O dispositivo em testilha, ante sua objetividade textual, não traz
maiores questionamentos. De outro lado, peca por dizer menos do que
deveria, ao menos sob o viés constitucional de proteção à família e à
criança.
Quer-se dizer que, ao fazer referência expressa à presunção de filiação
durante a constância do casamento, o legislador perdeu a oportunidade
de garantir idêntica proteção aos filhos nascidos durante a constância
de uma união estável. Desta forma, há aparente tratamento desigual em
situações iguais. Diz-se aparente porque, numa interpretação do
dispositivo em comento, sob filtragem constitucional, a presunção deve
incidir em ambas as situações, sob pena de cometer-se odiosa injustiça.
Basta a análise do seguinte exemplo para se enxergar a necessidade da
aplicação do artigo 1.597 do Código Civil às uniões estáveis. Imagine-se
que uma mulher viveu em união estável - comprovada por escritura
pública lavrada no tabelionato de notas - por dez anos com seu
companheiro, o qual faleceu e deixou três filhos em comum. Dos três
filhos, dois foram reconhecidos e registrados sob a paternidade do
finado. O mais novo, porém, nascido um dia antes do falecimento do pai,
não teve sua paternidade registrada. Se esta mulher fosse casada com o
falecido, quanto a paternidade não haveria maiores problemas, pois, por
influxo de expressa disposição legal, o fato se adequaria à hipótese
normativa abstratamente prevista. Todavia, como no exemplo dado a mulher
não mantinha vínculo
matrimonial com
o falecido, poderia ser sustentado que diante da falta de previsão
legal seria necessário o ajuizamento de ação de investigação de
paternidade post mortem. Entretanto, como adiante se verá, esta não é a
solução adequada.
A Constituição da República de 1988 conferiu tratamento ímpar à família
e, expressamente, elegeu a união estável à condição de entidade
familiar, senão, veja-se:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união
estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei
facilitar sua conversão em casamento.
A leitura do dispositivo acima conduz o intérprete à conclusão de que o
casamento e a união estável devem receber idêntica proteção estatal. E a
conclusão não poderia ser distinta, uma vez que ambos são espécies do
gênero instituição familiar. Tamanha é a importância da união estável
que o legislador constituinte, prevendo a possibilidade do intérprete
fazer distinções de tratamentos irrazoáveis entre o casamento e a união
estável, previu explicitamente em relação a esta a proteção do Estado.
Veja que a previsão contida no § 3º em relação à proteção estatal da
união estável não se repetiu em relação ao casamento, embora pareça
óbvio que o casamento indiscutivelmente receberá a proteção do Estado.
Pensamos que ao legislador constituinte pareceu que a obviedade da
proteção conferida ao casamento poderia não se repetir quando do trato
da união estável. Por isso, com o fim de não deixar margens às dúvidas,
foi expresso e claro.
A proteção à família insculpida no texto constitucional vai ao encontro
da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República
Federativa do Brasil. Observe-se que somente haverá dignidade se todas
as formas de arranjos familiares forem reconhecidos e protegidos pelo
Estado. O princípio da dignidade da pessoa humana, portanto, abre o
conceito de família(s).
Sem a pretensão de adentrar nos diversos arranjos familiares
(socioafetivo, homoafetivo, monoparental, anaparental, pluriparental
etc), que não são o enfoque desta breve análise, vamos nos delimitar à
união estável formada entre homem e mulher. A união estável é definida
pelo artigo 1.723 do Código Civil nos seguintes moldes:
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre
o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e
duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Deflagra-se da norma acima que a união estável, sob o prisma
sociológico, identifica-se com o casamento. Ora, se o cotidiano da nossa
sociedade demonstra que no plano fático a união se equipara ao
casamento, posto que é configurada na convivência pública, contínua e
duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família, não
cabe ao legislador, muito menos ao exegeta, negar esta realidade.
Não cabe ao intérprete negar aquilo que o legislador constituinte
expressamente determinou, ou seja, a proteção tanto do casamento quanto
da união estável.
Importante considerar que não é a formalidade do casamento que faz
presumir filiação, mas sim a situação fática, a coabitação do casal.
Tanto é verdade que a presunção de filiação permanece intacta ainda que o
casamento venha a ser declarado nulo ou se trate de casamento putativo.
Art. 1.561. Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por
ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos,
produz todos os efeitos até o dia da sentença anulatória.
§ 1o Se um dos cônjuges estava de boa-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só a ele e aos filhos aproveitarão.
§ 2o Se ambos os cônjuges estavam de má-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só aos filhos aproveitarão.
E se o legislador optou por dar maior proteção à situação fática no
casamento, mesmo raciocínio deve ser empregado em relação à união
estável. É por isso que onde houver a mesma razão, aplica-se o mesmo
direito. Portanto, se há a presunção legal da paternidade no casamento,
não há motivos para que esta regra não incida sobre a união estável.
Ao discorrer sobre a possibilidade de presunção legal de paternidade na união estável, leciona Paulo Luiz Netto Lôbo que:
Ainda que o artigo sob comento refira-se à "constância do casamento", a
presunção de filiação, paternidade e maternidade aplica-se
integralmente à união estável. A redação originária do projeto do Código
Civil de 2002 reproduziu a equivalente do Código de 1916, que apenas
contemplava a família constituída pelo casamento e a filiação legítima,
não tendo sido feita a atualização pelo Congresso Nacional ao disposto
no art. 226 da Constituição Federal (AZEVEDO, Álvaro Villaça
(coordenador). Código Civil Comentado: Direito de Família, Relações de
Parentesco, Direito Patrimonial – artigos 1.591 a 1.693. 15 v. São
Paulo: Atlas, 2003. p.59).
A análise de Paulo Lôbo sobre a origem do texto legal denota que o
legislador infraconstitucional, ainda apegado aos vetustos valores da
nossa sociedade passada, não trouxe ao Código Civil a roupagem
constitucional merecida. Aliás, diga-se de passagem, há inúmeros
dispositivos espraiados no dito código que certamente serão alterados
por projetos de leis que tramitam no Congresso Nacional, com o escopo de
adequa-lo à nossa realidade.
É preciso fazer uma interpretação da lei conforme a Constituição da República.
Mais grave ainda do que deixar a união estável desguarnecida, a
interpretação que nega a presunção legal da paternidade à união estável
deixa desprotegida a criança fruto deste relacionamento.
Não há a menor dúvida de que a ratio do artigo 1.597 do Código Civil
não é a proteção ao casamento, mas sim à prole. O objetivo é garantir
que esta criança não fique sem um pai reconhecido e que este
reconhecimento de paternidade seja feito sem burocracia e
questionamentos. A paternidade é relativamente presumida. Relativa
porque admite prova em contrário, que deverá ser produzida por quem
alegar estado contrário à presunção legal.
Perceba-se que o foco legal é justamente evitar que a criança, que foi
concebida durante o período de convivência entre seus genitores, seja
submetida a um longo e tormentoso processo judicial de investigação de
paternidade.
Do mesmo modo que a união estável, a proteção à criança tem status
constitucional e cabe à família, à sociedade e ao Estado efetivar esta
proteção com prioridade absoluta.
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão.
Atento a questão que aqui discutimos, o Superior Tribunal de Justiça publicou
recentemente acórdão enfrentando esta matéria. No caso concreto,
reconheceu a presunção da paternidade de prole concebida na constância
de união estável.
DIREITO CIVIL. UNIÃO ESTÁVEL. PRESUNÇÃO DE CONCEPÇÃO DE FILHOS. A
presunção de concepção dos filhos na constância do casamento prevista no
art. 1.597, II, do CC se estende à união estável. Para a identificação
da união estável como entidade familiar, exige-se a convivência pública,
contínua e duradoura estabelecida com o objetivo de constituição de
família com atenção aos deveres de lealdade, respeito, assistência, de
guarda, sustento e educação dos filhos em comum. O art. 1.597, II, do CC
dispõe que os filhos nascidos nos trezentos dias subsequentes à
dissolução da sociedade conjugal presumem-se concebidos na constância do
casamento. Assim, admitida pelo ordenamento jurídico pátrio (art. 1.723
do CC), inclusive pela CF (art. 226, § 3º), a união estável e
reconhecendo-se nela a existência de entidade familiar, aplicam-se as
disposições contidas no art. 1.597, II, do CC ao regime de união
estável. Precedentes citados do STF: ADPF 132-RJ, DJe 14/10/2011; do
STJ: REsp 1.263.015-RN, DJe 26/6/2012, e REsp 646.259-RS, DJe 24/8/2010.
REsp 1.194.059-SP, Rel. Min. Massami Uyeda, julgado em 6/11/2012.
Por fim, é importante lembrar que para que haja a presunção da
paternidade e o registro do nascimento independentemente do ajuizamento
da ação de investigação de paternidade, imprescindível que haja prova
pré-constituída da união estável, sob pena do ordenamento deixar margens
ao cometimento de fraudes.
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