O objeto da obrigação é a prestação devida, a conduta sobre a qual
credor e devedor acordam e estabelecem um vínculo jurídico; é, portanto,
a realização de determinada atividade – ou a abstenção dessa
realização. É importante perceber que há uma diferença entre o objeto da
obrigação – determinada conduta humana, como dissemos – e o objeto da
prestação; é certo que, em muitos casos, a prestação devida significa a
entrega de determinado bem ou quantia de dinheiro, por exemplo, mas é
errôneo afirmar que esse bem ou essa quantia são objetos da relação
obrigacional. Podemos adjetivá-los, como o fazem Nelson Rosenvald e
Cristiano de Farias (2012, p. 77), de objetos mediatos da obrigação; o
objeto imediato, porém, é a conduta humana – e não a coisa material
sobre a qual ela eventual recaia. Retornemos ao exemplo mencionado no
item 2, supra, do negócio jurídico de compra e venda de um automóvel
firmado entre A e B; a obrigação de A em relação a B tem seu objeto na
entrega de determinada soma monetária (na prestação, portanto), enquanto
o objeto da obrigação em que B é devedor consiste na entrega do
automóvel. Não são a quantia em dinheiro e o carro os objetos imediatos
das obrigações, mas sim as condutas humanas expressas na sua entrega.
A exposição do parágrafo anterior não objetiva apenas o preciosismo
técnico; ao contrário, ela é extremamente relevante para compreender o
principal critério de classificação das obrigações: aquele que toma por
base a espécie de conduta humana que é seu objeto. Sob essa ótica,
tripartem-se as relações obrigacionais em obrigações de dar, fazer e não
fazer. Note-se que o foco dessa classificação não reside no bem
material que eventualmente constitua objeto mediato da obrigação, mas
sim no tipo de conduta humana a ser realizada – uma entrega, ação ou
omissão.
Alguns nomes na doutrina especializada entendem ser oportuno, ainda,
agrupar os objetos das obrigações de acordo com o critério da
necessidade de uma ação concreta do devedor para que elas se consumem.
Teríamos, dessa forma, dois grandes grupos: o dos objetos positivos,
encontrados nas obrigações de dar e fazer, e o dos objetos negativos,
expressos nas abstenções do devedor quanto à realização de determinada
atividade – obrigações de não fazer, portanto. Embora seja
cientificamente relevante a classificação, por proporcionar uma visão
sistemática do assunto, os efeitos jurídicos que dela possam advir se
encontram adequadamente abrangidos pela proposta classificatória exposta
no parágrafo anterior – e que foi, de fato, a adotada pelo legislador
de 2002.
Os objetos das relações obrigacionais devem apresentar as
características previstas no art. 104, II, do Diploma Civil (comuns aos
objetos de qualquer relação jurídica): a licitude, a possibilidade e a
determinabilidade. A consequência para o não atendimento de qualquer
dessas exigências, conforme previsão do art. 166, II, é a nulidade do
negócio jurídico firmado. Importante lembrar que existe algum consenso,
no meio doutrinário, quanto ao reconhecimento de um quarto caractere,
mesmo sem previsão legal: o da patrimonialidade. A questão comporta
interessante polêmica científica, que será abordada no momento oportuno.
A primeira exigência do inciso II do art. 104 do Código é que o objeto
seja lícito, ou seja, que não atente “contra a lei, a moral e os bons
costumes[5]” (GONÇALVES, 2012, p. 42); aquilo
que causa repulsa ao Direito Objetivo (incluindo-se os valores,
princípios e costumes que permeiam o ordenamento), portanto, não pode
ser objeto de uma relação obrigacional. Ficam sob o véu da ilicitude,
por exemplo, as prestações consistentes na entrega de dois quilos de
cocaína (objeto de uma obrigação de dar coisa certa) e no homicídio de
um rival político (objeto de uma obrigação de fazer).
É certo que a identificação dos casos em que a ilicitude se manifesta
através de afronta direta a determinado texto legal não costuma
apresentar grandes problemas; afinal, é de conhecimento geral que o
Direito não é conivente, para usar os casos do parágrafo anterior, com o
comércio de drogas, tampouco com o assassinato de quem quer que seja.
Mais problemática, porém, mostra-se a tarefa de caracterizar como
ilícito o objeto que fere a moral ou os bons costumes, sem previsão
legal expressa; a demonstração da ilicitude, nesses casos, demanda maior
esforço argumentativo do operador do Direito e apurada sensibilidade
quanto ao quadro axiológico adotado pelo ordenamento jurídico e pela
sociedade. Pense-se, por exemplo, no caso de obrigação de fazer,
estabelecida por sujeitos maiores e capazes, cujo objeto consiste na
prestação de serviços sexuais. Ora, a prostituição, em si, não é
legalmente vedada (o que se reprime penalmente é a exploração econômica,
por parte de um terceiro, dessa atividade); deverá o objeto da
obrigação supramencionada, portanto, ser considerado ilícito?
Entendemos que sim; como afirmamos anteriormente, os comportamentos
contrários à moral e aos bons costumes, bem como ao conjunto de valores
do Direito Objetivo, não devem ser por ele protegidos – e a
prostituição, como bem se sabe, não está exatamente de acordo com o
senso moral da sociedade. A exploração sexual do próprio corpo
objetivando a percepção de lucro nunca foi muito bem vista no meio
social; de fato, mesmo as civilizações mais antigas – embora coniventes
com sua prática – não enxergavam a prostituição como um standard
comportamental adequado. Num ordenamento jurídico que consagra a
dignidade da pessoa humana como valor supremo, então, pouco espaço há
para que o Direito conceda a essa atividade econômica proteção jurídica.
Imagine-se, voltando ao exemplo anteriormente mencionado, uma situação
em que A e B, maiores, capazes e não explorados economicamente por
terceiros, estabelecem um contrato de prestação de serviços sexuais,
sendo B devedora na obrigação de fazer (realização da atividade sexual) e
A vinculado à obrigação de dar quantia certa em remuneração ao serviço
prestado. B, porém, desiste de adimplir o compromisso firmado; A,
inconformado, invoca a tutela jurisdicional através de uma ação
cominatória em obrigação de fazer (CUNHA et al, 2010)[6],
exigindo ao Judiciário que conceda a tutela específica da obrigação
assumida por B. Poderá o julgador, com base no art. 461 do Código de
Processo Civil, prezar pelo adimplemento da obrigação e tutelar o
suposto direito material de A à consumação do ato sexual – inclusive com
a fixação de astreintes? Entendemos que não, pois o objeto das
obrigações assumidas é ilícito por contrariar a moral, os bons costumes e
os valores adotados pelo ordenamento jurídico[7].
A segunda característica inerente ao objeto da relação obrigacional é a
possibilidade, entendendo a doutrina que esta se divide em
possibilidade material e possibilidade jurídica. A possibilidade
material é aquela que pode ser depreendida dos dados do plano
ontológico, ou seja, da realidade dos fatos – independentemente da
valoração que lhes é dada pelo Direito. A obrigação de colocar levantar
um caminhão de carga com as mãos, por exemplo, é materialmente
impossível. E, como bem aduz Caio Mário (2011, p. 19), “se o sujeito
passivo deve o que não é possível, em verdade nada deve”.
Note-se que a impossibilidade que aqui abordamos é aquela já existente
quando do estabelecimento dos termos da relação obrigacional; se A e B
se vincularem à prestação mencionada no parágrafo anterior é certo que
já no tempo em que os dois firmaram o compromisso a realização da tarefa
era impossível. Se, porém, a impossibilidade se manifesta em momento
posterior à criação do vínculo obrigacional não há que se falar em
nulidade da relação, mas sim em resolução da mesma. Imagine-se o caso em
que C e D firmam um contrato de compra e venda de um livro antigo e
raro, do qual não existe nenhum outro exemplar; minutos antes da
transação, C, o dono do livro, derruba-o acidentalmente em uma poça de
água, que imediatamente desfaz suas páginas. A prestação era possível
quando do acordo entre as partes; a impossibilidade, nesse caso, foi
superveniente. A solução para tal caso é dada pelo art. 234 do Codex e
consiste, como dissemos, na resolução da obrigação (com eventual
responsabilização do devedor por perdas e danos, quando for o caso).
A possibilidade jurídica, por sua vez, é aquela que deriva da lógica do
Direito, da necessária relação de coerência e harmonia que existe entre
seus institutos. De fato, sendo uno o ordenamento, não há sentido em
permitir que determinadas relações se efetivem à margem desse campo
harmônico. Imagine-se, por exemplo, um negócio jurídico que tenha por
objeto a herança de uma pessoa viva; o instituto da herança, como foi
concebido desde os primórdios do Direito, refere-se ao patrimônio
deixado por uma pessoa que veio a falecer. Ofende a lógica da ciência
jurídica a ideia de alguém possa herdar algo de um indivíduo que ainda
está vivo; a obrigação que tenha por objeto a herança de pessoa que não
morreu, portanto, é nula por impossibilidade jurídica do objeto. Vale
lembrar que, mesmo não sendo necessário, o art. 426 do Código Civil
positivou o preceito aqui exposto, afirmando que “não pode ser objeto de
contrato a herança de pessoa viva”.
Existe uma pequena querela doutrinária quanto à existência de diferença
entre impossibilidade jurídica e ilicitude do objeto. O tema se situa,
realmente, em uma zona cinzenta, e tem relevância mais por seu valor
científico do que pela produção de efeitos práticos – já que, de acordo
com o art. 166, II, do Codex, a consequência para os dois casos é a
nulidade.
Há quem entenda, como Caio Mário (2011, p. 19), que os dois conceitos
são idênticos; diz o renomado professor que ambos “entram na mesma linha
de insubordinação aos preceitos”, sendo, portanto, sinônimos. Ousamos
discordar; enquanto a ilicitude expressa a repulsa do Direito sobre
determinado objeto, a impossibilidade jurídica denota simplesmente que o
mesmo não poderá, sobre certas condições, figurar na relação
obrigacional – sob pena de subverter-se a rattione materiae do
ordenamento. Expliquemo-nos: o instituto jurídico da herança é,
obviamente, reconhecido e admitido pelo Direito – é, de fato, criado por
ele. A transmissão de heranças é um fenômeno jurídico plenamente
válido, só que o mesmo somente poderá ocorrer se atendidos alguns
pressupostos – o primeiro e mais básico deles sendo o falecimento do
antigo titular do patrimônio a ser transmitido.
A ilicitude caminha por vias diferentes, representando a relação de
contrariedade existente entre o objeto da relação obrigacional e o
Direito – sem, porém, subverter a sua lógica. Voltando ao exemplo citado
em parágrafos anteriores: a venda de cocaína é ilícita apenas porque
existe norma proibitiva dessa prática, ou seja, a realização de uma
transação comercial envolvendo a referida droga não ofende a coerência
do ordenamento nem subtrai o sentido de algum de seus institutos – é a
lesividade social da conduta que obriga o Direito a vedá-la. Também é
oportuno salientar que a violação a princípios referentes à moral e aos
bons costumes pode levar à ilicitude do objeto – não, porém, à sua
impossibilidade jurídica (GONÇALVES, 2012, p. 42).
A última característica do objeto da relação obrigacional prevista no
art. 104 do Código é a determinabilidade. Assim como acontece com os
elementos subjetivos (tópico 2, supra), não é necessário que o objeto
esteja determinado já no momento da gênese da obrigação; o que se veda,
porém, é que ele seja completamente indeterminado. Novamente, a fonte da
obrigação deve fornece o critério para que se determine até o momento
de sua execução qual o objeto da mesma. O exemplo clássico de objeto
inicialmente indeterminado lembrado pela doutrina é aquele presente nas
obrigações de dar coisa incerta, que vem indicado apenas pelo gênero e
pela quantidade (art. 243 do Código).
Por fim, além dos caracteres elencados no inciso II art. 104, parte da
doutrina civilista entende que a patrimonialidade também constitui
conceito inerente ao objeto da relação obrigacional. O argumento
principal dessa corrente doutrinária é o de que, ocorrendo o
inadimplemento da obrigação, o credor terá direito a buscar no
patrimônio do devedor relapso o equivalente pecuniário à prestação
combinada, bem como eventual reparação por prejuízos causados.
Entendemos ser mais adequado o raciocínio oposto; como bem expressam
Rosenvald e Farias (2012, p. 78 e s.), a possibilidade de apreciar
economicamente a relação está mais diretamente relacionada à
responsabilidade do devedor (a haftung da cátedra de Alois Brinz), sendo
inadequado caracterizar o objeto através de um instituto jurídico que
não é de sua essência – a responsabilização patrimonial do devedor
inadimplente. Em interessante síntese do assunto, Rafael Rodrigues[8]
afirma que a possibilidade de atribuir uma estimativa econômica ao
objeto da relação obrigacional é de extrema importância para lhe
conferir estabilidade e coercibilidade, mas não para definir a natureza
do próprio objeto.
O Código Civil Português, em seu art. 398, expressamente aderiu a essa
tese, afirmando que “a prestação não necessita de ter valor pecuniário.
Mas deve corresponder a um interesse do credor, digno de proteção
legal”.
MOTTA, Thiago de Lucena. Elementos da relação obrigacional: uma abordagem estrutural. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3515, 14 fev. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23715>. Acesso em: 15 fev. 2013.
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