A necessidade de se manter a imparcialidade do magistrado no novo Código de Processo Civil
Tem-se sustentado que as críticas formuladas ao projeto de lei do Novo CPC são genéricas e, portanto, contraproducentes. Sem querer fundamentar argumentos de outras vozes, parece-nos importante formular aqui uma crítica construtiva ao projeto, pontuando as inovações sugeridas que trazem em si desequilíbrios ao devido processo legal.
Ao negar a existência de dispositivos do projeto que trariam excessivos poderes aos juízes, membros da Comissão de Juristas que deu origem ao respectivo anteprojeto, em artigo publicado ao término do ano legislativo ("Que poder é esse?"), afirmaram que a tutela de ofício disciplinada no PL 8.046/2010 seria idêntica àquela disposta no atual Código de Processo Civil em vigor, de 1973, pois serviria para "preservar o objeto material do litígio". No entanto, tal afirmação não corresponde à realidade do projeto.
É assente na doutrina que a medida judicial própria a preservar o objeto material do litígio e, como consequência, a eficácia do processo, é a medida cautelar – inerente ao poder geral de cautela do juiz. A antecipação de tutela, diversamente, visa a antecipar o direito pleiteado pelo autor. Esse instituto jurídico foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro em 1994 justamente para inibir o desvirtuamento da medida cautelar, que vinha sendo utilizada equivocadamente com natureza satisfativa.
Ocorre que o projeto do novo CPC introduz uma nova categorização das tutelas. As medidas satisfativas e cautelares, apesar de terem naturezas distintas e assim serem definidas no projeto (art. 269, §§1º e 2º), submetem-se a disciplinas idênticas (artigos 276 e 277), notadamente no que diz respeito aos requisitos para a sua concessão. As tutelas são diferenciadas sobretudo como de urgência – quando houver necessidade de demonstração de risco de dano irreparável ou de difícil reparação – ou de evidência, quando tal risco for presumido.
Assim é que, ao disciplinar conjuntamente as tutelas de urgência cautelares e satisfativas, o projeto admite tanto a concessão de ofício das medidas que visem a preservar a eficácia do processo, quanto das que antecipem o direito pleiteado pelo autor (artigo 277).
Faz sentido admitir a concessão de ofício das medidas que visem a preservar a eficácia do processo - bem jurídico de interesse público e que cabe ao Estado-juiz resguardar. O que é absolutamente irrazoável é permitir a concessão de ofício das medidas que visem a antecipar o pedido do autor, pois o interesse na sua concessão é única e exclusivamente da parte – bem jurídico de interesse privado e que cabe à própria parte – e só a ela – resguardar. É este o ponto central da crítica. É aqui que o projeto concede poder excessivo ao juiz, rompendo o paradigma estrutural do processo: a isenção do julgador, expressão do devido processo legal. É este o ponto que precisa ser alterado.
O Estado-juiz não pode ser autorizado a definir o que é de interesse da parte para além do que ela mesma deduza como pretensão em juízo e, ato-contínuo, concedê-lo. Nem mesmo o CDC, lei concebida para proteger uma das partes, chegou a esse extremo. O consumidor tem uma gama extensa de direitos, mas nela não se inclui o direito de ter sua pretensão formulada e decidida ao mesmo tempo pelo Estado-Juiz. Vamos devagar com este andor! Inquestionável a exacerbação de poderes conferidos expressamente ao juiz pelo proposto artigo 277.
Nessa mesma linha, o artigo 270 do projeto autoriza o juiz a determinar as medidas que considerar adequadas para preservar o direito ameaçado de lesão grave ou de difícil reparação. Aqui não se deixa claro, mas o dispositivo dá margem à interpretação de que tais medidas poderiam ser concedidas de ofício pelo juiz. Tal dispositivo precisa ser alterado para que se esclareça que qualquer antecipação de direito deve ser condicionada ao pedido da parte interessada, pelas mesmas razões indicadas acima.
Ainda quando haja pedido da parte para a concessão da tutela, o projeto foi vago ao elencar os seus parâmetros, estabelecendo critérios insuficientes para que o juiz forme sua opinião e fundamente sua decisão. Retirou-se do CPC de 1973 a exigência de verossimilhança da alegação, deixando ao sabor do juiz considerar "plausível" o direito alegado. Pior: suprimiu-se a salvaguarda da irreversibilidade do provimento existente no art. 273, §3º. Isto é, pelo projeto, será possível antecipar os efeitos da decisão final sem pedido da parte, com base em um mero juízo de "plausibilidade", não importando se o provimento relevar-se irreversível! Ou seja, uma disciplina totalmente desequilibrada e imprudente.
Podemos, por fim, referir-nos ao art. 358 como mais um dispositivo que extrapola os limites do devido processo legal ao conceder poderes de administração do processo ao juiz. Ao prever a possibilidade de inversão do ônus da prova, o artigo não estabelece qualquer parâmetro ou orientação – para as partes e para o juiz – de como e em que casos essa medida poderá ocorrer. Diversamente do CDC, que, mesmo sendo diploma legal reveladamente protecionista, estabelece os requisitos da hipossuficiência do consumidor e da verossimilhança das alegações para que se possa operar a inversão, o projeto em comento não fixa quaisquer condições para que o juiz possa distribuir de modo diverso o ônus da prova.
Esses são, enfim, os principais pontos que respondem ao questionamento feito no artigo "Que poder é esse?" e que entendemos devam ser objeto de revisão pela Comissão encarregada do assunto na Câmara dos Deputados.
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*Fernanda de Albuquerque Maranhão Burle é advogada associada do escritório Mattos Muriel Kestener Advogados
http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI151399,91041-Poderes+do+juiz+x+tutelas+de+urgencia+a+necessidade+de+se+manter+a
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