quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Perda da posse

Conforme o art. 1.223 CC, “Perde-se a posse quando cessa, embora contra a vontade do possuidor, o poder sobre o bem, ao qual se refere o art. 1.196”. Como se vê no novo Código Civil optou-se por não trazer um rol das situações que ensejariam a perda da posse, tal qual se encontra no Código de 1916. Com efeito, o art. 520 do Código Civil revogado assim as enumerava exemplificativamente:

Art. 520. Perde-se a posse das coisas:
I - pelo abandono;
II - pela tradição;
III - pela perda, ou destruição delas, ou por serem postas fora do comércio;
IV - pela posse de outrem, ainda contra a vontade do possuidor, se este não foi manutenido ou reintegrado em tempo competente;
V - Pelo constituto possessório.

- Inciso I: se referia ao abandono de coisa possuída, que se caracterizava por ato, geralmente tácito, de desprezo à coisa. Pode-se citar a situação em que o locatário deixa o imóvel alugado, sem comunicar nada ao locador.

De acordo com Fiúza (2003, 743), são precisos dois elementos para que ocorra abandono: um objetivo e outro subjetivo. “O primeiro é a derrelição da coisa, ou ato de abandonar, em si, do ponto de vista material. O segundo é o animus dereliquendi, ou vontade de não mais ter a coisa. A pessoa que deixa sua casa de praia fechada por vários meses no ano, ou até mesmo durante vários anos, não a está abandonando. Falta o animus dereliquendi”.

Continua citado doutrinador ensinando sobre a renúncia, que se assemelha ao abandono, sendo também forma de fazer cessar a posse. O que ocorre na renúncia é que o titular abre mão da coisa ou do direito, de forma expressa, por ato de vontade liberatório. Assim, não se faz necessária a derrelição, mas é essencial a declaração expressa de vontade, no sentido de renunciar à coisa. “Tomemos o seguinte exemplo: certo locatário comunica ao locador sua vontade de deixar o imóvel locado. O locador lhe pede que fique nele por mais duas semanas, a fim de guardá-lo contra invasões, para que possa encontrar mais tranqüilamente outro inquilino. Se o locatário aceitar a missão, terá perdido a posse, tornando-se mero detentor do imóvel. Não houve abandono. Não houve a derrelição, ou seja, o ato de despojar-se da coisa. Houve renúncia ao estado de posse e os conseqüentes direitos”.

Por isso, explica que se o abandono ou a renúncia partirem do próprio dono da coisa, haverá desconstituição do estado e dos direitos de posse e perda do direito de propriedade. Por outro lado, se quem abandona ou renuncia não for dono, haverá somente perda da posse. “Ocorre às vezes, porém, do próprio dono abandonar, e perder tão somente a posse, permanecendo intacto seu direito de propriedade. Para salvar navio do naufrágio, joga-se ao mar toda a carga. Houve sem dúvida abandono, mas sem perda do direito de propriedade. Tanto que se a carga for recuperada, seu proprietário poderá reivindicá-la”.

 - Inciso II: a tradição é a transferência da coisa das mãos do possuidor para outra pessoa. “Para que cesse a posse do tradens (pessoa que transfere), deve estar presente a intenção de transmitir a posse ao accipiens (pessoa que recebe, que aceita). É o que acontece, por exemplo, na compra e venda, na doação e na locação; embora nesta última o tradens só perca a posse direta” (Fiúza, 2003, 744).

- Inciso III: perda é o extravio da coisa, sendo impossível seu reencontro. Se perco meu relógio dentro de casa, continuo a possuí-lo. Então, pode-se dizer que a perda ocorre quando for absolutamente impossível encontrar a coisa, de modo que não mais se possa utilizá-la economicamente.

Destruição é perecimento da coisa, objeto da posse. Pode ser natural ou por fato humano. É preciso que a coisa fique inutilizada de forma definitiva, tornando impossível o exercício do poder de utilizar, economicamente, o bem por parte do possuidor; a sua simples danificação não implica a perda da posse.

Por ter sido colocada fora do comércio por motivo de ordem pública, de moralidade, de higiene ou de segurança coletiva, não podendo ser, assim, possuída porque é impossível exercer, com exclusividade, os poderes inerentes ao domínio.

- Inciso IV: Pela posse de outrem ainda que contra a vontade do possuidor se este não foi manutenido ou reintegrado em tempo competente. A inércia do possuidor, turbado ou esbulhado no exercício de sua posse, deixando escoar o prazo de ano e dia, acarreta perda da sua posse, dando lugar a uma nova posse em favor de outrem.

- Inciso V: Pelo constituto possessório: que, simultaneamente, é meio aquisitivo da posse por parte do adquirente, e de perda, em relação ao transmitente.

O parágrafo único do art. 520 do Código Civil revogado traz mais duas hipóteses, que são de perda da posse dos direitos. A 1ª parte trata da impossibilidade do exercício da posse, isto porque a impossibilidade física ou jurídica de possuir um bem leva à impossibilidade de exercer sobre ele os poderes inerentes ao domínio. Já a 2ª parte trata da prescrição, de forma que, se a posse de um direito não se exercer dentro do prazo previsto, tem-se, por conseqüência, a sua perda para o titular.

Por fim, o art. 522, também do diploma legal revogado, regula a perda da posse para o ausente, quando, tendo notícia da ocupação, se abstém o mesmo de retomar o bem, abandonando seu direito; ou quando, tentando recuperar a sua posse, for, violentamente, repelido por quem detém a coisa e se recusa, terminantemente, a entregá-la.

Regras fundamentais das ações possessórias

Segundo Fiúza (2003, 739), as ações possessórias, no CPC, são tratadas com quatro regras fundamentais, quais sejam:

a) Duplicidade - O réu contrapõe, na mesma ação, pedido possessório. Não existe reconvenção, a contestação tem caráter de reconvenção. O fundamento dessa regra é a celeridade e, por ser posse, é uma situação de fato.

b) Fungibilidade - A ação possessória pode ter seu pedido alterado no curso da demanda possessória, entretanto, somente no que diz respeito à tutela possessória. É a mutabilidade do pedido no curso da demanda. Art. 920 CPC: “a propositura de uma ação possessória em vez de outra não obstará que o juiz conheça do pedido e outorgue a proteção legal correspondente àquela, cujos requisitos estejam provados”.

c) Cumulatividade – Além do pedido possessório, poderão ser pedidos, também: indenização, perdas e danos, multa, desfazimento de construção etc.

d) Rito próprio - É um rito especial para a demanda possessória. Inicia-se com uma petição inicial, que tem os requisitos gerais do art. 282 do CPC e requisitos específicos de ação possessória: existência da posse; existência de turbação, esbulho ou ameaça; data da turbação, esbulho ou ameaça, para fins de liminar (1 ano e 1 dia); perda ou  manutenção da posse.

Presentes esses requisitos, o juiz poderá, ao despachar a inicial, praticar três atos: indeferi-la; conceder liminar, sem ouvir a parte contrária; determinar audiência de justificação. Não sendo possível a concessão da liminar, de plano, poderá o juiz determinar audiência de justificação acerca das determinações do art. 927 do CPC.

Efeitos da posse

A) Legítima defesa da posse - Também chamada de desforço físico, é a auto-tutela, em que o titular, usando meios moderados, repele turbação ou esbulho na posse (art. 1.210, § 1º).
Os requisitos são: uso dos meios necessários; moderação; ocorrência de injusta agressão; atual ou iminente; posse.
            Na hipótese de excesso na legítima defesa da posse, sendo doloso ou culposo, aplica-se o art. 186 do Código Civil, gerando indenização, ou seja, o excesso não gera a perda da posse, mas sim uma indenização.

B) Acessórios da coisa - São os frutos e as benfeitorias. Os frutos são melhoramentos internos da coisa, ou seja, aumento da qualidade ou quantidade interna da coisa. As benfeitorias são acréscimos externos da coisa, ou seja, aumento da qualidade ou quantidade externa da coisa.
Os frutos podem ser: materiais: decorrem da natureza; industriais: decorrem da mão humana; legais: decorrem da lei.
As benfeitorias podem ser: necessárias: aquelas indispensáveis à manutenção da coisa, ou seja, o acréscimo mantém o valor econômico da coisa; úteis: aquelas que aumentam a qualidade econômica da coisa por gerar maior utilidade; voluptuárias: aquelas que aumentam substancialmente o valor econômico da coisa para lhe garantir maior deleite.
Existem três princípios que regem a matéria: acessório segue o principal: quem possui o principal possui também o acessório; res perit domino: a coisa perece para o dono; princípio da boa-fé: existe a presunção de boa-fé; ou seja, no silêncio, presume-se a posse de boa-fé.

B.1) Efeitos da posse de boa-fé:
- Em relação aos frutos - O possuidor de boa-fé terá direito aos frutos percebidos e colhidos, e direito à indenização pela produção e custeio (todos os aparatos da coisa). (Art. 1.214 CC).
- Em relação às benfeitorias - O possuidor tem direito a indenização plena pelas benfeitorias necessárias e úteis, bem como direito de retenção por estas (poderá reter a coisa até que seja indenizado) e direito a levantar as benfeitorias voluptuárias se não houver indenização por elas. (Art. 1.219 CC).
- Em relação à deterioração - Em tese, o possuidor é irresponsável pela deterioração natural. Tem responsabilidade subjetiva. (Art. 1.217 CC).

B.2) Efeitos da posse de má-fé:
- Em relação aos frutos - O possuidor de má-fé tem obrigação de devolução dos frutos percebidos e colhidos, perderá os frutos pendentes e tem o direito de ser indenizado pela produção e custeio (visa ao não enriquecimento indevido de terceiros). (Art. 1.216 CC).
- Em relação às benfeitorias - O possuidor perderá as benfeitorias úteis e voluptuárias, terá direito à indenização pelas benfeitorias necessárias e não poderá reter a coisa, nem levantar, se não houver indenização por elas. (Art. 1.220 CC).
- Em relação à deterioração - O possuidor de má-fé tem responsabilidade objetiva. Será responsável por qualquer perecimento, só podendo se eximir se demonstrar que a deterioração ocorreria em qualquer hipótese. Há a inversão do ônus da prova. (Art. 1.218 CC).

C) Usucapião - É um efeito possessório. A passagem do tempo com uma relação de posse gera a propriedade. É a única em que o proprietário não tem publicidade, tendo em vista que a sentença do juiz, na usucapião, é meramente declaratória, não havendo registro. Nesse caso, a propriedade é adquirida com o decurso do tempo, independente de haver ou não registro.

            D) Presunção de propriedade – Devido ao fato de ser a visibilidade do domínio. Presunção esta juris tantum.

            E) Ações possessórias (interditos possessórios) – Existem dois grupos de ações possessórias:
- Típicas: são aquelas que tratam da relação material da pessoa com a coisa. Podem ser: reintegração de posse, em caso de esbulho; manutenção de posse, em caso de turbação, ou interdito proibitório, em caso de ameaça.
- Atípicas: são aquelas que tratam, além da relação material, da relação jurídica e suas conseqüências no sistema jurídico. Podem ser: embargos de terceiros possuidores, nunciação de obra nova etc.
Obs.: Exceptio domini ou exceptio proprietatis: é o fenômeno segundo o qual o réu alega, na defesa, ser titular do domínio nas ações possessórias. Quanto à alegação de domínio (exceptio domini) nas ações possessórias, está previsto no art. 923 do CPC: “Na pendência do processo possessório, é defeso, assim ao autor como ao réu, intentar a ação do esbulho cometido pelo autor”. O art. 923 proíbe a alegação de domínio sobre a coisa, em caso de ação possessória.
            Regra geral, portanto, em matéria possessória, o juiz não irá decidir domínio; entretanto, existem duas exceções a essa regra citadas por Silvio Rodrigues (2002, 58):
            - Súmula n. 487 do Supremo Tribunal Federal: se as duas partes fundamentarem a posse em propriedade (se os dois alegarem ser proprietários), o juiz deverá julgar pela propriedade.
- Julga-se pelo domínio quando não se prova posse, ou seja, se nenhuma das partes provar a posse, o juiz julgará pelo domínio.
Traz Flávio Tartuce um entendimento mais moderno segundo o qual “No atual Código Civil, por força do disposto no §2º do seu art. 1.210, não há mais lugar para a "exceptio proprietatis", como defesa oponível às ações possessórias típicas, havendo, assim, a partir da vigência do Código Civil de 2002, absoluta separação entre os juízos possessório e petitório. Leia a lúcida e hodierna decisão monocrática prolatada pelo eminente e culto Desembargador Silveira Lenzi, fundamentada no Enunciado n. 79 do CEJ (Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal) e nas lições de Arruda Alvim”.

“Decisão Monocrática: Agravo de Instrumento Nº 2004.025421-0/0000-00, da comarca de Jaraguá do Sul. Relator: Des. Silveira Lenzi. Data da decisão: 04.10.2004. Publicação: DJSC n. 11.531, edição de 07.10.2004, p. 17/18. Agravante: Geison Roberto Schäffer. Advogada: Regina Potapoff. Agravadas : Alaide Roters e outros.
Advogado: Roberto Cesar Schroeder

DESPACHO

Geison Roberto Schäffer interpõe agravo de instrumento, com pedido de efeito suspensivo, contra a decisão interlocutória de fls. 35/37, proferida nos autos da ação de reintegração de posse n. 036.04.002795-9, movida por Alaíde Roters, Daniele Roters Monteiro, Marcos André Alves Monteiro, Mauro Eduardo Roters, Marlene Roters Gottardi e Edmundo Gottardi, que deferiu a liminar.

O agravante alega que: a) não esbulhou a posse dos autores, ora agravados; b) em virtude de suas dificuldades financeiras, reside no imóvel há mais de 04 (quatro) anos, conforme acordo firmado com o seu tio, marido da primeira agravante, antes de seu falecimento; c) após a morte de seu tio, os recorridos concordaram com a sua permanência no imóvel, porque quitava os tributos, mantinha o terreno limpo e edificou benfeitorias em torno de R$ 10.000,00 (dez mil reais); d) sua mãe é herdeira legítima do imóvel, porque a casa nele existente foi edificada pelo seu avô; e) os recorridos inobservaram o compromisso firmado.

Requer a concessão do efeito suspensivo e o final provimento do recurso.

É o relatório.

Para a concessão de efeito suspensivo ao agravo de instrumento, providência excepcional, necessária a existência dos pressupostos estabelecidos no art. 558, caput, do estatuto processual - a relevância da fundamentação e a possibilidade de lesão grave e de difícil reparação, até o julgamento do recurso.

Reputo ausente o fumus boni iuris.
Isto porque, aparentemente, o esbulho restou caracterizado com a permanência do ora agravante no imóvel, mesmo após ter sido notificado extrajudicialmente para que o desocupasse (fl. 19).
Saliento, ainda, que, em inobservância ao art. 333, inc. II, do CPC, inexistem provas de que o ora recorrente tenha edificado benfeitorias necessárias ou úteis que justificassem seu direito de retenção, a teor do art. 1.219 do CC/02.

Ademais, a questão acerca da propriedade da casa situada no imóvel é irrelevante ao caso, porquanto não se discute tal matéria no juízo possessório, por força do art. 1.210, § 2º, do CC/02: “Não obsta a manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa.”

Daí o Enunciado n. 79, aprovado nas Jornadas de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, dispor que: “Enunciado 79 do CEJ: ‘A ‘exceptio proprietatis’, como defesa oponível às ações possessórias típicas, foi abolida pelo Código Civil de 2002, que estabeleceu a absoluta separação entre os juízos possessório e petitório’.” (In: Theotonio Negrão e José Roberto Ferreira Gouvêa, Código Civil e Legislação Civil em Vigor, 22ª ed., São Paulo, Saraiva, 2003, p. 217).

Arruda Alvim, no mesmo sentido, expõe: “A posse, como se disse, é protegida como defesa de uma situação de fato. Esta assertiva tanto mais se evidencia a partir do que consta do § 2º do art. 1.210 do CC, a mostrar, que no plano do juízo possessório está estabelecida a impenetrabilidade em relação à alegação de domínio ou de outro direito (o que já era da tradição recente de nosso direito).” (Defesa da Posse e Ações Possessórias, revista de Processo, n. 114, p. 26, mar./abr. 2004).

Ausente o fumus boni iuris, despiciendo o exame do periculum in mora.

Do exposto, indefiro o pedido de efeito suspensivo.
Intimem-se.
Cumpra-se o disposto no inc. V do art. 527 do CPC.
Após, à redistribuição.

Florianópolis, 04 de outubro de 2004.

Silveira Lenzi
RELATOR”

Aquisição da posse

De acordo com o art. 1.204: “Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade”.

O art. 1.205 dispõe que se pode adquirir a posse:
I – pela própria pessoa que a pretende ou por seu representante (legal ou convencional); e
II – por terceiro sem mandato, dependendo de ratificação.

            Comentando o inciso II acima citado, Caio Mário (2003, 45) diz que não é necessário constituir formalmente um procurador para que alguém adquira a posse por intermédio de outrem, basta que lhe seja dada esta incumbência, ou que exista vínculo jurídico entre eles. “Assim é que o jardineiro que vai buscar as plantas, ou a doméstica que recebe a caixa de vinho adquirem a posse alieno nomine, para o patrão e em nome deste, embora dele não sejam mandatários”.

Ninguém pode transmitir mais direitos do que tem, ou seja, a posse é transmitida com o mesmo caráter que ela possui (Ex.: a posse precária, se transmitida, ainda será precária). Assim é que no art. 1.206 se lê: “A posse transmite-se aos herdeiros ou legatários do possuidor com os mesmos caracteres”. E também que “Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida” (art. 1.203 CC).

Acessão da posse: é a soma do tempo da posse atual com o da posse anterior, na posse derivada. Jamais poderá acontecer na posse originária, tendo em vista que há necessidade de nexo de causalidade para que seja somado o tempo. É o que se extrai do art. 1.207 em que: “O sucessor universal continua de direito a posse de seu antecessor; e ao sucessor singular é facultado unir sua posse à do antecessor, para os efeitos legais”.

            Obs. É interessante observar o que está no art. 1.209 “A posse do imóvel faz presumir, até prova contrária, a das coisas móveis que nele estiverem”.

Princípio da continuidade do caráter da posse

            De acordo com o art. 1.203: “Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida”. Daí pode-se inferir que é possível a mudança na natureza da posse, o que recebe a denominação de interversão do título. É o que, por exemplo, ocorre quando o comodatário se recusa a restituir a coisa objeto do contrato alegando que a recebeu em dação em pagamento. Bem ressalta Venosa (2002, 77) que “a simples vontade do possuidor não tem o condão de modificar a natureza da posse. O que modificaria sua natureza seria ato material exteriorizado em outra relação de fato com a coisa.

Tendo em vista o que está previsto nos arts. 1.206 de que “A posse transmite-se aos herdeiros ou legatários do possuidor com os mesmos caracteres” e 1.207 de que “O sucessor universal continua de direito a posse de seu antecessor; e ao sucessor singular é facultado unir sua posse à do antecessor, para os efeitos legais”, Caio Mário (2003, 31) diz que “Se a posse originária era injusta, o desconhecimento do defeito daquele que a recebeu por título hereditário não lhe apaga o defeito porque o herdeiro, como sucessor universal do defunto, continua na mesma posse, com os vícios e qualidades que a revestiam”. Por outro lado, “Se a aquisição se der a título singular (convenção, legado), o mesmo não ocorre, pois que, começando sempre a posse com o ato aquisitivo, não a inquinam os vícios anteriormente existentes. É certo que o adquirente tem a faculdade de juntar à sua a posse do antecessor (accessio possessionis), mas é mera faculdade, de que somente se utilizará se lhe convier, e o possuidor é disto o único árbitro”.

Lei nº. 12.344 (9/12/10) - 70 anos é a idade limite para a escolha do regime de bens do casamento

RESTRIÇÕES AO DIREITO DE AMAR

Rodrigo da Cunha Pereira
Advogado, Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM, Doutor (UFPR), Mestre (UFMG) em Direito Civil, autor de vários artigos e livros em Direito de Família e Psicanálise

 
Entrou em vigor a lei nº. 12.344, sancionada pelo Presidente da República no último dia 9/12, que aumenta para setenta anos a limitação da idade para a escolha do regime de bens do casamento. Com o Código Civil Brasileiro de janeiro de 2003, este limite, que era de cinqüenta anos para mulheres e sessenta para homens, passou a ser de sessenta anos para ambos os sexos. Isto significa que homens e mulheres, acima de sessenta, e a partir desta nova lei, setenta anos, não têm a liberdade de escolher as regras econômicas de seu casamento e por analogia de sua união estável, pois só podem se unir pelo regime de separação de bens.

O fundamento e "espírito" desta proibição é evitar os chamados popularmente de "golpes-do-baú". Parte-se do pressuposto que alguém com mais de sessenta anos, e agora setenta, não tem mais a capacidade de discernir o certo ou errado e está mais vulnerável de ser enganado pelo seu pretenso cônjuge ou companheiro. "Golpes-do-baú" sempre existiram e continuarão, independentemente do regime de bens do casamento. Para essas exceções a receita é a de sempre, ou seja, em se constatando a enganação ou o engodo, o contrato de casamento pode ser desfeito ou anulado através dos instrumentos jurídicos próprios.
Esta nova lei tem o mérito de trazer à reflexão e proporcionar a importante discussão sobre os limites de intervenção do Estado na vida privada dos cidadãos, sobre a contradição da restrição à liberdade de escolha do regime de bens do casamento, sobre expectativas de herança, enfim, sobre os perigos das paixões. A partir desta nova lei, a Presidente eleita, Dilma Rousseff, se vier a se casar novamente não está mais obrigada a se casar pelo regime de separação de bens. Por outro lado, os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Jose Sarney, por terem mais de 70 anos de idade continuam semi-interditados, ou seja, se vierem a se casar novamente têm restrição em sua liberdade na escolha das regras econômicas de suas novas relações amorosas.

O superior Tribunal de Justiça - STJ e alguns tribunais estaduais já haviam se posicionado pela inconstitucionalidade desta regra (art. 1641, II código civil) restritiva de liberdade individual (Recurso Especial 471.958). A contradição, e, portanto a ainda inadequação da nova lei, ao continuar impondo limite de idade para escolha do regime de bens do casamento, é flagrante se pensarmos que grande parte dos julgadores dos tribunais superiores, ocupantes de cargos no legislativo e executivo, têm mais de sessenta, e boa parte até mais de setenta anos, tomam decisões importantes para a vida econômica do país e não podem decidir sobre a economia de sua própria vida?

Paira sobre esta restrição não apenas uma inconstitucionalidade e um atentado às liberdades individuais daqueles que chegam aos setenta anos de idade e são automaticamente semi-interditados, mas principalmente o preconceito. Para o senso comum, alguém com mais de sessenta ou setenta anos de idade que estabelece uma relação amorosa com outra pessoa bem mais nova está sendo ludibriada e deve ser protegida. O preconceito está principalmente em acreditar que pessoas mais velhas não são capazes de despertar o amor e o desejo em alguém bem mais jovem. E é assim que se vai construindo historias de exclusão e expropriação da cidadania. Ainda bem que a maturidade, a segurança emocional e o próprio dinheiro podem ser outros novos elementos de atração e sedução para quem está na chamada terceira idade, já que o corpo certamente não é mais o encanto principal. Não há mal nenhum alguém ter dinheiro e isto ter se tornado um "valor agregado", para usar uma expressão do mercado econômico, que tange e conduz também o mercado erótico e amoroso.

Embora a lei seja bem intencionada, ela é tímida e perdeu uma boa oportunidade para acabar de vez com um dos resquícios de atraso do ordenamento jurídico brasileiro. Tal restrição atenta contra a liberdade individual e fere a autonomia e dignidade dos sujeitos.

Fonte: INJUR