Complementando as regras básicas relativas à ordem de sucessão legítima e à vocação hereditária, com especial tratamento quanto à sucessão dos descendentes em concorrência com o cônjuge, o art. 1.832 do Código Civil de 2002 − sem correspondente na codificação anterior − trata da chamada reserva da quarta parte da herança. Conforme a sua exata redação, "em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer". O objetivo da norma é assegurar um patrimônio mínimo ao cônjuge sobrevivente, papel que era exercido, no Código Civil de 1916, pelo chamado usufruto vidual.
Como primeira observação a respeito do comando, diante da equiparação sucessória feita pelo Supremo Tribunal Federal, em julgamento encerrado no ano de 2017 e que reconheceu a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil (decisum publicado no Informativo n. 840 do STF), passa ele a ter plena incidência para a união estável, o que foi reconhecido em 2019 pelo Superior Tribunal de Justiça, em julgado que ainda será aqui melhor explicado.
Como se pode perceber, a norma da codificação privada em vigor enuncia que o cônjuge – e agora também o convivente ou companheiro – recebe o mesmo quinhão que recebem os descendentes. Ademais, em continuidade, o preceito consagra a citada reserva da quarta parte da herança ao cônjuge ou ao companheiro se ele for ascendente dos descendentes com quem concorrer, geralmente pai ou mãe do filho do falecido, de cuja herança se trata. Assim, se por outro lado o cônjuge ou companheiro concorrer somente com descendentes do falecido, não haverá a referida reserva. Na verdade, o principal debate a respeito do comando somente ganha relevo se houver a concorrência com mais de três descendentes do falecido, situação em que a reserva da quarta parte seria alvo de dúvidas.
Observa-se, portanto, que a principal discussão que o dispositivo desperta tem relação com a chamada sucessão ou concorrência híbrida, expressão criada pela Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, presente quando o cônjuge ou convivente concorre com descendentes comuns − de ambos −, e com descendentes exclusivos do autor da herança (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários ao Código Civil. 2. ed. Coord. Antonio Junqueira de Azevedo. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 20, p. 235-236). Isso porque tal hipótese não foi prevista pelo legislador, presente uma lacuna normativa, a ser sanada pelo intérprete. A propósito, a jurista citada tem procurado analisar a polêmica que forma o cerne principal deste artigo em suas aulas e palestras sobre a sucessão legítima.
Duas foram as correntes fundamentais que surgiram sobre essa controvérsia, conforme consta de tabela doutrinária elaborada por Francisco José Cahali, em obra de grande expressão, lançada nos anos iniciais de vigência do Código Civil de 2002 (Direito das sucessões. 3. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 189-192).
Para uma primeira corrente, tida desde o início como majoritária, em havendo a sucessão híbrida, não se deve fazer a reserva da quarta parte ao cônjuge ou ao companheiro, tratando-se todos os descendentes como se fossem exclusivos do autor da herança. Assim entendem − conforme menções constantes na citada tabela doutrinária − Caio Mário da Silva Pereira, Christiano Cassettari, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Gustavo René Nicolau, Inácio de Carvalho Neto, Jorge Fujita, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Maria Berenice Dais, Maria Helena Diniz, Maria Helena Braceiro Daneluzzi, Mário Delgado, Mário Roberto Carvalho de Faria, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno, Sebastião Amorim, Euclides de Oliveira e Zeno Veloso; além do presente autor.
Esse entendimento prestigia os interesses e direitos dos filhos em detrimento dos do cônjuge, sendo essa a opção constitucional, como apontam os juristas citados. Adotando a premissa, na V Jornada de Direito Civil, evento promovido pelo Conselho da Justiça Federal no ano de 2011,aprovou-se o seguinte enunciado: “na concorrência entre o cônjuge e os herdeiros do de cujus, não será reservada a quarta parte da herança para o sobrevivente no caso de filiação híbrida” (Enunciado n. 527). Reitero que a destacada ementa doutrinária e todas essas afirmações têm incidência, agora, para a concorrência do companheiro com os descendentes, eis que foi ele incluído no art. 1.829 do Código Civil pela decisão do Supremo Tribunal Federal antes mencionada, com repercussão geral.
Por outra via, para uma segunda corrente doutrinária, tida como minoritária, em havendo sucessão híbrida, deve ser feita a reserva da quarta parte ao cônjuge, tratando-se todos os descendentes como comuns, como pensam Francisco José Cahali, José Fernando Simão e Sílvio de Salvo Venosa. Essa corrente está baseada em uma interpretação literal do art. 1.832, pois a reserva da quarta parte deve ocorrer em havendo descendentes de ambos, não sendo relevante para afastar tal subsunção a presença também de filhos exclusivos somente do falecido.
Tentando resolver esse dilema, em 2019 surgiu o antes citado precedente da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, que menciona obra de minha autoria, especialmente o debate doutrinário aqui exposto. Seguindo a primeira corrente, o aresto conclui que não deve ocorrer a reserva da quarta parte em havendo a sucessão ou concorrência híbrida. Pontue-se que o caso dizia respeito a união estável, e não a casamento, fazendo incidir a equalização sucessória entre as entidades familiares, conforme a tão citada decisão do STF. Como consta da primeira parte da sua ementa, "o Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do e. Min. Luís Roberto Barroso, quando do julgamento do RE 878.694/MG, reconheceu a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CCB tendo em vista a marcante e inconstitucional diferenciação entre os regimes sucessórios do casamento e da união estável" (STJ, REsp 1.617.501/RS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/06/2019, REPDJe 06/09/2019, DJe 01/07/2019).
Na sequência é enfrentado o dilema relativo à concorrência do companheiro com os descendentes no regime da comunhão parcial de bens, sendo citado o julgado a respeito da consolidação de pensamento que se deu no âmbito da Segunda Seção da Corte, no sentido de que, "nos termos do art. 1.829, I, do Código Civil de 2002, o cônjuge sobrevivente, casado no regime de comunhão parcial de bens, concorrerá com os descendentes do cônjuge falecido somente quando este tiver deixado bens particulares. A referida concorrência dar-se-á exclusivamente quanto aos bens particulares constantes do acervo hereditário do de cujus" (STJ, REsp 1.368.123/SP, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, Rel. p/ Acórdão Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/4/2015, DJe 8/6/2015).
E, por fim, enfrentando o tema principal deste texto − e com base nos entendimentos doutrinários de Paulo Lôbo, Carlos Roberto Gonçalves, Mario Luiz Delgado e Mairan Maia −, deduziu-se que "a interpretação mais razoável do enunciado normativo do art. 1.832 do Código Civil é a de que a reserva de 1/4 da herança restringe-se à hipótese em que o cônjuge ou companheiro concorrem com os descendentes comuns. Enunciado 527 da Jornada de Direito Civil. A interpretação restritiva dessa disposição legal assegura a igualdade entre os filhos, que dimana do Código Civil (art. 1.834 do CCB) e da própria Constituição Federal (art. 227, § 6º, da CF), bem como o direito dos descendentes exclusivos não verem seu patrimônio injustificadamente reduzido mediante interpretação extensiva de norma" (STJ, REsp 1.617,501/RS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/6/2019, DJe 1/7/2019).
Como se pode perceber, o acórdão traz em seu conteúdo respostas a muitas questões que eram pendentes no passado sobre o Direito das Sucessões Brasileiro e resolve mais um dilema, qual seja a não reserva da quarta parte da herança em favor do cônjuge ou companheiro em havendo a sucessão híbrida.
Espero que outros julgados estaduais e mesmo da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça sigam esse entendimento, que traduz a mais correta e prevalecente interpretação doutrinária do vigente sistema sucessório brasileiro. Sobre essa temática, como se pode perceber, doutrina majoritária e jurisprudência estão em sintonia, o que é sempre louvável na realidade contemporânea, para trazer estabilidade às relações privadas.
Flávio Tartuce, é pós-doutorando e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
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