1 Do mérito
Divergente. Adjetivo que resume o tratamento do mérito na ciência
processual civil. Múltiplas significações lhe são emprestadas.
Encontram-se na doutrina nacional e alienígena inúmeras definições.
Em se tratando de matéria fincada em dissensos, devem ser trazidas
balizas teóricas e interpretativas firmes. Portanto, para a realização
do estudo do mérito, adotar-se-á como premissa fundamental a distinção
entre conceitos lógico-jurídicos e jurídico-positivos.
2 Dicotomia: conceitos lógico-jurídicos e jurídico-positivos
Os conceitos jurídicos podem ser: lógico-jurídicos ou jurídico-positivos.
O emprego mais famoso desta classificação foi realizado por Hans
Kelsen. O jurista austríaco tratava a constituição em dois planos. Em um
está a norma hipotética, fundamento transcendental de validade de todo o
sistema, no outro a constituição positiva, a prevista no ordenamento
jurídico. O primeiro plano é o lógico-jurídico; o segundo é o
jurídico-positivo (SILVA NETO, 2006, pp. 28/29).
Na doutrina pátria, Borges (1999, pp. 94/95), abordando o tema do
lançamento tributário, é quem melhor apresenta o caráter dicotômico dos
conceitos. Para ele, jurídico-positivos são conceitos que somente podem
ser apreendidos a posteriori, empiricamente, após o conhecimento de um
determinado Direito Positivo, aplicáveis, portanto, a um âmbito de
validade restrito no espaço e no tempo. Quanto aos conceitos
lógico-jurídicos, pelo brilhantismo, melhor a transcrição das palavras
do autor:
Contrapõem-se os conceitos lógico-jurídicos. São estes obtidos a priori, com validade constante e permanente, sem vinculação, portanto, com as variações do Direito Positivo. [...]
Os conceitos lógico-jurídicos constituem pressupostos fundamentais para
a ciência jurídica. Entre esses pressupostos essenciais estão as noções
de direito subjetivo, dever jurídico, objeto, relação jurídica etc.
Correspondem, pois, à estrutura essencial de toda norma jurídica.
Conseqüentemente, não são exclusivas de determinado ordenamento
jurídico, mas comum a todos. Não são dados os conceitos lógico-jurídicos
empiricamente, porque são alheios a toda experiência. São necessários a
toda realidade positiva, efetivamente existente, historicamente
localizada ou apenas possível, precisamente porque funcionam como
condicionantes de todo pensamento jurídico.
À luz das lições de Borges e de Kelsen, será proposto, neste trabalho,
um conceito de mérito aplicável a qualquer direito positivo que se
examina e pertencente à teoria geral do direito processual civil –
lógico jurídico – e outro relativo ao ordenamento jurídico pátrio,
atento às particularidades legais – jurídico positivo.
Antes de se buscar a conceituação de mérito em ambos os sentidos, é
indispensável conhecer os conceitos já elaborados pela doutrina. A
análise da evolução conceitual facilitará a compreensão, seja do
conceito lógico-jurídico de mérito, seja do jurídico-positivo.
Serão elencadas, assim, de modo conciso, posições nacionais e
estrangeiras sobre o conceito de mérito, a fim de demonstrar a variedade
de entendimentos existentes e familiarizar o leitor com a temática.
3 Posições conceituais doutrinárias sobre o mérito
Nada obstante pontuais diferenças, aglutinam-se em um mesmo bloco os
autores que conceituam o mérito no plano do complexo de questões
referentes à demanda, isto é, nas questões de fundo do processo
(DINAMARCO, 2001, p. 239). Seguem este posicionamento: Liebman,
Carnelutti e Garbagnati.
Liebman[1] afirma que (apud DINAMARCO, 2001, pp. 239/240):
O conhecimento do juiz é conduzido com o objetivo de decidir se o pedido formulado no processo é procedente ou improcedente e, em conseqüência, se deve ser acolhido ou rejeitado. Todas as questões cuja resolução possa direta ou indiretamente influir em tal decisão formam, em seu complexo, o mérito da causa.
Carnelutti, sempre atrelado à noção de lide, marco metodológico de todo
seu trabalho, aduz que o “mérito da lide significa [...] o complexo das
questões materiais que a lide apresenta” (apud DINAMARCO, 2001, pp.
240)
Garbagnati, por seu turno, define o mérito como “o grupo de questões
relativas ao fato constitutivo do direito invocado processualmente pelo
autor e à escolha e interpretação das normas jurídicas que lhe serão
aplicadas” (apud DINAMARCO, 2001, p. 242).
Outra posição fundamental é a que associa o mérito à demanda inicial
proposta em juízo, ao pedido principal do processo (DINAMARCO, 2001,
246/247). Nesta trilha Chiovenda, Luigi Montesano e Elièzer Rosa.
Chiovenda assevera que (apud DINAMARCO, 2001, p. 246):
a sentença de mérito é o provimento do juiz acolhendo ou rejeitando a demanda do autor destinada a obter a declaração da existência de uma vontade de lei que lhe garanta um bem, ou da inexistência de uma vontade de lei que o garanta ao réu.
Luigi Montesano firma que “sentenças de mérito são aquelas que acolhem ou rejeitam a demanda” (apud DINAMARCO, 2001, p. 246).
Elièzer Rosa defende que “por mérito se há de entender o pedido
principal”. E continua: “o que se pede em via principal que o juiz
decida de modo definitivo para eliminar um tipo de conflito, isto é o
mérito” (apud DINAMARCO, 2001, p. 247).
Não menos importante o posicionamento de Redenti, Fazzalari e Friedrich
Lent, os quais identificam o mérito em algo exterior ao processo, ou
seja, algo da vida comum das pessoas, entendendo, pois, que o mérito é a
relação jurídica substancial deduzida e controvertida em juízo quanto a
sua existência, inexistência e modo de ser (DINAMARCO, 2001, p. 248).
Alfredo Buzaid perfilha outro caminho. O Autor do anteprojeto do
vigente Código de Processo Civil iguala o mérito à lide. Assim registrou
na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil:
Haja vista, por exemplo, o vocábulo de “lide”. No Código de Processo Civil ora significa processo (art.96) ora o mérito da causa (arts. 287, 684, IV, e 687, § 2º). O projeto só usa a palavra “lide” para designar o mérito da causa. Lide é, consoante lição de CARNELUTTI, o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um dos litigantes e pela resistência do outro. O julgamento desse conflito de pretensões, mediante o qual o juiz, acolhendo ou rejeitando o pedido, dá razão a uma das partes e nega-a à outra, constitui uma sentença definitiva de mérito. A lide é, portanto, o objeto principal do processo e nela se exprimem as aspirações em conflito de ambos os litigantes.
Há ainda quem compreenda o mérito como pretensão: exigência de
subordinação de um interesse alheio. Inspiram-se na doutrina processual
alemã que, ao contrário da italiana, não desenvolve seus estudos a
partir do conceito de ação, preferindo dar destaque ao instituto da
Anspruch: pretensão (DINAMARCO, 2001, p. 267). Assentem os germânicos
que a pretensão é o objeto do processo[2],
dissentindo somente quanto ao conteúdo desta pretensão, o que deu origem
a três correntes: a primeira sustenta que o conteúdo da pretensão é a
mera afirmação de um direito material, pois o fato da sentença negar a
existência do direito não conduz à conclusão de que o processo não
possuiu objeto; a segunda defende que a pretensão compõe-se pelo pedido
(Antrag) e pelo estado de coisas (Sacherverhalt), esta última que, na
língua latina, outra coisa não é senão a causa de pedir; a terceira aduz
que o pedido, e tão somente ele, é a verdadeira pretensão (DINAMARCO,
2001, pp. 267/273). Nessa linha de mérito como pretensão, Dinamarco e
Pontes de Miranda.
Dinamarco (2001, pp. 254/255), a partir da etimologia da palavra
mérito, da interpretação do que seja pretensão no conceito carneluttiano
de lide e claramente inspirado pelos germânicos, aduz que tal pretensão
ostenta dupla face, pois exige do juiz o provimento que seja útil e, de
outra banda, exige de outrem o bem da vida pretendido[3].
Pontes de Miranda elabora três espécies de pretensão (apud WATANABE,
2005, pp. 119/120): a pretensão à tutela jurídica, conceito
pré-processual, eliminável pela desaparição do interesse de agir; a
pretensão processual, pretensão a que se entregue a prestação prometida;
e a pretensão de direito material, alegação jurídica do autor,
pretensão de direito que faz a demanda. O mérito, então, estaria no
pedido, ou melhor, no objeto do pedido, em que se veicula a pretensão de
direito material (apud WATANABE, 2005, pp. 119/120).
Por fim, a peculiar posição de Didier Jr. e Cunha (2009, p. 364), para
quem o mérito “[...] é sinônimo de objeto litigioso (composto pelo
pedido e pela causa de pedir)”. Sucede que não restringem o mérito ao
pedido inicial. Para eles, o mérito é a qualquer postulação – principal
ou incidental (DIDIER JR.; CUNHA, 2009, pp. 368/369).
Em linhas gerais, aqui estão alguns dos conceitos de mérito já
elaborados pela doutrina. Neste trabalho, a definição de mérito
aplicável à coisa julgada material só será obtida após a análise de seus
sentidos lógico-jurídico e jurídico-positivo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário