quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Julgado: Estatuto da pessoa com deficiência. Contratação de cuidador para portador de necessidades especiais. Dever do Estado.

Data do julgado: 14/11/2018

Acórdão Nº: 114410
Processo Nº: 0002001-70.2018.8.03.0000
Relator: Desembargador GILBERTO PINHEIRO
AGRAVO DE INSTRUMENTO
Ementa
CONSTITUCIONAL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - CONTRATAÇÃO DE CUIDADOR PARA PORTADOR DE NECESSIDADES ESPECIAIS - DEVER DO ESTADO - ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. 1) A Constituição Federal consagra a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos da República. Logo é dever do Estado implementar políticas necessárias ao integral desenvolvimento do educando, inclusive daqueles que demandam tratamento diferenciado.2) O Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146/2015, traz expressa previsão em relação à educação para pessoas com necessidades especiais, incumbindo ao poder público o dever de ofertar profissionais de apoio escolar àqueles que dele precisa.3) Agravo de instrumento parcialmente provido.
 
Acórdão
Vistos, relatados e discutidos os presentes autos, aCÂMARA ÚNICAdo EgrégioTRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO AMAPÁ, por unanimidade, conheceu do agravo de instrumento, e, no mérito, pelo mesmoquorum, deu-lhe parcial provimento, nos termos do voto proferido pelo Relator.
 
Participaram do julgamento os Excelentíssimos Senhores DesembargadoresGILBERTO PINHEIRO (Presidente e Relator), AGOSTINO SILVÉRIO (1.º Vogal) e DesembargadoraSUELI PINI (2.ª Vogal).
 
Teor do Ato
Trata-se de agravo de instrumento interposto pelo Estado do Amapá em face de decisão proferida pelo Juiz de Direito do Juizado da Infância e Juventude - Área Cível e Administrativa que, nos autos de ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Estado do Amapá em favor da infante Jesue Vaz da Silva, deferiu o pedido liminar e determinou que o agravante, por meio da Secretaria de Educação - SEED, proceda a contratação de cuidador com vistas ao atendimento da demanda de menor, portadora de necessidades especiais, bem como da Escola Estadual Zolito Nunes, em todas as atividades realizadas dentro e fora de sala de aula. Fixou, para cumprimento da obrigação, o prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de multa diária no importe de R$ 1.000,00 (mil reais).
 
Em suas razões argumentou que a decisão merece reparo, porquanto o agravado não demonstrou o preenchimento dos requisitos necessários à concessão da tutela antecipada de urgência, mesmo porque é vedada sua concessão em desfavor da Fazenda Pública quando o provimento judicial esgota, no todo em qualquer parte, o objeto da ação.
 
Sustentou inexistirem elementos a indicar a negativa da Administração em cumprir a obrigação, bem como se trata de questão afeta ao mérito administrativo, não podendo o Judiciário nela se imiscuir.
 
Discorreu acerca do princípio da reserva do possível, aduzindo que, por mais que a superestrutura estatal esteja satisfatoriamente aparelhada, dificilmente tem condições de promover o atendimento integral a todos que, de alguma forma, necessitam de atuação dos Poderes Públicos.
 
Afirmou estarem presentes os requisitos necessários à concessão da liminar -fumus boni iuris epericulum in mora - requerendo, ao final, sejam suspensos os efeitos da decisão recorrida. No mérito, o provimento integra do agravo de instrumento.
 
Decisão proferia concedendo parcialmente a liminar para fixar o prazo de 60 (sessenta) dias para que o agravante, Estado do Amapá, cumprisse a obrigação constante na decisão impugnada - Processo n. 0022802-04.2018.8.03.0001, mantendo, em caso de descumprimento, a multa nela constante.
 
O agravado em suas contrarrazões pugnou pelo improvimento do recurso interposto, devendo ser mantida a decisão agravada pelos seus próprios fundamentos.
 
A d. Procuradoria de Justiça opinou pelo conhecimento e, no mérito, pelo não provimento do agravo de instrumento.
 
É o relatório.
 
VOTOS
 
O Excelentíssimo Senhor Desembargador GILBERTO PINHEIRO (Relator) - Presentes os pressupostos que admitem o agravo de instrumento, dele conheço.
 
O Excelentíssimo Senhor Desembargador AGOSTINO SILVÉRIO (1.º Vogal) - Também conheço.
 
A Excelentíssima Senhora Desembargadora SUELI PINI (2.ª Vogal) - Também conheço.
 
MÉRITO
 
O Excelentíssimo Senhor Desembargador GILBERTO PINHEIRO (Relator) - Busca o agravante, conforme relatado, suspender efeitos de decisão onde foi determinada a contratação de cuidadores para prover as necessidades de uma menor, bem como do educandário citado na inicial.
 
Acerca da matéria cumpre ressaltar, inicialmente, que a Constituição Federal de 1988 consagrou a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos da República (art. 1º, incisos II e III).
 
Nesse contexto, a educação recebeu tratamento de destaque, como instrumento indispensável à formação plena do ser humano, devendo o Estado implementar políticas necessárias ao integral desenvolvimento do educando, inclusive daqueles que demandam tratamento diferenciado, conforme ocorre na hipótese dos autos.
 
Incluída entre os Direitos Sociais - capítulo II do Título II - aeducação aparece como“[...] direito de todos e dever do Estado e da família, devendo ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”
 
Outrossim, o princípio da dignidade da pessoa humana é balizador das condições materiais exigíveis na fixação do padrão mínimo. Possui a importante função demarcatória, estabelecendo a fronteira para o que se convenciona denominar padrão mínimo na esfera dos direitos sociais.
 
Nesse contexto, não poderá a Administração Pública eximir-se da responsabilidade que lhe é inerente no que diz respeito à outorga do direito à educação como forma mais contundente de expressão do direito à vida e à dignidade da pessoa humana.
 
De mais a mais, como bem destacado na decisão impugnada, a legislação específica - Estatuto da Pessoa com Deficiência - Lei nº 13.146, de 06/07/2015, traz expressa previsão em relação ao direito à educação. Neste sentido são as disposições contidas nos artigos 27 e 28 do mencionado Diploma Legal:
 
“Art. 27. A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem.
 
Parágrafo único. É dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência, negligência e discriminação.
 
Art. 28. Incumbe ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar:
 
(...)
 
XVII - oferta de profissionais de apoio escolar;”
 
Denota-se, ainda, que a ausência de profissional adequado tem prejudicado o regular desenvolvimento da menor protegida. Em tais situações, onde se exige uma atenção especial, é indispensável o regular acompanhamento da criança.
 
Mesmo com a ajuda adequada há alguma dificuldade para tais infantes, ou seja, sem este indispensável acompanhamento o desenvolvimento estará completamente comprometido.
 
Inobstante a carência mencionada, destaco, conforme ressaltado em julgamento realizado nesta Corte de Justiça“que não se pode olvidar que os recursos públicos são finitos e escassos frente às infindáveis necessidades humanas. Todavia, a tutela das finanças públicas, não pode ser considerada como um fim em si mesmo, já que o Estado existe para satisfazer as necessidades vitais do homem e não ao contrário.
 
Aliás, vários são os precedentes do Supremo Tribunal Federal que reforçam a onerosidade dos direitos sociais sujeita à reserva do financeiramente possível, dentre os quais destaco: o direito à educação infantil (ADPF nº 45, Rel. Min. Celso de Mello, j. 29/04/04), a distribuição gratuita de medicamentos a pacientes com AIDS (RE nº 271.286/RS, Rel. Min. Celso de Mello, j. 12/09/00); o direito à vida e à saúde (RE nº 383.175/RS, Rel. Min. Celso de Mello, j. 01/02/06) etc.
 
Entretanto, a chamada Cláusula da Reserva do Possível não pode ser alegada para eximir o Estado de realizar as necessidades fundamentais do homem (vida, saúde, educação, etc), ainda que necessite criar créditos suplementares ou remanejar outras verbas orçamentárias, incumbindo-se ao Poder Judiciário determinar o cumprimento da ordem valorativa estabelecida no texto constitucional. É perfeitamente possível, portanto, o cancelamento de rubricas orçamentárias destinadas à publicidade estatal, v.g., para satisfazer o direito à educação, indispensável ao exercício pleno da cidadania.
 
Dessa forma, o Poder Judiciário Amapaense não apenas pode como deve determinar ao Executivo, no exercício da jurisdição, que realize as prestações públicas fundamentais estabelecidas na Constituição, para, a um só tempo, salvaguardar lesão ou ameaça de direito e impedir que o cidadão agonize a espera de um medicamento ou tratamento que lhes proporcione existência digna.” (MS nº 1.162/07, Rel. Des. Raimundo Vales, j. 27.02.2008)
 
Atuação estatal na concretização do comando constitucional deverá orientar-se, em especial, pelo Princípio da Máxima Efetividade da Constituição onde “à uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todos e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas pragmáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais.” (José Joaquim Gomes Canotilho, in Direito Constitucional, 5ª edição, Coimbra, Portugal, Livraria Almedina, p. 1208).
 
Na hipótese dos autos resta evidenciada a necessidade de intervenção do Judiciário para adoção de medidas indispensáveis para assegurar às crianças e adolescentes, inclusive aqueles que necessitam de atenção especial, o mínimo necessário ao pleno desenvolvimento não apenas intelectual, mas, sobretudo, humano, com vistas ao exercício da cidadania.
 
Acerca da matéria trago à colação entendimento já exposto por nossa Corte de Justiça:
 
CONSTITUCIONAL - APELAÇÃO CÍVEL - DIREITO À EDUCAÇÃO - TRANSPORTE ESCOLAR GRATUITO. 1) A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente garantem o direito ao ensino e ao acesso a este, sendo responsabilidade dos entes federados fornecer escolas, bem como o transporte escolar gratuito às crianças e adolescentes do ensino municipal e estadual. 2) Remessa ex officio não provida e recurso voluntário prejudicado.(TJAP, APELAÇÃO. Processo Nº 0001097-39.2012.8.03.0007, Relator Juiz Conv. JOAO GUILHERME LAGES MENDES, CÂMARA ÚNICA, julgado em 29 de Julho de 2014, publicado no DJE Nº 151/2014 em 25 de Agosto de 2014)
 
CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. REMESSA OFICIAL E APELAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO À EDUCAÇÃO. REFORMA DE ESCOLA. PRAZO PARA INÍCIO DA OBRA. MULTA-DIÁRIA. 1) A Constituição Federal de 1988, em seu art. 205, estabelece que a educação é um direito de todos e um dever do Estado, que deve ser garantido mediante políticas que visem ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, dispondo, ainda, em seu art. 227, ser de absoluta prioridade em relação à criança, ao adolescente e ao jovem. 2) Verificado que o prazo estabelecido para o Estado iniciar a obra de reforma da escola não se revela razoável, frente às providências administrativas que devem ser tomadas pela Administração para o fiel cumprimento da decisão judicial, impõe-se a ampliação do mesmo de 15 para 60 dias. 3) Se o valor fixado a título de multa-diária, para o caso de descumprimento da medida judicial, reclama redução, diante das peculiaridades do caso concreto, cabe ao Tribunal fazê-la, em grau de recurso. 4) Remessa oficial à qual se dá parcial provimento e apelação julgada prejudicada.(TJAP, REMESSA EX-OFICIO (REO). Processo Nº 0000334-44.2012.8.03.0005, Relator Desembargador CARMO ANTÔNIO, CÂMARA ÚNICA, julgado em 23 de Setembro de 2014)
 
Por fim, deve ser consignado, ainda, como também realçou o Juiz singular, que a ação civil pública decorre de procedimento administrativo instaurado em março de 2018, sendo que, decorridos cerca de 04 (quatro) meses, não se obteve uma solução fora da esfera judicial.
 
Único aspecto que entendo ser necessária pequena correção, em razão da realidade atual, diz respeito ao prazo para cumprimento da obrigação imposta na liminar, porquanto, no meu sentir e considerando as peculiaridades próprias da lide em questão, se mostra um pouco exíguo, devendo ser dilatado para possibilitar o fiel cumprimento dodecisum.
 
Posto isto, e por tudo o mais que dos autos dou provimento parcial ao agravo de instrumento, a fim de fixar o prazo de 60 (sessenta) dias para que o agravante, Estado do Amapá, cumpra a obrigação constante na decisão impugnada - Processo n. 0022802-04.2018.8.03.0001, mantendo, em caso de descumprimento, a multa nela constante.
 
É o meu voto.
 
O Excelentíssimo Senhor Desembargador AGOSTINO SILVÉRIO (1.º Vogal) - Acompanho o Relator.
 
A Excelentíssima Senhora Desembargadora SUELI PINI (2.ª Vogal) - Também acompanho.
 
DECISÃO
 
A Câmara Única do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, por unanimidade, conheceu do agravo de instrumento, e, no mérito, pelo mesmoquorum, deu-lhe parcial provimento, nos termos do voto proferido pelo Relator.

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