Há muito se fala em parentalidade socioafetiva. Há muito se discute
sobre qual das modalidades de filiação deve prevalecer. Aliás, será
julgado pelo Supremo Tribunal Federal, recurso que analisa o que deve
preponderar: paternidade biológica ou socioafetiva.[1]
A questão que se coloca é: será sempre necessário ver o tema da
filiação numa lógica de mono ou biparentalidade? Não será possível que
uma alguém tenha mais de duas pessoas que exerçam efetivamente e
afetivamente as funções parentais? Ter-se-á que enxergar a questão
sempre sob uma ótica de substituição ou exclusão, ou será possível que
uma pessoa tenha uma mãe e dois pais, duas mães e um pai ou, até mesmo,
duas mães e dois pais?
Um “lugar comum” de possibilidade de ocorrência da parentalidade
socioafetiva é a denominada família mosaico, que resulta da
multiplicidade das relações parentais oriundas das desuniões e da
reconstituição da vida afetiva dos seus membros, por meio do casamento
ou união estável. A especificidade desse modelo familiar origina-se na
peculiar estrutura do núcleo, formado por pares onde um ou ambos tiveram
uniões ou casamentos anteriores e trazem consigo, para a nova entidade
familiar, seus filhos e, não raras vezes, tem prole comum.
Mas não apenas nesse modelo familiar é possível a existência de
parentalidade socioafetiva. A mesma também estará presente, por exemplo,
em casos de adoção à brasileira, que se configura quando alguém, ciente
de que não é o pai biológico de uma criança, a registra e age como se
seu pai fosse, muito embora a paternidade registral não corresponda à
paternidade genética.
Essas são apenas duas das possibilidades onde a filiação socioafetiva[2]
pode se apresentar e, recentemente, alguns casos foram decididos pelo
Judiciário, evidenciando que a existência de parentalidade socioafetiva
não implica, necessariamente, em uma exclusão da parentalidade biológica
e vice-versa.
No Estado de Rondônia, em lide recente, buscava-se a desconstituição de
uma paternidade registral e o reconhecimento da paternidade genética
por meio de uma ação de investigação de paternidade cumulada com
anulatória de registro civil, em um caso clássico de adoção à
brasileira.
É certo que possuímos um direito fundamental ao conhecimento das
origens genéticas e, ao buscar que a sua realidade registral
correspondesse à realidade biológica, a criança em causa aproximou-se do
pai genético, a partir da realização do exame de DNA e passou a
relacionar-se com ele. Todavia, reconhecia como pai aquele que coabitava
com sua mãe à época do seu nascimento e, mesmo estando ciente que não
era seu pai, registrou-a. Aliás, os vínculos afetivos mostraram-se tão
fortes que a convivência continuou e alargou-se no tempo, mesmo após o
fim da união com sua genitora.
O que fazer em casos como este, onde ambos os pais – biológico e
socioafetivo – se mostram dispostos a exercer a função paterna com zelo e
afeto? Escolher entre um e outro? Não parece ser a resposta mais
razoável e de acordo com o melhor interesse da criança.
Como indicou a magistrada do caso em tela, “pretendida declaração de
inexistência do vínculo parental entre a autora e o pai registro afetivo
fatalmente prejudicará seu interesse, que diga-se, tem prioridade
absoluta, e assim também afronta a dignidade da pessoa humana. Não há
motivo para ignorar o liame socioafetivo estabelecido durante anos na
vida de uma criança, que cresceu e manteve o estado de filha com outra
pessoa que não o seu pai biológico, sem se atentar para a evolução do
conceito jurídico de filiação”.[3]
Assim, ciente de toda a singularidade do caso, considerando as
manifestações da criança, no sentido de que possui dois pais e a vontade
do pai socioafetivo, que não desejava desfazer a parentalidade
constituída, a magistrada acolheu a proposta do MP de reconhecimento de
dupla paternidade registral da infante. Assim, foi mantido no assento de
nascimento o nome do pai socioafetivo e acrescentado o nome do pai
biológico.
Em dois julgados, no Estado de Pernambuco e no Estado do Paraná,
respectivamente, buscava-se o reconhecimento de filiação socioafetiva,
por meio de adoções unilaterais, que implicaria na ruptura do vínculo
dos autores com os pais biológicos mostrando-se, nesses casos concretos,
contrário ao melhor interesse das crianças.
O Juiz da 2ª Vara da Infância e Juventude de Recife reconheceu a
multiparentalidade, ao invés de conceder a adoção unilateral da
madrasta, autorizando que uma criança de 4 anos fosse registrada no nome
dos pais biológicos e no da companheira do pai, que criava o infante
praticamente desde o seu nascimento, em virtude da carência material da
mãe biológica. A ideia inicial, como mencionado, era a de que a mãe-afim
adotasse o enteado mas, em nome do princípio do melhor interesse da
criança, o magistrado terminou por determinar que menino iria ter duas
mães jurídicas e um pai, por não enxergar razões para que o vínculo com a
mãe biológica fosse destruído.[4]
Em Cascavel, no Paraná, o Juiz da Vara da Infância e Juventude
reconheceu a paternidade socioafetiva do padrasto de um adolescente de
16 anos.[5] Ao invés de conceder a adoção
unilateral requerida, determinou a inclusão do nome do pai-afim no
assento de nascimento do rapaz, sem prejuízo da paternidade biológica.
Após uma criteriosa análise dos fatos, o magistrado constatou que o
adolescente tinha nos dois indivíduos a figura paterna e que deferir a
adoção, com a consequente ruptura dos vínculos com o pai biológico, iria
contra o princípio do melhor interesse da criança.
Assim, em atendimento a tal princípio, o juiz ficou convencido de que a
melhor solução para o caso seria levar para o mundo jurídico a
multiparentalidade que se apresentava no mundo fático. Mãe e pais
exerciam genuinamente – de forma efetiva e afetiva – os seus papeis
parentais possuindo importância equivalente na vida do adolescente.
Então, por que excluir? Por que ter que fazer uma escolha, num
verdadeiro dilema salomônico moderno, quando ambas paternidades poderiam
coexistir harmonicamente?
Assim, o rapaz passou a ter uma mãe e dois pais registrais, dos quais
poderá ser dependente em planos de saúde, planos previdenciários. Também
poderá pleitear alimentos dos dois, assim como será herdeiro de ambos.
Tal decisão leva-nos à compreensão de que a filiação socioafetiva possui
a mesma solidez e leva aos mesmos efeitos jurídicos que a filiação
natural.
Pode-se, por fim, afirmar que o reconhecimento da parentalidade
socioafetiva não implica – necessariamente – em uma punição aos
familiares consanguíneos. Biologia e afeto podem – e devem – caminhar
juntos, de mãos dadas, sempre que tal fato se mostrar benéfico às
partes, tomando em consideração o princípio absoluto e inafastável do
melhor interesse da criança ou adolescente.
Notas
[1] Agravo do Recurso Extraordinário (ARE) 692186-PB.
[2] E note-se que nem sempre a filiação
socioafetiva estará sozinha. Como se afirmou no julgado do Paraná, “a
filiação socioafetiva pode estar acompanhada de outros tipos filiação. O
filho pode ser ao mesmo tempo biológico, registral e socioafetivo. A
filiação também pode ser registral e socioafetiva, mas não biológica. É o
caso da filiação que se estabelece por adoção, pela chamada adoção à
brasileira, bem como pela paternidade assistida heteróloga. O pai
aparece no registro e mantém uma relação de afetividade filial com a
criança, mas não é o genitor biológico. Outra situação é o da
paternidade biológica e socioafetiva, mas não registral. É o caso, por
exemplo, do filho que está registrado apenas no nome da mãe e convive
com o pai, mas não consta no registro de nascimento o nome do genitor.
Ainda é possível apenas a filiação socioafetiva, que neste caso não
coincide nem com a filiação biológica, nem com a filiação registral, mas
é meramente socioafetiva, como é o caso dos denominados filhos de
criação”. Cfr.
http://www.direitodascriancas.com.br/anexos/2/7/SENTENCA_DUPLA_PARENTALIDADE___INICIAIS.pdf
[3] Processo 0012530-95.2010.8.22.0002. Disponível em: www.tjro.jus.br Acesso em: 09/03/2013.
[4] Cfr. “Juiz de Recife registra criança em
nome de pai, mãe e madrasta”. Disponível em:
http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/juiz-de-recife-registra-crianca-em-nome-de-pai-mae-e-madrasta
Acesso em: 09/03/2013.
[5] Sentença disponível em:
http://www.direitodascriancas.com.br/anexos/2/7/SENTENCA_DUPLA_PARENTALIDADE___INICIAIS.pdf
Acesso em: 09/03/2013.
CHAVES, Marianna.
Multiparentalidade: a possibilidade de coexistência da filiação socioafetiva e filiação biológica.. Jus Navigandi, Teresina,
ano 18,
n. 3611,
21 maio 2013
.
Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/24472>. Acesso em: 22 maio 2013.
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