Como
estamos na semana do Dia das crianças, apresento, mais uma vez, um
texto para reflexão sobre a relação de pais e filhos. Hoje abordarei a
questão dos incentivos.
Penso que
praticamente todo mundo já ouviu dizer que há pais que prometem dar de
presente um automóvel ao filho ou filha, acaso ele ou ela ingresse na
Faculdade. Isso, quanto aos mais abonados. Os de menores posses prometem
viagens ou outros presentes mais baratos. Isso também ocorre com os
mais jovens que ganham alguma coisa em troca de boas notas como, por
exemplo, a ida a um evento desejado pelo pequeno ou ao McDonald's. Ou,
ao contrário, deixam de levá-los se as notas foram fracas.
Pergunto, então,
que tal oferecer, de uma vez por todas, e sem rodeios, dinheiro para que
a criança ou adolescente tire boas notas ou leia um livro? Ao invés de
automóvel, viagem, roupas ou acessórios, pagamento cash ou depósito em conta!
Pode até parecer
estranho, mas isso já acontece nos Estados Unidos da América e, como
quase tudo que por lá se inventa, acaba, mais cedo ou mais tarde,
desembarcando por aqui - nesse nosso país catequizado e que adora copiar
o grande irmão norte americano -, faço algumas considerações para que
pensemos a respeito.
Michael J. Sandel, em livro que aqui já citei mais de uma vez1,
conta que um amigo dele costumava pagar um dólar aos filhos pequenos
toda vez que escreviam um bilhete de agradecimento. Ele revela que,
geralmente, dava para perceber que os bilhetes haviam sido escritos sob
pressão. Sandel levanta a hipótese de que, "pode acontecer que, depois
de escrever muitos bilhetes, as crianças acabem apreendendo seu real
significado e continuem manifestando gratidão ao receber alguma coisa,
mesmo se não forem mais pagas para isso"2.
No entanto, também é possível, observa ele, que aprendem a lição errada
e encarem esses bilhetes como uma obrigação, como uma tarefa a ser
desempenhada em troca de remuneração. Pior: esse modelo pode "corromper
sua educação moral e tornar mais difícil para elas o aprendizado da
virtude da gratidão".3
Sandel conta que,
em várias partes dos Estados Unidos, o sistema escolar passou a tentar
melhorar o desempenho acadêmico com a remuneração das crianças para
estimulá-las a tirar boas notas ou obter boa pontuação em testes de
avaliação. E que, cada vez mais, os incentivos financeiros são
considerados um elemento-chave do melhor desempenho educacional,
especialmente no caso de alunos de escolas em centros urbanos com
resultados medíocres.
Um professor de
economia de Harvard, Roland G. Fryer Jr, colocou em prática essa ideia
de incentivos destinando US$6,3 milhões a alunos de 261 escolas urbanas
de produção predominantemente afro-americanos hispânica, provenientes de
famílias de baixa renda. Diferentes esquemas de incentivos foram usados
em diferentes cidades4. Vejamos alguns exemplos referidos por Sandel:
"- Em Nova York, as escolas envolvidas pagavam US$ 25 a alunos da 4ª série que se saíssem bem em testes padronizados de avaliação. Os alunos da 7ª série podiam ganhar US$ 50 por teste. Esses ganhavam em media um total de US$ 231,55.- Em Washington, as escolas pagavam a alunos do ensino médio por comparecimento, bom comportamento e entrega dos trabalhos de casa. As crianças mais compenetradas podiam ganhar US$ 100 quinzenalmente. O aluno médio recebia cerca de US$ 40 nesse período e um total de US$ 532,85 ao longo do ano escolar.- Em Chicago, os alunos da 9ª série recebiam dinheiro pelas boas notas: US$50 por um A, US$ 35 por um B e US$20 por um C. O melhor aluno tinha uma arrecadação de US$ 1.875 durante o ano escolar.- Em Dallas, pagam US$ 2 aos alunos da 2ª série para cada livro que lerem. Para receber o dinheiro os alunos devem responder a um questionário computadorizado e provar que leram o livro."5
Michael Sandel
observa que "esses pagamentos em dinheiro deram resultados variáveis. Em
Nova York, a remuneração da garotada por boas notas nos testes em nada
contribuía para melhorar seu desempenho acadêmico. O dinheiro em troca
das boas notas em Chicago levou a melhores níveis de comparecimento, mas
não melhorou os resultados dos testes padronizados.
Em Washington, os
pagamentos ajudaram alguns alunos (hispânicos, meninos e alunos com
problemas comportamentais) a alcançar melhor desempenho de leitura. O
dinheiro funcionou, sobretudo, com os alunos de 2ª. série em Dallas; as
crianças que receberam US$ 2 por livro chegaram ao fim do ano com melhor
nível de compreensão na leitura"6.
Muito bem. Os
economistas costumam dizer e sempre pretendem mostrar que as pessoas
reagem a uma política de incentivos. Por que, então, não pagar para que
uma criança ou um adolescente tire boas notas ou leia um livro? Embora
certas crianças ou adolescentes possam sentir-se motivadas a ler livros
pelo prazer da própria leitura e pelo aprendizado, com outras isso não
acontece. Por que "não usar o dinheiro como um incentivo a mais?"7
Sandel responde do
seguinte modo: "o mercado é um instrumento, mas não um instrumento
inocente. O que começa como um mecanismo de mercado se torna norma de
mercado. O motivo mais óbvio de preocupação é que o pagamento acostume
as crianças a pensar na leitura de livros como uma forma de ganhar
dinheiro e comprometa, sobrepuje ou corrompa o gosto da leitura pela
leitura".8
Esses são apenas
alguns exemplos de como o pensamento contemporâneo tem uma tendência
enorme a reduzir tudo à oferta, preço, pagamento e em dinheiro. Talvez
em alguns casos isso não seja um problema. O perigo é que, cada vez
mais, os valores morais mais elevados acabem sendo substituídos pela
simples ideia de troca de algo pelo dinheiro, gerando uma precificação
do comportamento humano e fazendo com que as pessoas esquecem as
virtudes e percam a generosidade (ou nunca conheçam o seu sentido).
É isso. Algo para refletirmos nesse dia das crianças.
__________
1O que o dinheiro não compra – os limites morais do mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 5ª. ed, 2013.
2Livro acima citado, p. 61.
3Idem, p. 62.
4"Financial Incentives and Student Achievemnent: Evidence from Randomized Trials" in Quarterly Journal of Economics, 126, nov. 2011. Apud Sandel, livro citado, p. 53.
5Idem, p. 54
6Idem, mesma p.
7Idem, p. 62
8Idem, mesma p.
Autor: Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor.
Fonte:http://www.migalhas.com.br/ABCdoCDC/92,MI209073,31047-Um+presente+para+a+reflexao+no+dia+das+criancas
Ótimo texto, concordo plenamente. Não podemos transmitir a ideia para nossas crianças de que o dinheiro pode pagar por tudo. Os valores morais não podem ser comprados.
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