O vinculo jurídico é o elemento abstrato da relação obrigacional e é
aquele que lhe confere exigibilidade e coercibilidade; preza, pois, pelo
cumprimento do compromisso fixado entre os sujeitos em relação a
determinado objeto, lançando a responsabilidade sobre aquele que violar o
acordado. Traduz, por conseguinte, o direito subjetivo do credor de ver
a obrigação adimplida e o dever do devedor de se comportar nessa
direção. É no âmbito do vínculo jurídico que são mais sensíveis as
mudanças e evoluções históricas ocorridas no Direito Obrigacional,
levando em consideração as formas pelas quais o mesmo atribuiu, ao longo
da história, efeitos à inadimplência do devedor.
Como afirmamos no tópico 1, supra, a gênese das relações obrigacionais
na Antiguidade veio acompanhada de métodos bastante drásticos para
assegurar seu adimplemento, haja vista que o devedor que dele se
desviasse estava sujeito a todo tipo de ataques a seus bens jurídicos
mais caros, como a vida e a liberdade. As codificações legais
mesopotâmicas, fortemente inspiradas pelo sentimento religioso da
população local, previam a morte em diversos casos de inadimplemento
obrigacional, enquanto o concurso de credores romano, praticado além do
rio Tibre – certamente para não chamar a atenção da população da capital
do Lácio para o verdadeiro horror que representava –, somava-se às
penas corporais e à possibilidade de utilizar o inadimplente como
escravo, até que a dívida fosse paga com seu trabalho forçado; falecendo
este, lícito era ao credor tomar-lhe até mesmo a esposa e os filhos na
mesma condição.
A extrema valorização dada à satisfação dos compromissos obrigacionais
pelos legisladores antigos foi sucumbindo progressivamente, cedendo
lugar a valores mais importantes – entre nós, a dignidade da pessoa
humana sendo o que demanda maior deferência. Precisava-se, portanto,
encontrar novas formas de manifestação do vínculo jurídico inerente às
obrigações, uma vez que eliminá-lo completamente (ou reduzir a sua
coercibilidade de forma tal que não fosse mais idônea a estimular o
devedor a adimplir voluntariamente a prestação assumida) conduziria a um
verdadeiro colapso nas relações sociais.
Aboliram-se as penas de morte por dívida, bem como a escravidão e, em
momento posterior, as penas corporais; não tardou para que as revoluções
liberais dos séculos XVIII e XIX exigissem, também, o fim da prisão
civil pelo inadimplemento obrigacional. Diante desse novo panorama – e
da necessidade de conciliar a imprescindível coercibilidade das
obrigações com os direitos invioláveis do ser humano –, a solução
encontrada pelo Direito foi a responsabilização patrimonial do devedor;
não honrando ele o compromisso assumido, surgia para o credor a
faculdade de movimentar a máquina estatal e retirar, na massa
patrimonial do devedor, o equivalente àquilo que não foi adimplido
(ANDRADE, 2011)
[9]. As obrigações continuavam,
portanto, cobertas de exigibilidade e atributividade – mas sem violar os
direitos fundamentais do homem.
As doutrinas civilistas clássicas do século XIX não tardaram em
reconhecer no vínculo jurídico obrigacional a sujeição do patrimônio do
devedor ao credor; profundamente influenciadas pelo ideário liberal
burguês de sua época, bem como pelas escolas positivistas mais
tradicionais, é compreensível a sua escolha por essa abordagem dogmática
do tema. Compreensível, porém não mais sustentável; é que o atual
panorama civil-constitucional do ordenamento jurídico pátrio não concebe
os direitos subjetivos privados (como é o do credor em ver o
adimplemento da dívida) de forma absoluta e irrestrita; pelo contrário,
devem eles se harmonizar com outros importantes valores e princípios que
também integram o Direito Objetivo, como a boa-fé e a função social do
exercício de qualquer faculdade.
Disso deriva, por exemplo, a ideia de que determinados bens do
patrimônio do devedor lhe são tão caros e tão essenciais à manutenção de
sua dignidade enquanto pessoa humana que não poderá o credor
subtrai-los quando da execução judicial de uma obrigação não adimplida; é
o caso dos bens de família, cujo tratamento legal é dado pela lei
8.009/90
[10].
Perceba-se a notável evolução científica quanto à evolução da extensão
do vínculo jurídico, que ocorreu paralelamente à progressão na
valorização e proteção dos direitos fundamentais do homem: em um estágio
inicial, o descumprimento de um compromisso patrimonial poderia custar a
vida do responsável; depois, passou-se à restrição de sua liberdade e
violações à sua integridade física; com as revoluções liberais da Idade
Moderna, nasceu a concepção de total sujeição do patrimônio do sujeito
passivo em relação ao ativo da obrigação; por fim, no estágio atual de
desenvolvimento jurídico, apenas determinadas parcelas do patrimônio do
devedor encontram-se à disposição do credor para fins de
responsabilização por inadimplemento obrigacional.
Vale salientar, todavia, que existem casos especialíssimos em que a
proteção de valores constitucionais de extrema relevância justifica
maiores restrições no âmbito de liberdade do devedor inadimplente,
culminando com o seu recolhimento a estabelecimento prisional; a
Constituição Federal prevê duas hipóteses em que isso pode ocorrer,
quais sejam, a ocorrência do chamado “depositário infiel” e o
inadimplemento voluntário e inescusável de pensão alimentícia. A
primeira delas, em virtude da posterior assinatura do Pacto de São José
da Costa Rica, não é mais aplicável no Direito pátrio; a segunda, porém,
tem plena aplicação e destina-se a salvaguardar as necessidades mais
básicas do ser humano – as alimentares –, o que serve de espeque para
justificar tão drástica intervenção na esfera jurídica do devedor.
Compreendendo, diante de toda a evolução histórica que expusemos, que o
vínculo jurídico obrigacional não pode ser irrestrito, podemos
estabelecer dois limites à sua extensão (PEREIRA, 2011, p. 24). O
primeiro deles refere-se à liberdade individual do devedor – mais do que
isso, entendemos que também diz respeito à sua dignidade. O
estabelecimento de uma obrigação não pode privar o sujeito passivo do
exercício do núcleo essencial de seus direitos fundamentais, tampouco
restringir seu patrimônio de forma tal que coloque em risco a segurança
de suas necessidades básicas. É lógico que a assunção de um compromisso
obrigacional implica redução na esfera de direitos do devedor; não é
admissível, porém, que essa redução atinja dimensões desproporcionais e
dissonantes do quadro axiológico defendido pelo ordenamento jurídico. O
segundo limite concerne à seriedade da prestação combinada; para
justificar a restrição na liberdade individual do devedor – e, por uma
questão de economia processual, a mobilização do aparato coator do
Estado – faz-se necessário que o objeto da obrigação revista-se de um
mínimo de relevância. Fórmulas apriorísticas para averiguar esse patamar
mínimo são, de fato, inalcançáveis; cabe ao julgador, diante das
circunstâncias do caso concreto, determinar se a relação obrigacional
que lhe foi trazida para análise é significante o suficiente para chamar
sobre si a atividade jurisdicional do Estado.
Tendo compreendido os limites do vínculo obrigacional, imperioso é
compreender quais são os elementos que o formam. A análise estrutural
clássica, empreendida pelo civilista alemão Alois von Brinz, enxerga no
vínculo jurídico dois componentes distintos: o débito e a
responsabilidade (SALIM, 2005, p. 99). O primeiro consiste no dever de
adimplir a prestação combinada; o segundo, na garantia de que o
patrimônio do sujeito passivo responderá pelo eventual inadimplemento da
obrigação. A responsabilidade é, como diz Caio Mário (2011, p. 25), um
estado potencial: ela atua de forma coercitiva sobre o devedor,
impulsionando-o ao adimplemento espontâneo da relação obrigacional
estabelecida. Não sendo tal coerção psicológica suficiente, porém,
confere ao credor a possibilidade de buscar no patrimônio do sujeito
passivo a satisfação de seus interesses.
Nada impede que o débito e a responsabilidade recaiam sobre pessoas
diversas – apesar de, em geral, os dois se apresentarem juntos; é o que
acontece, por exemplo, na fiança, em que um indivíduo assume a
responsabilidade sobre o débito contraído por outro. Devemos lembrar,
também, que não é necessário que os dois se façam presentes para que se
configure uma relação obrigacional – é o caso da espécie sui generis das
obrigações naturais.
O trabalho doutrinário de Brinz certamente é útil para entender os
elementos que formam a concepção tradicional de vínculo jurídico, mas é
falho quando transportado ao hodierno tratamento dado à matéria pelo
Direito Civil brasileiro, profundamente inspirado pelos valores
constitucionais e atento à importantíssima cláusula da boa-fé objetiva.
Dessa forma, o vetusto binômio débito-responsabilidade deve ser relido à
luz dos novos paradigmas da esfera civil-constitucional – e um dos mais
importantes para os fins da presente exposição é a ideia de “obrigação
como processo” (OLIVEIRA, 2010)
[11].
Tal concepção representa uma visão finalista da relação obrigacional,
ou seja, visualiza a obrigação sob a ótica do fim a que ela se destina –
o adimplemento. Entendendo-a como um processo que objetiva a consecução
de determinado fim, impõe-se que se acrescente à tradicional concepção
de vínculo jurídico um conceito novo: o da cooperação entre as partes.
De fato, é inegável que o adimplemento da obrigação será mais facilmente
atingido se as partes trabalharem conjuntamente com esse escopo, sem
uma relação de subordinação ou sujeição entre elas; a mera vinculação do
devedor ao credor não é capaz de acompanhar as exigências da boa-fé
objetiva, sendo necessário o seu aperfeiçoamento com a ideia de
cooperação.
Nesse sentido, já decidiu o STJ que o credor deve fazer o possível para
mitigar os próprios prejuízos (princípio do “duty to mitigate the
loss”, importado do Direito norte-americano), não contribuindo para que
uma situação lesiva aos seus interesses – e, portanto, ao adimplemento
da obrigação – se perpetue. A decisão está assim ementada:
“DIREITO CIVIL. CONTRATOS. BOA-FÉ OBJETIVA. STANDARD ÉTICO-JURÍDICO.
OBSERVÂNCIA PELAS PARTES CONTRATANTES. DEVERES ANEXOS. DUTY TO MITIGATE
THE LOSS. DEVER DE MITIGAR O PRÓPRIO PREJUÍZO. INÉRCIA DO CREDOR.
AGRAVAMENTO DO DANO. INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. RECURSO IMPROVIDO.”
(STJ, T3 – Terceira Turma, REsp 758518 PR 2005/0096775-4, rel. min.
Vasco Giustina, j. 17/06/2010).
Não se justifica, portanto, que o credor assista inerte ao
inadimplemento da prestação combinada, permitindo que os prejuízos daí
oriundos se agravem para, em momento posterior, intentar a sua reparação
– em clara violação ao princípio da boa-fé objetiva. O novo standard
comportamental exigido das partes em uma relação obrigacional,
consequentemente, não pode se limitar à sujeição devedor-credor; pelo
contrário, todos os sujeitos devem se portar de forma proativa e voltada
à consecução do fim máximo que os levou à vinculação jurídica mútua: o
adimplemento da obrigação.
No mesmo sentido da linha argumentativa aqui exposta, o TJ/RJ
considerou que violava a boa-fé objetiva o comportamento do credor,
diante da imposição de astreintes ao devedor (como medida coercitiva
para a realização de determinada prestação), de esperar a soma total da
multa diária atingir valores exorbitantes para só então demandar o
Judiciário, visando obter vantagem econômica através do sacrifício do
adimplemento da obrigação
[12].
venho,através desta aula obter uma ampla visão de saber o significado de direitos obrigacional,que me coloca num conhecimento fantástico dessa matéria!
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