sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O objeto da relação obrigacional

O objeto da obrigação é a prestação devida, a conduta sobre a qual credor e devedor acordam e estabelecem um vínculo jurídico; é, portanto, a realização de determinada atividade – ou a abstenção dessa realização. É importante perceber que há uma diferença entre o objeto da obrigação – determinada conduta humana, como dissemos – e o objeto da prestação; é certo que, em muitos casos, a prestação devida significa a entrega de determinado bem ou quantia de dinheiro, por exemplo, mas é errôneo afirmar que esse bem ou essa quantia são objetos da relação obrigacional. Podemos adjetivá-los, como o fazem Nelson Rosenvald e Cristiano de Farias (2012, p. 77), de objetos mediatos da obrigação; o objeto imediato, porém, é a conduta humana – e não a coisa material sobre a qual ela eventual recaia. Retornemos ao exemplo mencionado no item 2, supra, do negócio jurídico de compra e venda de um automóvel firmado entre A e B; a obrigação de A em relação a B tem seu objeto na entrega de determinada soma monetária (na prestação, portanto), enquanto o objeto da obrigação em que B é devedor consiste na entrega do automóvel. Não são a quantia em dinheiro e o carro os objetos imediatos das obrigações, mas sim as condutas humanas expressas na sua entrega.
A exposição do parágrafo anterior não objetiva apenas o preciosismo técnico; ao contrário, ela é extremamente relevante para compreender o principal critério de classificação das obrigações: aquele que toma por base a espécie de conduta humana que é seu objeto. Sob essa ótica, tripartem-se as relações obrigacionais em obrigações de dar, fazer e não fazer. Note-se que o foco dessa classificação não reside no bem material que eventualmente constitua objeto mediato da obrigação, mas sim no tipo de conduta humana a ser realizada – uma entrega, ação ou omissão.
Alguns nomes na doutrina especializada entendem ser oportuno, ainda, agrupar os objetos das obrigações de acordo com o critério da necessidade de uma ação concreta do devedor para que elas se consumem. Teríamos, dessa forma, dois grandes grupos: o dos objetos positivos, encontrados nas obrigações de dar e fazer, e o dos objetos negativos, expressos nas abstenções do devedor quanto à realização de determinada atividade – obrigações de não fazer, portanto. Embora seja cientificamente relevante a classificação, por proporcionar uma visão sistemática do assunto, os efeitos jurídicos que dela possam advir se encontram adequadamente abrangidos pela proposta classificatória exposta no parágrafo anterior – e que foi, de fato, a adotada pelo legislador de 2002.
Os objetos das relações obrigacionais devem apresentar as características previstas no art. 104, II, do Diploma Civil (comuns aos objetos de qualquer relação jurídica): a licitude, a possibilidade e a determinabilidade. A consequência para o não atendimento de qualquer dessas exigências, conforme previsão do art. 166, II, é a nulidade do negócio jurídico firmado. Importante lembrar que existe algum consenso, no meio doutrinário, quanto ao reconhecimento de um quarto caractere, mesmo sem previsão legal: o da patrimonialidade. A questão comporta interessante polêmica científica, que será abordada no momento oportuno.
A primeira exigência do inciso II do art. 104 do Código é que o objeto seja lícito, ou seja, que não atente “contra a lei, a moral e os bons costumes[5]” (GONÇALVES, 2012, p. 42); aquilo que causa repulsa ao Direito Objetivo (incluindo-se os valores, princípios e costumes que permeiam o ordenamento), portanto, não pode ser objeto de uma relação obrigacional. Ficam sob o véu da ilicitude, por exemplo, as prestações consistentes na entrega de dois quilos de cocaína (objeto de uma obrigação de dar coisa certa) e no homicídio de um rival político (objeto de uma obrigação de fazer).
É certo que a identificação dos casos em que a ilicitude se manifesta através de afronta direta a determinado texto legal não costuma apresentar grandes problemas; afinal, é de conhecimento geral que o Direito não é conivente, para usar os casos do parágrafo anterior, com o comércio de drogas, tampouco com o assassinato de quem quer que seja.
Mais problemática, porém, mostra-se a tarefa de caracterizar como ilícito o objeto que fere a moral ou os bons costumes, sem previsão legal expressa; a demonstração da ilicitude, nesses casos, demanda maior esforço argumentativo do operador do Direito e apurada sensibilidade quanto ao quadro axiológico adotado pelo ordenamento jurídico e pela sociedade. Pense-se, por exemplo, no caso de obrigação de fazer, estabelecida por sujeitos maiores e capazes, cujo objeto consiste na prestação de serviços sexuais. Ora, a prostituição, em si, não é legalmente vedada (o que se reprime penalmente é a exploração econômica, por parte de um terceiro, dessa atividade); deverá o objeto da obrigação supramencionada, portanto, ser considerado ilícito?
Entendemos que sim; como afirmamos anteriormente, os comportamentos contrários à moral e aos bons costumes, bem como ao conjunto de valores do Direito Objetivo, não devem ser por ele protegidos – e a prostituição, como bem se sabe, não está exatamente de acordo com o senso moral da sociedade. A exploração sexual do próprio corpo objetivando a percepção de lucro nunca foi muito bem vista no meio social; de fato, mesmo as civilizações mais antigas – embora coniventes com sua prática – não enxergavam a prostituição como um standard comportamental adequado. Num ordenamento jurídico que consagra a dignidade da pessoa humana como valor supremo, então, pouco espaço há para que o Direito conceda a essa atividade econômica proteção jurídica.
Imagine-se, voltando ao exemplo anteriormente mencionado, uma situação em que A e B, maiores, capazes e não explorados economicamente por terceiros, estabelecem um contrato de prestação de serviços sexuais, sendo B devedora na obrigação de fazer (realização da atividade sexual) e A vinculado à obrigação de dar quantia certa em remuneração ao serviço prestado. B, porém, desiste de adimplir o compromisso firmado; A, inconformado, invoca a tutela jurisdicional através de uma ação cominatória em obrigação de fazer (CUNHA et al, 2010)[6], exigindo ao Judiciário que conceda a tutela específica da obrigação assumida por B. Poderá o julgador, com base no art. 461 do Código de Processo Civil, prezar pelo adimplemento da obrigação e tutelar o suposto direito material de A à consumação do ato sexual – inclusive com a fixação de astreintes? Entendemos que não, pois o objeto das obrigações assumidas é ilícito por contrariar a moral, os bons costumes e os valores adotados pelo ordenamento jurídico[7].
A segunda característica inerente ao objeto da relação obrigacional é a possibilidade, entendendo a doutrina que esta se divide em possibilidade material e possibilidade jurídica. A possibilidade material é aquela que pode ser depreendida dos dados do plano ontológico, ou seja, da realidade dos fatos – independentemente da valoração que lhes é dada pelo Direito. A obrigação de colocar levantar um caminhão de carga com as mãos, por exemplo, é materialmente impossível. E, como bem aduz Caio Mário (2011, p. 19), “se o sujeito passivo deve o que não é possível, em verdade nada deve”.
Note-se que a impossibilidade que aqui abordamos é aquela já existente quando do estabelecimento dos termos da relação obrigacional; se A e B se vincularem à prestação mencionada no parágrafo anterior é certo que já no tempo em que os dois firmaram o compromisso a realização da tarefa era impossível. Se, porém, a impossibilidade se manifesta em momento posterior à criação do vínculo obrigacional não há que se falar em nulidade da relação, mas sim em resolução da mesma. Imagine-se o caso em que C e D firmam um contrato de compra e venda de um livro antigo e raro, do qual não existe nenhum outro exemplar; minutos antes da transação, C, o dono do livro, derruba-o acidentalmente em uma poça de água, que imediatamente desfaz suas páginas. A prestação era possível quando do acordo entre as partes; a impossibilidade, nesse caso, foi superveniente. A solução para tal caso é dada pelo art. 234 do Codex e consiste, como dissemos, na resolução da obrigação (com eventual responsabilização do devedor por perdas e danos, quando for o caso).
A possibilidade jurídica, por sua vez, é aquela que deriva da lógica do Direito, da necessária relação de coerência e harmonia que existe entre seus institutos. De fato, sendo uno o ordenamento, não há sentido em permitir que determinadas relações se efetivem à margem desse campo harmônico. Imagine-se, por exemplo, um negócio jurídico que tenha por objeto a herança de uma pessoa viva; o instituto da herança, como foi concebido desde os primórdios do Direito, refere-se ao patrimônio deixado por uma pessoa que veio a falecer. Ofende a lógica da ciência jurídica a ideia de alguém possa herdar algo de um indivíduo que ainda está vivo; a obrigação que tenha por objeto a herança de pessoa que não morreu, portanto, é nula por impossibilidade jurídica do objeto. Vale lembrar que, mesmo não sendo necessário, o art. 426 do Código Civil positivou o preceito aqui exposto, afirmando que “não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva”.
Existe uma pequena querela doutrinária quanto à existência de diferença entre impossibilidade jurídica e ilicitude do objeto. O tema se situa, realmente, em uma zona cinzenta, e tem relevância mais por seu valor científico do que pela produção de efeitos práticos – já que, de acordo com o art. 166, II, do Codex, a consequência para os dois casos é a nulidade.
Há quem entenda, como Caio Mário (2011, p. 19), que os dois conceitos são idênticos; diz o renomado professor que ambos “entram na mesma linha de insubordinação aos preceitos”, sendo, portanto, sinônimos. Ousamos discordar; enquanto a ilicitude expressa a repulsa do Direito sobre determinado objeto, a impossibilidade jurídica denota simplesmente que o mesmo não poderá, sobre certas condições, figurar na relação obrigacional – sob pena de subverter-se a rattione materiae do ordenamento. Expliquemo-nos: o instituto jurídico da herança é, obviamente, reconhecido e admitido pelo Direito – é, de fato, criado por ele. A transmissão de heranças é um fenômeno jurídico plenamente válido, só que o mesmo somente poderá ocorrer se atendidos alguns pressupostos – o primeiro e mais básico deles sendo o falecimento do antigo titular do patrimônio a ser transmitido.
A ilicitude caminha por vias diferentes, representando a relação de contrariedade existente entre o objeto da relação obrigacional e o Direito – sem, porém, subverter a sua lógica. Voltando ao exemplo citado em parágrafos anteriores: a venda de cocaína é ilícita apenas porque existe norma proibitiva dessa prática, ou seja, a realização de uma transação comercial envolvendo a referida droga não ofende a coerência do ordenamento nem subtrai o sentido de algum de seus institutos – é a lesividade social da conduta que obriga o Direito a vedá-la. Também é oportuno salientar que a violação a princípios referentes à moral e aos bons costumes pode levar à ilicitude do objeto – não, porém, à sua impossibilidade jurídica (GONÇALVES, 2012, p. 42).
A última característica do objeto da relação obrigacional prevista no art. 104 do Código é a determinabilidade. Assim como acontece com os elementos subjetivos (tópico 2, supra), não é necessário que o objeto esteja determinado já no momento da gênese da obrigação; o que se veda, porém, é que ele seja completamente indeterminado. Novamente, a fonte da obrigação deve fornece o critério para que se determine até o momento de sua execução qual o objeto da mesma. O exemplo clássico de objeto inicialmente indeterminado lembrado pela doutrina é aquele presente nas obrigações de dar coisa incerta, que vem indicado apenas pelo gênero e pela quantidade (art. 243 do Código).
Por fim, além dos caracteres elencados no inciso II art. 104, parte da doutrina civilista entende que a patrimonialidade também constitui conceito inerente ao objeto da relação obrigacional. O argumento principal dessa corrente doutrinária é o de que, ocorrendo o inadimplemento da obrigação, o credor terá direito a buscar no patrimônio do devedor relapso o equivalente pecuniário à prestação combinada, bem como eventual reparação por prejuízos causados. Entendemos ser mais adequado o raciocínio oposto; como bem expressam Rosenvald e Farias (2012, p. 78 e s.), a possibilidade de apreciar economicamente a relação está mais diretamente relacionada à responsabilidade do devedor (a haftung da cátedra de Alois Brinz), sendo inadequado caracterizar o objeto através de um instituto jurídico que não é de sua essência – a responsabilização patrimonial do devedor inadimplente. Em interessante síntese do assunto, Rafael Rodrigues[8] afirma que a possibilidade de atribuir uma estimativa econômica ao objeto da relação obrigacional é de extrema importância para lhe conferir estabilidade e coercibilidade, mas não para definir a natureza do próprio objeto.
O Código Civil Português, em seu art. 398, expressamente aderiu a essa tese, afirmando que “a prestação não necessita de ter valor pecuniário. Mas deve corresponder a um interesse do credor, digno de proteção legal”.

MOTTA, Thiago de Lucena. Elementos da relação obrigacional: uma abordagem estrutural. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3515, 14 fev. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23715>. Acesso em: 15 fev. 2013.

Nenhum comentário:

Postar um comentário