sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Sujeitos da relação obrigacional

Como bem afirmam Nelson Rosenvald e Cristiano de Farias (2012, p. 71), toda relação jurídica é protagonizada por sujeitos, sendo estranha ao ordenamento jurídico a possibilidade de obrigação entre dois patrimônios. É imperioso admitir que a massa patrimonial dos sujeitos é que responde pelo eventual inadimplemento do compromisso fixado, sem dúvida; isso, porém, não significa dizer que é entre os seus patrimônios que se estabelece o vínculo jurídico. Tal concepção, embora relativamente aceita no meio doutrinário dos séculos XIX e início do século XX, deve ser rechaçada por afrontar diretamente a lógica da Teoria Geral do Direito, que não visualiza relação jurídica senão entre sujeitos – capazes de direitos e deveres.
O elemento subjetivo da obrigação é, portanto, formado pelos sujeitos que a estabelecem, que definem a prestação que será seu objeto e, de acordo com cada caso, definem outras regras pelas quais deverá se pautar a relação. Podem ser sujeitos pessoas físicas, jurídicas (de direito público e privado) e até mesmo entes despersonalizados, como as sociedades de fato e os condomínios edilícios. Estes, por exemplo, são credores nas obrigações propter rem dos condôminos de contribuir com o pagamento das taxas condominiais para a conservação da coisa comum; por outro lado, são devedores nas obrigações de dar quantia certa aos funcionários que zelam por sua limpeza e segurança.
Podemos reforçar a afirmação do parágrafo anterior recorrendo ao art. 12 do Código de Processo Civil, que em seus incisos VII e IX dispõe, respectivamente, sobre a representação em juízo das sociedades de fato e dos condomínios; ora, se o Direito estende a tais entes desprovidos de personalidade jurídica a possibilidade de figurar como polo da relação processual, verdadeiro contrassenso seria negar-lhes a possibilidade de agir como sujeito de obrigações.
É importante salientar que o elemento subjetivo da relação obrigacional é dúplice: ele constitui-se de um polo ativo, ao qual se convencionou denominar “credor”, e de um passivo, que recebeu o nome de “devedor”. O ativo é aquele que pode exigir a prestação combinada quando do estabelecimento da obrigação, sendo-lhe facultada a mobilização do aparato coercitivo do Estado nos casos em que ela não for espontaneamente adimplida; o passivo é o que se encontra adstringido ao referido adimplemento, respondendo por ele com seu patrimônio.
Note-se que raramente, em um dado negócio jurídico, os envolvidos ocuparão apenas um dos polos que mencionamos; o mais comum é que eles interajam através de múltiplas obrigações, alternando entre as posições de credor e devedor. Imagine-se, por exemplo, o negócio jurídico fixado entre a pessoa física A e a pessoa jurídica B no qual aquela adquire desta um automóvel; do contrato de compra e venda entre eles estabelecido emanam duas obrigações distintas: a de dar coisa certa, em que B é devedor e A credor, e a de dar quantia certa, na qual A é devedor e B é credor.
Como se vê, não há lugar para confusão entre os conceitos de negócio jurídico e obrigação; aquele é fonte desta e, na maioria dos casos, origina diversas obrigações, com sujeitos distintos ocupando os polos ativo e passivo.
A duplicidade do elemento subjetivo não impõe óbices à possibilidade de que figurem, em qualquer dos polos, diversos sujeitos: é o fenômeno que se chama de “pluralidade subjetiva” (LYRA JÚNIOR, 2002)[1]. O legislador de 2002 tinha tal realidade em mente ao tratar das obrigações divisíveis, indivisíveis e solidárias, estabelecendo efeitos distintos para cada uma delas de acordo com o grau de vinculação dos sujeitos ao adimplemento da prestação combinada.
Assim, nas obrigações indivisíveis, por exemplo, poderá o credor demandar de qualquer dos devedores o adimplemento de toda a dívida, segundo a dicção do art. 259 do Código Civil, enquanto nas divisíveis o devedor se liberta do vínculo obrigacional com a prestação de sua quota-parte (art. 257). Já nas obrigações solidárias, conforme a previsão do art. 264, cada um dos devedores está obrigado à dívida inteira – e cada um dos credores tem, sobre toda ela, direito subjetivo. Vale lembrar que as regras atinentes à prescrição também variam de acordo com o regime de pluralidade subjetiva adotado; nem sempre o decurso do lapso prescricional afetará a todos os integrantes de um polo da relação obrigacional da mesma forma. A regra geral, aliás, contida no caput do art. 204, é que isso não ocorra; apenas em algumas situações, de natureza excepcional, a interrupção da prescrição produzirá efeitos para todos os sujeitos de determinado polo – como no caso das obrigações solidárias, regulado pelo § 1° do referido artigo, em que a interrupção afeta a todos os devedores ou credores solidários.
Não há problemas, portanto, no reconhecimento da pluralidade subjetiva. O que se exige, todavia, é que os sujeitos da relação obrigacional sejam, no mínimo, determináveis. Perceba-se que eles não precisam estar, desde o nascimento da obrigação, plenamente determinados; faz-se necessário, porém, que a sua determinação seja possível até o momento do adimplemento da prestação combinada. Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 40) afirma que a fonte da obrigação – na maioria das vezes o negócio jurídico – deve oferecer critérios bastantes para que isso ocorra; o mesmo autor dá o exemplo da promessa de recompensa oferecida por B a quem encontrar um objeto seu que foi perdido. Ora, não é possível a B saber quem encontrará o objeto – o credor da recompensa é, por conseguinte, indeterminado. No entanto, B fornece o critério para saber quem ganhará o galardão prometido, possibilitando a posterior determinação do sujeito ativo da obrigação. Aduz Caio Mário da Silva Pereira (2011, p. 17) que a indeterminação do sujeito passivo é bem menos comum do que a do ativo; de fato, inúmeros são os casos em que se desconhece, inicialmente, o credor da relação obrigacional – as hipóteses da emissão de títulos ao portador e a supracitada promessa de recompensa confirmam essa afirmação –, mas raros aqueles em que o devedor é indeterminado no momento inicial. O referido autor, porém, traz-nos o exemplo do adquirente de um imóvel hipotecado, que responde pela dívida garantida pelo imóvel que adquiriu mesmo que, quando de sua gênese, não fosse devedor.
Em geral, também se exige dos sujeitos da obrigação a capacidade civil para obrigar-se; se incapazes, deverão ser representados ou assistidos, conforme a espécie de incapacidade que sobre eles recai. Nem sempre, porém, a capacidade é requisito para o surgimento válido de uma relação obrigacional; importante exemplo é o do art. 928 do Codex, que dispõe sobre a responsabilização civil dos danos causados por incapazes. Adotamos, aqui, o entendimento de que a responsabilidade civil também é fonte das obrigações (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 123), o que nos leva à conclusão de que o incapaz pode, sim figurar no polo passivo de uma obrigação oriunda de um ilícito civil por ele causado.
Também é oportuno destacar que a condição de credor ou devedor não é estanque; o nosso Direito admite diversas possibilidades em que o status ativo ou passivo assumido por um sujeito em determinada relação obrigacional pode ser transmitido a outrem. É o que ocorre, por exemplo, nos casos da cessão de crédito (CRUZ, 2010)[2], negócio jurídico em que o titular de determinado crédito o cede, bem como os seus acessórios, a um terceiro (denominado cessionário); o cessionário adquire, pois, a posição de credor previamente ocupada pelo cedente, impondo-se o ônus de que o devedor seja comunicado para que a cessão seja eficaz em relação a ele (art. 290 do Codex).
A previsão do parágrafo único do art. 259 do Código, que prevê a sub-rogação do devedor que adimpliu obrigação indivisível na condição de credor frente aos demais coobrigados, também nos parece um exemplo da transmissibilidade do status ativo nas relações obrigacionais.
Modalidade análoga à cessão de crédito, mas com foco no polo passivo da obrigação, é a assunção de dívida; nela, o status de devedor é transmitido a um terceiro que se torna responsável pelo adimplemento da obrigação (GOMES, 2007)[3]. Exige-se, para que seja válida, a anuência do credor – que, aliás, deve ser expressa, uma vez que conforme a dicção do parágrafo único do art. 299 o silêncio do credor deve ser interpretado como negativa à assunção. Protegendo a boa-fé e a honestidade nas relações jurídicas, o texto legal também afirma que se o terceiro que assume a dívida for insolvente (e esse fato não entrar na esfera de conhecimento do credor) a assunção não receberá a proteção do ordenamento jurídico.
Tais hipóteses levaram Caio Mário (2011, p. 16) a afirmar que a regra geral quanto a esse aspecto das relações obrigacionais é a da “transmissibilidade plena”, ou seja, apenas em determinados casos, notadamente excepcionais, a condição de credor ou devedor não poderá ser transmitida. A qualidade de credor de pensão alimentícia, por exemplo, não é transmissível (art. 1707 do Codex), posto que a prestação de alimentos tem por objetivo a satisfação das necessidades mais elementares da pessoa humana; não poderá o sujeito ativo da obrigação, portanto, praticar a cessão de crédito prevista no art. 286. Pensamento diverso induziria ao reconhecimento (constitucionalmente vedado), por vias indiretas, da prisão civil por dívida; imaginemos que se A cedesse a C o crédito oriundo de pensão alimentícia em troca de um quadro de luxo, por exemplo, B, alimentante, poderia ser preso pelo inadimplemento da pensão que, em última instância, foi usada para um fim totalmente diverso daquele incialmente estabelecido[4].
Finalizando o presente tópico, impende ressaltar que a confusão, na mesma pessoa, das qualidades de credor e devedor, extingue a obrigação (conforme expressa previsão do art. 381 do Código Civil).

MOTTA, Thiago de Lucena. Elementos da relação obrigacional: uma abordagem estrutural. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3515, 14 fev. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23715>. Acesso em: 15 fev. 2013.

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