sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O vinculo jurídico na obrigações


O vinculo jurídico é o elemento abstrato da relação obrigacional e é aquele que lhe confere exigibilidade e coercibilidade; preza, pois, pelo cumprimento do compromisso fixado entre os sujeitos em relação a determinado objeto, lançando a responsabilidade sobre aquele que violar o acordado. Traduz, por conseguinte, o direito subjetivo do credor de ver a obrigação adimplida e o dever do devedor de se comportar nessa direção. É no âmbito do vínculo jurídico que são mais sensíveis as mudanças e evoluções históricas ocorridas no Direito Obrigacional, levando em consideração as formas pelas quais o mesmo atribuiu, ao longo da história, efeitos à inadimplência do devedor.
Como afirmamos no tópico 1, supra, a gênese das relações obrigacionais na Antiguidade veio acompanhada de métodos bastante drásticos para assegurar seu adimplemento, haja vista que o devedor que dele se desviasse estava sujeito a todo tipo de ataques a seus bens jurídicos mais caros, como a vida e a liberdade. As codificações legais mesopotâmicas, fortemente inspiradas pelo sentimento religioso da população local, previam a morte em diversos casos de inadimplemento obrigacional, enquanto o concurso de credores romano, praticado além do rio Tibre – certamente para não chamar a atenção da população da capital do Lácio para o verdadeiro horror que representava –, somava-se às penas corporais e à possibilidade de utilizar o inadimplente como escravo, até que a dívida fosse paga com seu trabalho forçado; falecendo este, lícito era ao credor tomar-lhe até mesmo a esposa e os filhos na mesma condição.
A extrema valorização dada à satisfação dos compromissos obrigacionais pelos legisladores antigos foi sucumbindo progressivamente, cedendo lugar a valores mais importantes – entre nós, a dignidade da pessoa humana sendo o que demanda maior deferência. Precisava-se, portanto, encontrar novas formas de manifestação do vínculo jurídico inerente às obrigações, uma vez que eliminá-lo completamente (ou reduzir a sua coercibilidade de forma tal que não fosse mais idônea a estimular o devedor a adimplir voluntariamente a prestação assumida) conduziria a um verdadeiro colapso nas relações sociais.
Aboliram-se as penas de morte por dívida, bem como a escravidão e, em momento posterior, as penas corporais; não tardou para que as revoluções liberais dos séculos XVIII e XIX exigissem, também, o fim da prisão civil pelo inadimplemento obrigacional. Diante desse novo panorama – e da necessidade de conciliar a imprescindível coercibilidade das obrigações com os direitos invioláveis do ser humano –, a solução encontrada pelo Direito foi a responsabilização patrimonial do devedor; não honrando ele o compromisso assumido, surgia para o credor a faculdade de movimentar a máquina estatal e retirar, na massa patrimonial do devedor, o equivalente àquilo que não foi adimplido (ANDRADE, 2011)[9]. As obrigações continuavam, portanto, cobertas de exigibilidade e atributividade – mas sem violar os direitos fundamentais do homem.
As doutrinas civilistas clássicas do século XIX não tardaram em reconhecer no vínculo jurídico obrigacional a sujeição do patrimônio do devedor ao credor; profundamente influenciadas pelo ideário liberal burguês de sua época, bem como pelas escolas positivistas mais tradicionais, é compreensível a sua escolha por essa abordagem dogmática do tema. Compreensível, porém não mais sustentável; é que o atual panorama civil-constitucional do ordenamento jurídico pátrio não concebe os direitos subjetivos privados (como é o do credor em ver o adimplemento da dívida) de forma absoluta e irrestrita; pelo contrário, devem eles se harmonizar com outros importantes valores e princípios que também integram o Direito Objetivo, como a boa-fé e a função social do exercício de qualquer faculdade.
Disso deriva, por exemplo, a ideia de que determinados bens do patrimônio do devedor lhe são tão caros e tão essenciais à manutenção de sua dignidade enquanto pessoa humana que não poderá o credor subtrai-los quando da execução judicial de uma obrigação não adimplida; é o caso dos bens de família, cujo tratamento legal é dado pela lei 8.009/90[10].
Perceba-se a notável evolução científica quanto à evolução da extensão do vínculo jurídico, que ocorreu paralelamente à progressão na valorização e proteção dos direitos fundamentais do homem: em um estágio inicial, o descumprimento de um compromisso patrimonial poderia custar a vida do responsável; depois, passou-se à restrição de sua liberdade e violações à sua integridade física; com as revoluções liberais da Idade Moderna, nasceu a concepção de total sujeição do patrimônio do sujeito passivo em relação ao ativo da obrigação; por fim, no estágio atual de desenvolvimento jurídico, apenas determinadas parcelas do patrimônio do devedor encontram-se à disposição do credor para fins de responsabilização por inadimplemento obrigacional.
Vale salientar, todavia, que existem casos especialíssimos em que a proteção de valores constitucionais de extrema relevância justifica maiores restrições no âmbito de liberdade do devedor inadimplente, culminando com o seu recolhimento a estabelecimento prisional; a Constituição Federal prevê duas hipóteses em que isso pode ocorrer, quais sejam, a ocorrência do chamado “depositário infiel” e o inadimplemento voluntário e inescusável de pensão alimentícia. A primeira delas, em virtude da posterior assinatura do Pacto de São José da Costa Rica, não é mais aplicável no Direito pátrio; a segunda, porém, tem plena aplicação e destina-se a salvaguardar as necessidades mais básicas do ser humano – as alimentares –, o que serve de espeque para justificar tão drástica intervenção na esfera jurídica do devedor.
Compreendendo, diante de toda a evolução histórica que expusemos, que o vínculo jurídico obrigacional não pode ser irrestrito, podemos estabelecer dois limites à sua extensão (PEREIRA, 2011, p. 24). O primeiro deles refere-se à liberdade individual do devedor – mais do que isso, entendemos que também diz respeito à sua dignidade. O estabelecimento de uma obrigação não pode privar o sujeito passivo do exercício do núcleo essencial de seus direitos fundamentais, tampouco restringir seu patrimônio de forma tal que coloque em risco a segurança de suas necessidades básicas. É lógico que a assunção de um compromisso obrigacional implica redução na esfera de direitos do devedor; não é admissível, porém, que essa redução atinja dimensões desproporcionais e dissonantes do quadro axiológico defendido pelo ordenamento jurídico. O segundo limite concerne à seriedade da prestação combinada; para justificar a restrição na liberdade individual do devedor – e, por uma questão de economia processual, a mobilização do aparato coator do Estado – faz-se necessário que o objeto da obrigação revista-se de um mínimo de relevância. Fórmulas apriorísticas para averiguar esse patamar mínimo são, de fato, inalcançáveis; cabe ao julgador, diante das circunstâncias do caso concreto, determinar se a relação obrigacional que lhe foi trazida para análise é significante o suficiente para chamar sobre si a atividade jurisdicional do Estado.
Tendo compreendido os limites do vínculo obrigacional, imperioso é compreender quais são os elementos que o formam. A análise estrutural clássica, empreendida pelo civilista alemão Alois von Brinz, enxerga no vínculo jurídico dois componentes distintos: o débito e a responsabilidade (SALIM, 2005, p. 99). O primeiro consiste no dever de adimplir a prestação combinada; o segundo, na garantia de que o patrimônio do sujeito passivo responderá pelo eventual inadimplemento da obrigação. A responsabilidade é, como diz Caio Mário (2011, p. 25), um estado potencial: ela atua de forma coercitiva sobre o devedor, impulsionando-o ao adimplemento espontâneo da relação obrigacional estabelecida. Não sendo tal coerção psicológica suficiente, porém, confere ao credor a possibilidade de buscar no patrimônio do sujeito passivo a satisfação de seus interesses.
Nada impede que o débito e a responsabilidade recaiam sobre pessoas diversas – apesar de, em geral, os dois se apresentarem juntos; é o que acontece, por exemplo, na fiança, em que um indivíduo assume a responsabilidade sobre o débito contraído por outro. Devemos lembrar, também, que não é necessário que os dois se façam presentes para que se configure uma relação obrigacional – é o caso da espécie sui generis das obrigações naturais.
O trabalho doutrinário de Brinz certamente é útil para entender os elementos que formam a concepção tradicional de vínculo jurídico, mas é falho quando transportado ao hodierno tratamento dado à matéria pelo Direito Civil brasileiro, profundamente inspirado pelos valores constitucionais e atento à importantíssima cláusula da boa-fé objetiva. Dessa forma, o vetusto binômio débito-responsabilidade deve ser relido à luz dos novos paradigmas da esfera civil-constitucional – e um dos mais importantes para os fins da presente exposição é a ideia de “obrigação como processo” (OLIVEIRA, 2010) [11].
Tal concepção representa uma visão finalista da relação obrigacional, ou seja, visualiza a obrigação sob a ótica do fim a que ela se destina – o adimplemento. Entendendo-a como um processo que objetiva a consecução de determinado fim, impõe-se que se acrescente à tradicional concepção de vínculo jurídico um conceito novo: o da cooperação entre as partes. De fato, é inegável que o adimplemento da obrigação será mais facilmente atingido se as partes trabalharem conjuntamente com esse escopo, sem uma relação de subordinação ou sujeição entre elas; a mera vinculação do devedor ao credor não é capaz de acompanhar as exigências da boa-fé objetiva, sendo necessário o seu aperfeiçoamento com a ideia de cooperação.
Nesse sentido, já decidiu o STJ que o credor deve fazer o possível para mitigar os próprios prejuízos (princípio do “duty to mitigate the loss”, importado do Direito norte-americano), não contribuindo para que uma situação lesiva aos seus interesses – e, portanto, ao adimplemento da obrigação – se perpetue. A decisão está assim ementada:
“DIREITO CIVIL. CONTRATOS. BOA-FÉ OBJETIVA. STANDARD ÉTICO-JURÍDICO. OBSERVÂNCIA PELAS PARTES CONTRATANTES. DEVERES ANEXOS. DUTY TO MITIGATE THE LOSS. DEVER DE MITIGAR O PRÓPRIO PREJUÍZO. INÉRCIA DO CREDOR. AGRAVAMENTO DO DANO. INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. RECURSO IMPROVIDO.” (STJ, T3 – Terceira Turma, REsp 758518 PR 2005/0096775-4, rel. min. Vasco Giustina, j. 17/06/2010).
Não se justifica, portanto, que o credor assista inerte ao inadimplemento da prestação combinada, permitindo que os prejuízos daí oriundos se agravem para, em momento posterior, intentar a sua reparação – em clara violação ao princípio da boa-fé objetiva. O novo standard comportamental exigido das partes em uma relação obrigacional, consequentemente, não pode se limitar à sujeição devedor-credor; pelo contrário, todos os sujeitos devem se portar de forma proativa e voltada à consecução do fim máximo que os levou à vinculação jurídica mútua: o adimplemento da obrigação.
No mesmo sentido da linha argumentativa aqui exposta, o TJ/RJ considerou que violava a boa-fé objetiva o comportamento do credor, diante da imposição de astreintes ao devedor (como medida coercitiva para a realização de determinada prestação), de esperar a soma total da multa diária atingir valores exorbitantes para só então demandar o Judiciário, visando obter vantagem econômica através do sacrifício do adimplemento da obrigação[12].

MOTTA, Thiago de Lucena. Elementos da relação obrigacional: uma abordagem estrutural. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3515, 14 fev. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23715>. Acesso em: 15 fev. 2013.

Um comentário:

  1. venho,através desta aula obter uma ampla visão de saber o significado de direitos obrigacional,que me coloca num conhecimento fantástico dessa matéria!

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