

A devolução dos alimentos indevidamente pagos, no caso de dolo, má-fé e fraude, gera, induvidosamente, o enriquecimento ilícito do alimentando.

Trata-se de um princípio de ética de não pactuar com a não repetição dos alimentos havidos em flagrante e maldoso artificio, em que o pseudocredor encobre a causa exoneratória do seu primitivo direito alimentar.[57]

Por toda essa análise vê-se que a aplicação a irrepetibilidade dos alimentos de maneira absoluta não possui razão de ser. A aplicação de um princípio deve ser compatibilizada com todo o ordenamento jurídico, tutelando-se aqueles bens consagradores da ordem social na maior medida possível. Assim, é insustentável que a irrepetibilidade dos alimentos, que se propõe a proteger os que estão financeiramente fragilizados, seja utilizada para salvaguardar a própria torpeza do alimentando.

Não se pode tolerar que alguém receba acréscimo patrimonial em detrimento de outrem, tampouco que uma pessoa seja aviltada em seu patrimônio sem que haja uma causa legítima. Ocorrendo tais fatos é necessário que o ordenamento jurídico adote medidas de modo a minorar os danos, sendo possível, portanto, a exigência da restituição dos valores recebidos indevidamente.

Com efeito, mostra-se de suma importância atuação do magistrado esclarecendo as partes sob as condições em que se perdura a obrigação alimentar, seja nos mandados de citação, audiências de conciliação ou na sentença.
(...)

SANTOS, Matheus Agenor Alves. A boa-fé processual e relativização da irrepetibilidade dos alimentos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5360, 5 mar. 2018. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/63752>. Acesso em: 6 mar. 2018.

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