terça-feira, 25 de outubro de 2022

Cessão de posição contratual e o papel da anuência do cedido

 24 de outubro de 2022, 12h07

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A cessão de posição contratual consiste na transferência do conjunto de posições subjetivas, ativas e passivas, titularizadas por uma das partes em um contrato. Ao contrário do que ocorreu em outros ordenamentos jurídicos, como no italiano e no português, o Código Civil brasileiro não regulou expressamente a cessão de posição contratual. A disciplina legal da cessão de créditos e da assunção de dívidas poderia ser tomada como suficiente para a resolução dos conflitos relativos à cessão de posição contratual caso houvesse coincidência integral entre esta última e a transferência da soma dos créditos e dívidas emergentes do contrato.

Contudo, como se verá a seguir, esse não é o entendimento da corrente doutrinária majoritária e tampouco o adotado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Por isso, a Corte Superior tem papel fundamental na fixação das balizas do fenômeno por meio da interpretação sistemática das normas sobre direito das obrigações e teoria geral dos contratos.

Adoção da teoria unitária sobre a cessão de posição contratual
Apesar de não haver o tratamento legal expresso da cessão de posição contratual, a jurisprudência do STJ vem admitindo a sua ocorrência no ordenamento jurídico brasileiro pelo menos desde 2002, com o julgamento do REsp n. 356.383/SP.  [2]

Nele, a 3ª Turma reconheceu a legitimidade do cessionário para pleitear a revisão do contrato de arrendamento mercantil, podendo requerer a revisão das prestações vincendas e das prestações anteriormente pagas pelo cedente.

O voto da relatora, ministra Nancy Andrighi, reconhece a cessão de posição contratual no direito brasileiro e sua autonomia diante de uma mera conjunção de cessão de créditos e assunção de dívidas, conforme trecho citado da obra de Silvio de Salvo Venosa:

"Nenhum intérprete, por mais arguto que seja, pode predeterminar até onde irão as conseqüências de um contrato, ainda não exaurido. Os direitos potestativos, emergentes do contrato-base, por conseqüência, também se transferem. Assim, a cessão de todos os créditos e de todas as pretensões presentes e futuras e a assunção de todas as dívidas não esgotam o conteúdo jurídico do tema em estudo."

A apreensão da cessão da posição contratual como sendo mais abrangente do que a soma dos créditos e dívidas transferidos revela o alinhamento da Corte Superior com a orientação das teorias unitárias, em contraposição às teorias atomísticas.

Enquanto as teorias atomísticas adotam um ponto de vista analítico, de decomposição da figura em estudo, as unitárias "configuram o fenômeno como transmissão dos vínculos criados por um contrato, encarados unitariamente, constituindo uma unidade dogmática autônoma, não equiparável a uma simples soma ou a um mero conglomerado de créditos e débitos".[3]

Por isso, a cessão de posição contratual engloba não somente os créditos e as dívidas, mas também os ônus, faculdades e direitos potestativos oriundos da relação contratual.

Esse entendimento foi confirmado na ocasião de julgamento do REsp n. 1.036.530/SC, que será analisado de maneira mais detalhada adiante.

Relevância da anuência do cedido para a cessão de posição contratual
Uma das questões mais importantes concernentes à cessão de posição contratual é a relativa ao papel da anuência do cedido. A visão mais disseminada é a de que a declaração do cedido é parte integrante do negócio dispositivo de cessão do contrato[4]. Desta forma, trata-se de um negócio trilateral, composto das declarações do cedente, do cessionário e do cedido. Para Pontes de Miranda, no entanto, a autorização do cedido consiste em negócio jurídico unilateral que interfere na eficácia do contrato de cessão[5].

Independentemente de se optar por uma ou outra corrente, as consequências práticas são idênticas, pois sem a autorização do cedido, a cessão contratual não produzirá efeitos perante ele. Trata-se de consequência imediata de uma das projeções da autonomia privada: não se pode obrigar uma parte a contratar com outra à qual ela não optou se vincular, senão em virtude da lei.

Sobre esse tema, o STJ considera, em geral, ser ineficaz a cessão de posição contratual sem a anuência expressa do cedido.[6]

No julgamento do REsp. n. 1.036.530/SC[7], foi proferido acórdão que destoou da linha de raciocínio acima e no qual entendeu-se que, após quitadas as prestações do contrato, a vontade do cedido seria irrelevante. No caso concreto, havia contrato de leasing entre a arrendadora e o arrendatário. Paralelamente, ocorreu a celebração de contrato de compra e venda entre o arrendatário e terceiro. No ano seguinte, as obrigações entre o arrendatário e a arrendadora foram quitadas. Posteriormente, a arrendadora foi notificada pelo terceiro sobre o negócio jurídico entre ele e o arrendatário e informada de que o paradeiro do arrendatário era desconhecido, tendo sido solicitada na ocasião a transferência do veículo junto ao Detran. A instituição financeira arrendadora se recusou a realizar a transferência sob o argumento de não haver anuído com a cessão do contrato.

Em seu voto, o Min. relator Marco Buzzi confirmou o entendimento reiterado da Corte de que, não havendo a anuência expressa da arrendadora, não poderia haver a cessão de posição contratual.

Contrariando essa posição, o ministro Luis Felipe Salomão abriu divergência com o voto que se sagrou vencedor para inaugurar a tese de que "uma vez quitadas as obrigações relativas ao contrato-base, a manifestação positiva de vontade do cedido em relação à cessão contratual torna-se irrelevante, perdendo sua razão de ser, haja vista que a necessidade de anuência ostenta forte viés de garantia na hipótese de inadimplemento pelo cessionário".

A ministra Isabel Galloti acompanhou o voto do ministro relator, mas sob o fundamento da ilegitimidade da instituição financeira para figurar no polo passivo da demanda, tendo em vista a inexistência de relação jurídica com o terceiro e a ausência de citação do arrendatário para se manifestar sobre o suposto contrato de compra e venda celebrado.

Em suas razões, consignou-se o seguinte: "Estamos presumindo contra o vendedor, que não foi citado nem por edital e nem integrou a relação processual, que esses documentos são perfeitos e verdadeiros. Não se duvida de que o sejam, mas isso poderia somente ser afirmado pelo Poder Judiciário, com força de coisa julgada, se a demanda tivesse sido dirigida contra o vendedor, contra aquele com quem o autor celebrou a compra e venda, contra aquele ao qual a instituição financeira teria o dever de transferir a propriedade".

Não se adentrou à controvérsia sobre a necessidade ou não da anuência do cedido após o adimplemento das prestações do cedente. Com efeito, tal parece ser o raciocínio mais acertado. Afinal, não se está diante de cessão da posição de arrendatário no contrato originalmente celebrado com a instituição financeira. O que se discute no caso é a possibilidade de opor contra a arrendadora um dever em face de terceiro com o qual não possui relação jurídica alguma, o que, como bem pontuou a Min. Isabel Galotti, não é apropriado.

Na cessão de posição contratual, as disposições acordadas e o tipo negocial não são alterados. Além disso, o cessionário passa responder ao cedido nos mesmos termos em que responderia, anteriormente à cessão, o cedente. No caso concreto, existiu um negócio jurídico de leasing entre a arrendadora e o arrendatário e uma promessa de compra e venda paralela entre o promitente-vendedor, que figura como arrendatário no contrato de leasing com a instituição financeira, e o promitente-comprador do bem, que é terceiro em relação ao contrato de leasing.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[2] REsp n. 356.383/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 5/2/2002, DJ de 6/5/2002, p. 289.

[3] MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Cessão de Contrato: contendo parte tratando a matéria conforme o direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1985,

p. 166.

[4] Nesse sentido, GOMES, Orlando. Contratos. Atual. Antônio Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo de Crescenzo Marino. 26ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 179 e BIANCA, Cesare Massimo. Diritto Civile: Il Contratto. v.III. Milano: Giuffrè Editore, 2000, p. 717, que assevera ser esse o posicionamento majoritário da doutrina italiana.

[5] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. t. XXIII. São Paulo: Revista do Tribunais, 2012, p. 494-496.

 [6] AgRg no REsp n. 898.830/RJ, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 16/11/2010, DJe de 1/12/2010.

AgInt no REsp n. 1.591.138/RS, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 13/9/2016, DJe de 21/9/2016.

AgInt nos EREsp n. 1.570.460/RS, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Segunda Seção, julgado em 13/9/2017, DJe de 18/9/2017.

AgInt no REsp n. 1.577.979/RS, relator Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Quarta Turma, julgado em 24/4/2018, DJe de 2/5/2018.

AgInt no REsp n. 1.577.979/RS, relator Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Quarta Turma, julgado em 24/4/2018, DJe de 2/5/2018.

[7] REsp n. 1.036.530/SC, relator Ministro Marco Buzzi, relator para acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 25/3/2014, DJe de 15/8/2014.

Gabriela Cobra e Monteiro é advogada e mestranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP).

Revista Consultor Jurídico, 24 de outubro de 2022, 12h07

https://www.conjur.com.br/2022-out-24/direito-civil-atual-cessao-posicao-contratual-papel-anuencia-cedido

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