quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

SUS pagará aparelho auditivo de apenas um dos ouvidos

O Sistema Único de Saúde (SUS) não terá mais que fazer implantes auditivos duplos em pacientes surdos conforme havia determinado a Justiça Federal do Rio de Janeiro em outubro de 2011. A decisão foi revista em dezembro pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região, conforme noticiado pela Agência Brasil.

Desde 2000, o SUS vem custeando implante auditivo em apenas um dos ouvidos para pessoas surdas, repassando cerca de R$ 45 mil por paciente. Em uma ação, a Defensoria Pública da União, porém, diz não haver justificativa para que o implante ocorra apenas em um ouvido, o que gera prejuízos à plena audição e à qualidade de vida dos pacientes. Além disso, a defensoria reclama que o SUS não arca com as despesas de manutenção do aparelho no pós-operatório, o que torna a cirurgia “inócua por falta de recursos financeiros dos pacientes”.

Entendendo haver urgência no pedido, o juiz de primeiro grau Iorio Forti acatou liminarmente o entendimento da DPU e determinou que o SUS se responsabilizasse pelos gastos do pós-operatório dentro de quatro meses. Também determinou que, dentro de dez meses, o SUS passasse a fazer implantes bilaterais em pelo menos 30% dos pacientes operados até agora, cerca de 2 mil.

Inconformada, a União entrou com um recurso no TRF-2 alegando que o juiz invadiu competência do Executivo ao alterar a política de implantes auditivos, o que acarretaria altos custos sem comprovação dos benefícios médicos. O argumento foi acolhido pelo tribunal, que entendeu que "há que se conciliar a capacidade de planejamento orçamentário do Estado com a necessidade de pleno atendimento da saúde". A questão ainda deverá ser analisada no mérito.

Pela cirurgia em questão, insere-se uma prótese no ouvido interno criando o chamado “ouvido biônico”. A prótese é indicada para pessoas com surdez total ou quase total, que não conseguem ser atendidas pelo uso de aparelhos auditivos convencionais, que apenas amplificam o som.
Revista Consultor Jurídico

Quando um magistrado deve se declarar suspeito?

Saiu na Folha de 21/12/11:

Ministro do Supremo beneficiou a si próprio ao paralisar inspeção
O ministro Ricardo Lewandowski, do STF (Supremo Tribunal Federal), está entre os magistrados que receberam pagamentos investigados pela corregedoria do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) no Tribunal de Justiça de São Paulo, onde ele foi desembargador antes de ir para o STF (...)
Por meio de sua assessoria, Lewandowski disse que não se considerou impedido de julgar o caso, apesar de ter recebido pagamentos que despertaram as suspeitas da corregedoria, porque não é o relator do processo e não examinou o seu mérito.
A liminar que ele concedeu suspende as inspeções programadas pelo CNJ e permite que o relator do caso, ministro Joaquim Barbosa, volte a examinar a questão em fevereiro, quando o STF voltará do recesso de fim de ano.
A corregedoria do CNJ iniciou em novembro uma devassa no Tribunal de Justiça de São Paulo para investigar pagamentos que alguns magistrados teriam recebido indevidamente junto com seus salários e examinar a evolução patrimonial de alguns deles, que seria incompatível com sua renda.


Segundo nosso Código de Processo Civil, um magistrado deve se declarar suspeito para julgar um caso quando


PS: Se o magistrado não se declara suspeito, qualquer uma das partes pode pedir que ele se declare suspeito na primeira oportunidade ou mesmo pedir que ele seja declarado suspeito por alguém acima dele. Mas isso não ajuda muito quando se trata do STF porque essa é a última corte.
  • ele é amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes;
  • uma das partes é credora ou devedora do magistrado, de seu cônjuge ou de parentes destes, em linha reta ou na colateral até o terceiro grau (tio e sobrinho);
  • ele é herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de alguma das partes;
  • ele receber dádivas antes ou depois de iniciado o processo; aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa, ou subministrar meios para atender às despesas do litígio;
  • ele for interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes;
  • por motivo de foro íntimo.
Reparem que a lei não diz que a pessoa precisa receber um benefício. Basta que ela tenha interesse no julgamento em favor de um das partes. A obtenção de um benefício é meramente incidental: não importa.

Mas o que é ‘interesse’? É aí que está a dificuldade em casos como o descrito acima porque nossa lei é vaga a esse respeito. Interesse é algo subjetivo. O fato de um magistrado ser interessado em futebol não o impede de julgar casos envolvendo futebol. Para tentar ajudar, a  lei diz que é suspeito o juiz que tem interesse no julgamento em favor de uma das partes. Mas isso também é subjetivo. A princípio, todo magistrado tem um interesse em favor de uma das partes: da que está correta. Mas, óbvio, não é disso que a lei está falando. O seu objetivo é mais profundo.

O primeiro e mais óbvio objetivo é impedir que o magistrado se beneficie (ou beneficie alguém que lhe seja próximo) usando-se de seu poder sobre o processo. Ou seja, seu primeiro objetivo é manter a imparcialidade do magistrado e garantir que a justiça seja feita.

O segundo objetivo, e esse é o ponto normalmente esquecido, é preservar a instituição. A Justiça não precisa apenas ser imparcial, ela precisa ser percebida como imparcial. O Judiciário não existe por si. Ele não nasce em árvores. Ele é uma criação social. Ele só existe porque alguém quis que ele existisse. Nas democracias, esse ‘alguém’ são os cidadãos, que escolhem parlamentares, que fazem leis, que criam o Judiciário. Nas democracias, ele existe porque a sociedade quer que ele exista. E da mesma forma como ela o criou, ela pode modifica-lo ou mesmo acabar com ele. Basta fazer uma nova Constituição.

A opinião pública não pode e não deve influenciar um julgamento. Esse deve ser decidido com base nas provas e nos argumentos jurídicos. Mesmo porque a opinião pública muitas vezes é desinformada, manipulada e mesmo levada pelas emoções. Mas a opinião pública é que confere legitimidade à instituição por trás de todos os julgamentos: o Judiciário. Embora ela não possa e não deva influenciar um julgamento, ela pode e deve influenciar as leis que conferem legitimidade à instituição por trás de todos os julgamentos. Se as pessoas deixarem de acreditar na imparcialidade dos magistrados, o Judiciário deixa de ter legitimidade e as pessoas agirão para colocar em seu lugar uma instituição que tenha mais legitimidade. E isso pode acontecer por meios pacíficos (em movimentos nos moldes das Diretas Já, através de uma intervenção federal, ou modificando-se a Constituição/leis); ou através de movimentos violentos, como aconteceu em vários países socialistas em 1989/90 e vem acontecendo em países árabes.

E é esse o segundo objetivo da declaração de suspeição de um magistrado. Ela não serve apenas para o magistrado dizer ‘vou me afastar porque eu não sou totalmente imparcial nessa causa’, mas também para ele dizer ‘é melhor eu me afastar porque embora eu saiba que sou capaz de julgar essa causa com imparcialidade, o resto do mundo suspeita que eu não seja, e isso manchará a credibilidade da instituição que eu represento’.

http://direito.folha.com.br/1/post/2011/12/quando-um-magistrado-deve-se-declarar-suspeito.html

Os três tipos de improbidade administrativa

Saiu na Folha de hoje (22/12/11):

Tucano paga motorista com verba pública
O deputado federal Duarte Nogueira (SP), líder do PSDB na Câmara, paga com dinheiro público um motorista particular que atende a seus filhos no interior paulista.
José Paulo Alves Ferreira, conhecido como Paulo Pedra, é desde julho contratado como secretário parlamentar pelo gabinete do deputado tucano, com salário que pode chegar a R$ 1.900, a depender de gratificações.
O expediente é cumprido em Ribeirão Preto, base eleitoral de Nogueira e onde moram os filhos. O deputado confirmou que o motorista atende a seus filhos, mas só ‘fora do horário comercial’ e quando o parlamentar não está na cidade. Ele afirmou ‘não ver nada demais nisso’.
As regras da Câmara permitem o trabalho do assessor no Estado, mas a atividade deve ser inerente ao exercício do mandato parlamentar.
O Ministério Público Federal considera desvio de função a atuação de servidores em tarefas particulares.


O termo desvio de função normalmente está associado ao servidor ou empregado concursado ou contratado para uma função que exerce outra. Por exemplo, ele foi contratado como analista e acabou trabalhando como gerente, mas sem receber por isso. Para os servidores públicos, a súmula 378 do STJ diz que, “reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes”, e os artigos 460 e 461 da CLT, nos casos de trabalhadores regidos pela CLT, dizem que “na falta de estipulação do salário ou não havendo prova sobre a importância ajustada, o empregado terá direito a perceber salário igual ao daquela que, na mesma empresa, fizer serviço equivalente ou do que for habitualmente pago para serviço semelhante” e “sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, na mesma localidade, corresponderá igual salário”.

Mas a matéria acima não trata de alguém contratado para uma função menor e que acaba exercendo uma função diferente. Ela trata de alguém que está sendo pago com dinheiro público para exercer uma função privada.

Bem, no sentido mais amplo da expressão, trata-se de fato de um desvio de função: ele não está exercendo a função para a qual é pago. Mas do ponto estritamente legal, trata-se de improbidade administrativa (Lei 8.429/92).

Existem três grandes grupos de improbidades administrativas: aquelas que levam o servidor a enriquecer-se ilicitamente, aquelas que causam um prejuízo aos cofres públicos e aquelas que, embora não gerem enriquecimento ou causem prejuízos aos cofres públicos, atentam contra os princípios da boa administração pública.

Reparem que no exemplo acima – se de fato ocorreu (só a Justiça poderá decidir) – o deputado suspeito não se enriqueceu diretamente (ele não recebeu o dinheiro), mas ele se enriqueceu indiretamente, e isso basta para a lei ("utilizar, em obra ou serviço particular ... o trabalho de servidores públicos, empregados ou terceiros contratados por essas entidades"). Ele causou também um dano aos cofres públicos porque gastou dinheiro público para um benefício privado (ele ordenou
ou permitiu a realização de despesas não autorizadas em lei ou regulamento), e agiu contra os princípios da administração pública, como a honestidade e a legalidade.

As penas para cada um dos três grupos são diferentes:

Enriquecimento ilícito
Ferir os princípios da administração pública

Texto modificado para corrigir e acrescentar o último parágrafo.
  • Ressarcimento integral do dano, quando houver,
  • Perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio,
  • Perda da função pública,
  • Suspensão dos direitos políticos de 8 a 10 anos,
  • Pagamento de multa civil de até 3 vezes o valor do acréscimo patrimonial
  • Proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios pelo prazo de 10 anos;
Prejuízo ao erário
  • Ressarcimento integral do dano,
  • Perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio
  • Perda da função pública,
  • Suspensão dos direitos políticos de 5 a 8 anos,
  • Pagamento de multa civil de até 2 vezes o valor do dano
  • Proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios pelo prazo de 5 anos
  • Ressarcimento integral do dano, se houver,
  • Perda da função pública,
  • Suspensão dos direitos políticos de 3 a 5 anos,
  • Pagamento de multa civil de até 100 vezes o valor da remuneração percebida pelo agente
  • Proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios pelo prazo de 3 anos.
Reparem que as penas vão diminuindo. Isso porque se você cometeu o primeiro tipo de improbidade, muito provavelmente terá cometido os outros, e responderá pelo que for mais grave. Não é possível enriquecer ilicitamente sem agir ilegalmente, ferindo os princípios da administração pública, por exemplo. E, segundo a lei, o magistrado não precisa escolher uma da lista de possíveis punições: dependendo da gravidade dos fatos, ele pode aplicar várias (ou mesmo todas) as punições.

http://direito.folha.com.br/1/post/2011/12/os-trs-tipos-de-improbidade-administrativa.html

Para entender o papel da polícia federal

Capa da Folha de 2/1/12:

PF flagra desvio recorde de recursos públicos em 2011
Operações da Polícia Federal flagraram desvio de R$ 3,2 bilhões de recursos públicos em 2011, dinheiro que teria alimentado, por exemplo, o pagamentos de propina a funcionários públicos, empresários e políticos.
O valor é mais do que o dobro do apurado pela polícia em 2010 (R$ 1,5 bilhão) e 15 vezes o apontado em 2009 (R$ 219 milhões). A título de comparação, representa quase metade do dinheiro previsto para as obras de transposição do rio São Francisco.
O total de servidores públicos presos também aumentou: de 124, em 2010, para 225, no ano passado (…)
A PF realizou, em 2011, a maior apreensão de dinheiro da história das investigações no Brasil: o equivalente a R$ 13,7 milhões foi encontrado nas casas de auditores da Receita Federal em Osasco (SP).
Foi durante a Operação Paraíso Fiscal. O dinheiro estava em caixas de leite, fundos falsos de armário e em forros (…)
Em outra operação, a Casa 101, a PF descobriu que, na região de Recife, quase todos os contratos entre Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte) e construtoras eram fiscalizados por apenas um servidor (…)
Na Operação Saúde, do Rio Grande do Sul, 34 funcionários públicos municipais foram presos, acusados de desviar verbas federais destinadas à compra de medicamentos. Em um ano, o grupo teria movimentado um total de R$ 70 milhões.


E qual é a função da Polícia Federal? O que exatamente a Polícia Federal deve investigar? Segundo nossa Constituição Federal (art. 144, §1º), ela tem quarto funções:




Mas se a Polícia Civil já é responsável pela investigação, por que a PF também seria? Elas têm funções diferentes. As polícias civis são estaduais e investigam os delitos que são julgados pelas justiças estaduais. A PF investiga aquilo que é julgado pelo poder Judiciário federal.

E o que o Judiciário federal julga? Além de tudo aquilo que é julgado diretamente pelo STF, pelos tribunais superiores e inferiores, a PF investiga tudo que será julgado pelos juízes federais, o que inclui (art. 109 de nossa Constituição):
  1. Apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;
  2. Prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho;
  3. Exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; 
  4. Exercer as funções de polícia judiciária da União.

O primeiro ponto é fácil de entender: todas as vezes que houver uma infração contra a União (como no caso dos ficais da Fazenda, na matéria acima), uma de suas autarquias (como Dnit, também na matéria acima) ou uma empresa pública (Caixa Econômica Federal, Correios etc), a PF será responsável pela investigação. Os secretários de saúde municipal, mencionados acima, foram investigados porque os desvios pelos quais eram responsáveis estavam causando danos aos cofres da União, por exemplo). Além disso, todas as vezes que houver qualquer infração que tenha repercussão em mais de um Estado ou em mais de um país, ela também será a responsável.

O segundo ponto diz que sempre que houver tráfico de entorpecentes, contrabando ou descaminho (entrada ou saída de produtos legais no país, mas sem seguir os trâmites devidos), a PF também será a responsável pela investigação.

O terceiro ponto se refere ao controle das nossas fronteiras. Por exemplo, quando você chega ou sai do país, você apresenta seu passaporte a um agente da Polícia Federal. Ele está lá porque a PF é responsável por garantir que quem não pode não saia do país, e quem não deva não entre nele.

Já o último ponto é o mais extenso, porque precisamos compreender o que é a polícia judiciária da União. 'Polícia judiciária' é aquela que investiga os delitos. É o que a polícia civil normalmente faz. É a polícia que atua depois de o crime ocorrer. Ela é chamada 'judiciária' porque suas investigações auxiliam o Judiciário a encontrar a verdade (a julgar).
  • As causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes;
  • As causas entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e município ou pessoa domiciliada ou residente no País;
  • As causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional;
  • Os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas;
  • Os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;
  • As causas relativas a direitos humanos com a qual o país tenha se comprometido em tratado internacional; 
  • Os crimes contra a organização do trabalho e contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira;
  • Os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves que não sejam da competência da Justiça Militar;
  • Os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro;
  • A execução de carta rogatória e de sentença estrangeira
  • As causas referentes à nacionalidade;
  • A disputa sobre direitos indígenas.

Por que greves nos serviços essenciais são tão perigosas?

Saiu na Folha.com de hoje (3/1/12):

"Justiça determina fim da greve de PMs e bombeiros no Ceará
Uma liminar do Tribunal de Justiça do Ceará determinou a suspensão da greve dos policiais e bombeiros militares do Estado e seu retorno imediato ao trabalho.
Os militares iniciaram a paralisação na quinta-feira (29). Eles reivindicam reajuste salarial, jornada de trabalho de 40 horas semanais e mudança no sistema de promoções.
A liminar foi expedida na segunda-feira (2). Na decisão, a desembargadora Sérgia Maria Mendonça Miranda aceitou o argumento do Estado do Ceará de que os manifestantes não têm direito à greve, pois exercem funções consideradas essenciais à população, como prevê a Constituição Federal.
"
Já falamos desse assunto aqui, mas vale a pena rever: Não importa se é no setor público ou privado: se a greve é considerada ilegal ou abusiva, os trabalhadores públicos e privados podem sofrer perdas financeiras, como o desconto de salário e multas. E ao contrário do mito de que emprego público é para sempre, os servidores públicos também podem ser demitidos. Sim, o processo é às vezes longo, mas existe e pessoas são demitidas. Ele pode até explicar parte do problema, mas não todo o problema. Então, se as consequências contra os trabalhadores são as mesmas, por que temos mais greve no setor público? 

O xis da questão não está nas perdas sofridas pelos grevistas, mas em quem se beneficia de seu trabalho. No setor privado, quem se beneficia do trabalho do grevista é também quem pode decidir sobre as reinvindicações do grevista: o dono da empresa. Se o trabalhador de uma montadora deixa de trabalhar, a montadora produz menos carros, vende menos e gera menos lucro. No fim das contas, o dono sabe o quanto está perdendo e sabe se vale a pena ser intransigente ou se deve sentar para negociar. Em outras palavras, as forças de mercado ajudam na tomada de decisão.

Mas no setor público, quem se beneficia do trabalho do grevista (o estudante, o destinatário da carta, a família do morto etc) não tem nenhum poder de decisão sobre as reinvindicações dos grevistas. No máximo, eles podem escrever ou telefonar para quem tem esse poder: o ministro, o secretário, o presidente da empresa pública etc. Mas, sinceramente, quantas vezes você já escreveu uma carta para um ministro alertando-o a respeito do baixo salário de seu carteiro ou do coveiro de sua cidade? Quem tem o poder de decisão tem muito menos a perder do que um dono de empresa na iniciativa privada. É o que os economistas chamam de externalidade: quem sofre as consequências da decisão não é quem toma a decisão.

Parece algo óbvio, mas a maior parte das pessoas fica surpresa ao descobrir que, embora até uma criança entenda que esses dois modelos econômicos são evidentemente diferentes, as nossas leis tratam os dois casos como se fossem idênticos. Fora algumas poucas restrições – principalmente a proibição de militares de fazerem greve e a obrigatoriedade da manutenção de alguns serviços públicos essenciais (mais abaixo) – a greve é tratada pelas leis essencialmente da mesma forma tanto no setor público quanto no privado.

Essa falta de distinção gera problemas nas duas pontas: do trabalhador e do beneficiário. Enquanto o trabalhador da iniciativa privada pode usar a pressão onde dói mais no empresário – o bolso – o da iniciativa pública tem de se valer de pressão do público e da mídia para fazer-se ouvir. Ou seja, o poder de pressão do trabalhador da iniciativa pública é econômico, enquanto o do servidor público é político. E pressões políticas são muito mais difusas e difíceis de serem direcionadas do que as econômicas porque suas consequências são menos tangíveis e menos quantificáveis.

E enquanto o beneficiário do trabalho na iniciativa privada pode tomar decisões que lhe afetam diretamente, o da iniciativa pública não tem esse poder, e por isso sofre as consequências sem ter causado os males. Na iniciativa privada, o médico e o paciente são a mesma pessoa: o dono. Ele sabe quanta dor consegue suportar e qual é o melhor momento para tomar um analgésico, ou mesmo se essa é uma dor com a qual consegue conviver sem precisar tratar. Já na iniciativa pública, médico (gestor público) e paciente (beneficiários do serviço público) são pessoas distintas. O médico sofre pouco ou nada com a dor sentida pelo paciente e por isso ele não sabe quanta dor o paciente pode aguentar: dando o remédio muito cedo, ele gastou o medicamente desnecessariamente. Muito tarde, e o paciente pode sofrer danos irreparáveis. Na prática brasileira, ele acaba medicando apenas quando o paciente já está necrosando ou quando o pronto-socorro inteiro está agonizando.


Mas o caso da matéria acima é ainda mais delicado porque militares não têm direito à greve. Isso por três motivos: primeiro, porque exercem uma função essencial. A segurança pública depende em grande parte no temor que os bandidos têm de serem presos. Se os policiais, esse medo inexiste. Segundo, porque são militares e o pilar do mundo militar é a hierarquia. O militar é treinado para não contestar a ordem, e sim cumpri-la (tente imaginar se cada soldado tivesse o direito de escolher se a ordem de defender o país em uma guerra é 'boa' ou 'não'). A greve é o oposto do respeito hierárquico: ela é uma forma de insubordinação. E, por fim, enquanto na iniciativa privada se os funcionários de uma empresa entrarem em greve o mesmo serviço pode ser fornecido por outra empresa ou por uma nova empresa (imagine os funcionários de um escritório de advogados em greve: os potenciais clientes levarão as causas para outros escritórios), não há competição contra serviços essenciais do Estado. Se houvesse eles não seriam essenciais. Se a PM entra em greve, você não pode contratar a polícia de um outro país para proteger as ruas.
 

Nova lei tira poderes do Ibama

Sem o alarde que marcou a votação do novo Código Flo­­restal, o Brasil termina 2011 com uma mudança de grande impacto na legislação ambiental.

Aprovada no Congresso e publicada neste mês no Diário Oficial da União, já está em vigor a Lei Complementar 140, determinando que só o órgão ambiental responsável pelo licenciamento tem o direito de fiscalizar. Na prática, a lei enfraquece o Ibama e dá plenos poderes a órgãos estaduais e municipais em assuntos como, por exemplo, a fiscalização de hidrelétricas e desmatamentos. Ambientalistas temem que os órgãos locais não suportem as pressões políticas e econômicas para autorizar empreendimentos polêmicos.

Assim, por exemplo, os casos de desmatamento no estado passariam a ser coibidos apenas pelo Instituto Ambiental do Paraná (IAP) e não mais poderiam ser alvos de ações do Insti­tuto Brasileiro do Meio Am­­­bien­­te e Recursos Naturais Reno­váveis (Ibama). A lei também amplia os poderes de estados e municípios na autorização de obras e atividades comerciais potencialmente poluentes.

No Paraná, além de ações pontuais, o Ibama faz ao menos uma grande operação por ano de combate ao desmatamento. A de 2011 aconteceu em dezembro e localizou, em sobrevoo de helicóptero, 67 pontos de derrubada de floresta de araucária. Durante duas semanas, os fiscais visitaram as propriedades, confirmaram a derrubada de 713 hectares de vegetação nativa e lavraram R$ 6,8 milhões em multas.

Diretor de licenciamento e fiscalização do IAP, Paulo Barros conta que dentre as prefeituras do Paraná, somente a de Cu­­ritiba tem autorização para verificar o cumprimento de exigências ambientais. Barros explica que outros órgãos municipais precisam se adequar a uma série de exigências se quiserem avaliar empreendimentos e conceder licenças de operação. “É preciso comprovar competência técnica e que possui um software adequado e seguro”, exemplifica.

O diretor também aposta que vários questionamentos sobre a mudança na legislação vão surgir. “Uma empresa grande que não sinta segurança no sistema municipal vai pedir licenciamento na esfera estadual”, acredita. Ele reconhece que o Ibama perde força com a Lei Comple­­mentar 140. Por exemplo, a refinaria da Petrobras em Araucária é licenciada pelo IAP e, em tese, não poderá mais ter as atividades fiscalizadas pelo órgão federal.

No Paraná, o Ibama mantém 75 servidores, apenas 12 deles atuam efetivamente como fiscais. Já as forças estaduais contam com 130 fiscais no IAP e 700 militares na Polícia Ambiental.

Na condição de presidente do conselho de administração da Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Energia Elétrica e vice-coordenador do Fórum de Meio Ambiente do Setor Elétrico, Luiz
Fernando Leone Vianna avalia que a lei complementar tem a capacidade de “agilizar e descomplicar o processo de licenciamento ambiental, com ganhos para a sociedade como um todo, criando um balcão único de licenciamento”. Ele também acredita que a nova legislação confere mais segurança jurídica aos processos de licenciamento.

Vai chover ações judiciais, acredita ONG A Fundação SOS Mata Atlântica pretende questionar na Justiça o teor da Lei Com­­plementar 140. O argumento é de que outras leis – como a n.° 9.605/98, que assegura a todos os órgãos ambientais a incumbência de zelar pelo meio ambiente, fazendo uso do poder de polícia administrativa – já garantem ao Ibama o direito de fiscalizar. Além disso, o coordenador de políticas públicas da ONG, Mário Manto­­vani, acredita que a nova legislação vai provocar uma enxurrada de ações judiciais.

“O Ministério Público deve cobrar a ação do Ibama e defender que as decisões locais não podem ser menos restritivas do que as determinações federais”, aponta. Para Mantovani, a lei complementar 140 vem no contexto de uma lógica de desmonte de todas as conquistas do setor ambiental. “É uma aberração”, define. Ele destaca que deixar a fiscalização a cargo de um órgão federal é fundamental para tirar a pressão sobre os órgãos locais.

Clóvis Borges, diretor-executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental, também acredita que a legislação ambiental está sendo vitimada por um rolo compressor que não se limita à proposta de mudança no Có­­digo Florestal. “Essa suposta maturidade do sistema nada mais é do que a flexibilização do processo de licenciamento, com perspectivas de um futuro desastroso”, diz. Ele avalia que a fiscalização atual não é suficiente e que a tendência é de o controle ambiental piorar ainda mais. A Associação Nacional dos Procuradores da República emitiu uma nota defendendo que “delegar para a esfera estadual o poder de multar [...] é relegar a questão ambiental aos desmandos regionais que ainda
assombram a democracia no país”.