1 de março de 2021, 13h30
Neste artigo, o estudo do tema será feito à luz de dois precedentes do STF que abordam a temática da responsabilidade civil do Estado na posição de "garante": o Recurso Extraordinário (RE) nº 841.526/2016/RS [2] e o RE nº 580.252/2019/RS [3], que previram, respectivamente, indenizações a detentos por morte e superlotação de estabelecimento prisional.
No RE nº 841.526/2016/RS, foi discutido o cabimento de indenização à família de um preso que faleceu dentro do estabelecimento penitenciário por enforcamento. A defesa alegou a inobservância do dever específico do Estado de proteção da pessoa presa [4].
Na primeira e na segunda instâncias, o Estado foi condenado por ter falhado no dever de zelar pela integridade física do interno. Foi fixada indenização em R$ 38 mil a título de dano moral para cada autor da ação — companheira e filho do detento — além de pensão, considerando que o preso auferia remuneração como pintor de paredes antes de ser preso.
Ao julgar esse leadind case, o plenário do Supremo confirmou o acórdão recorrido e, por unanimidade, negou provimento ao apelo do Estado do Rio Grande do Sul, reconhecendo a responsabilidade do Estado e o direito à indenização reparatória à família da vítima. A Suprema Corte entendeu que "a omissão do Estado reclama nexo de causalidade em relação ao dano sofrido pela vítima nos casos em que o Poder Público ostenta o dever legal e a efetiva possibilidade de agir para impedir o resultado danoso".
Segundo o ministro relator Luiz Fux, mesmo que as provas dos autos não tenham sido capazes de confirmar se a morte foi decorrente de homicídio ou suicídio, em qualquer das opções, neste caso, o poder público falhou no seu dever específico de proteção. Declarou, ainda, que "se o Estado tem o dever de custódia, tem também o dever de zelar pela integridade física do preso. Tanto no homicídio quanto no suicídio há responsabilidade civil do Estado".
Ao final do julgamento, foi fixada a seguinte tese no Tema nº 592 da repercussão geral, intitulado "Responsabilidade civil objetiva por morte de detento": "Em caso de inobservância de seu dever específico de proteção previsto no artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal, o Estado é responsável pela morte de detento".
Por outro lado, no RE nº 580.252/2017, o STF analisou a responsabilidade do Estado por danos morais decorrentes de superlotação carcerária. No caso, o preso cumpria pena de 20 anos no presídio de Corumbá (MS). Alegou que dormia com a cabeça encostada no vaso sanitário em uma cela com capacidade para 12 pessoas, mas que abrigava cem. Diante disso, a Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul ajuizou ação ordinária de responsabilidade civil contra o Estado de Mato Grosso do Sul.
O pedido foi julgado improcedente em primeiro grau, mas a sentença foi reformada em sede de apelação, ocasião em que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul fixou indenização no valor de R$ 2 mil por danos morais ao preso. Opostos embargos infringentes, a indenização foi afastada, sob o fundamento da aplicação do princípio da reserva do possível.
Por fim, em 2011, a ação alcançou o STF e, por não se tratar de caso único e diante da crise do sistema prisional, a corte conferiu repercussão geral ao RE, nos seguintes termos: "Possui repercussão geral a questão constitucional atinente à contraposição entre a chamada cláusula da reserva financeira do possível e a pretensão de obter indenização por dano moral decorrente da excessiva população carcerária".
O ministro Teori Zavascki, relator do recurso à época, deu provimento ao recurso para reestabelecer o juízo condenatório e restaurar a indenização no valor de R$ 2 mil. Para o ministro, o dano moral mostrou-se incontroverso, subsistindo a discussão da existência ou não da obrigação do Estado em repará-lo. O ministro ressaltou, ainda, que o presídio não atendia às mínimas condições das exigências impostas pelo sistema normativo, eis que os detentos eram submetidos a situações humanamente ultrajantes e desrespeitosas a um padrão mínimo de dignidade.
Zavascki apresentou também quatro argumentos capazes de confirmar a responsabilidade do Estado, quais sejam: a) o princípio da reserva do possível não pode ser considerado no âmbito da responsabilidade civil do Estado, mas apenas em "situações em que a concretização de certos direitos constitucionais dependem de adoção e execução de políticas públicas"; b) as violações aos direitos dos apenados não podem ser mantidas impunes, sob argumento de que a indenização não resolveria os obstáculos do sistema penitenciário; c) a responsabilidade do Estado neste caso é de natureza objetiva; e d) no caso, a responsabilidade civil é por ação, e não por omissão, pois o Estado envia pessoas para presídios superlotados mesmo ciente das péssimas condições de detenção.
Sendo assim, com base na teoria do risco administrativo, versada no artigo 37, §6º, da Constituição Federal, a Suprema Corte concluiu que, no caso, basta a ação do Estado, o dano causado a terceiro e o nexo de causalidade para configurar a responsabilidade objetiva do Estado. Ao final do julgamento, foi formada a tese do Tema nº 365 da repercussão geral [5].
Sobre o dever de indenização, a professora Maria Celina Bodin de Moraes defende que "aquele que sofre um dano moral deve ter direito a uma satisfação de cunho compensatório". Completando a existência incontroversa do dano moral, ao citar Kant, assevera que: "No mundo social existem duas categorias de valores: o preço e a dignidade. Enquanto o preço representa um valor exterior (de mercado) e manifesta interesses particulares, a dignidade representa um valor interior (moral) e de interesse geral. As coisas têm preço; as pessoas dignidade" [6].
A partir da análise dos dois julgados, verifica-se que o STF se posicionou no seguinte sentido a respeito do tema: 1) o Estado é responsável por morte de detendo quando não for observado o seu dever específico de proteção, previsto constitucionalmente; e 2) é dever do Estado ressarcir os detentos que vivem em condições desumanas nos superlotados presídios brasileiros [7].
Sendo assim, partindo-se da premissa dessas duas decisões emblemáticas, questiona-se: a Covid-19 é situação de fato capaz de romper o nexo de causalidade, exonerando o Estado do dever de indenizar, quando atua na posição de garante?
Para tentar responder ao questionamento, necessário, inicialmente, citar a previsão legal no que tange ao direito à saúde do preso. A Lei de Execução Penal prevê, no seu artigo 14, §2º, que "a assistência à saúde do preso e do internado de caráter preventivo e curativo, compreenderá atendimento médico, farmacêutico e odontológico e que quando o estabelecimento penal não estiver aparelhado para prover a assistência médica necessária, esta será prestada em outro local, mediante autorização da direção do estabelecimento" [8].
Na mesma toada da referida lei, a doutrina defende a assistência à saúde da pessoa privada de liberdade: "Para o fim de garantir o bem-estar físico e mental do recluso, é parte integrante da perspectiva reintegradora da pena, rompendo, assim com a realidade que se apresenta no sentido de que as prisões degeneram física e mentalmente a pessoa que por ele passa" [9].
Ademais, no caso da crise causada pelo vírus da Covid-19, novos deveres específicos de proteção e cuidado foram determinados aos estabelecimentos penitenciários. Citam-se, por exemplo, a checagem rotineira de temperatura, o uso de máscara [10], o uso de álcool em gel, além da suspensão das visitas e a realização de testes de Covid-19.
Essas medidas de segurança podem subsidiar a alegação de que o Estado não se omitiu no dever de cuidado dos presos, dos agentes de custódia e dos demais funcionários do sistema carcerário, o que, nessa interpretação, inviabilizaria a indenização.
Outro possível argumento de excludente de responsabilidade estatal seria a equiparação do coronavírus ao caso fortuito, considerando a imprevisibilidade, o caráter difuso e a fácil proliferação da doença.
O STF ainda não foi instado a se manifestar sobre esse tema específico. Entretanto, as decisões do RE nº 841.526/2016/RS e do RE nº 580.252/2019/RS indicam que, se a morte pode ser evitada, não há rompimento do nexo de causalidade entre a ação ou a omissão do Estado e o resultado morte. Em outras palavras, se não foi prestada a devida assistência ao preso e se não foram implementadas as medidas de segurança, inclusive em relação à superlotação carcerária, o óbito torna-se previsível, ensejando, portanto, o dever de indenizar.
Por outro lado, se todas as medidas sanitárias foram adotadas e o falecimento não poderia ter sido evitado, rompe-se o nexo de causalidade e o Estado pode ser exonerado do dever de reparação.
Essas controvérsias indicam que as futuras decisões judiciais sobre este o assunto não serão óbvias. Cabe verificar, por exemplo, se ocorreu uma ação estatal, quando este decide manter as péssimas condições atuais dos presídios, ou uma omissão, quando o poder público se omite dos deveres de proteção da população contra a Covid-19.
Será necessária, ainda, para eventual configuração da responsabilidade civil do Estado, uma detalhada análise do caso concreto, que envolve o estudo de cada estabelecimento penitenciário e as ações que foram adotadas para a contenção da Covid-19. Essa análise individualizada visa perquirir se, de fato, o Estado falhou no seu dever de proteção e nos cuidados da integridade física e moral daquele que faleceu no estabelecimento penitenciário em razão da contaminação pelo novo coronavírus.
Portanto, o questionamento acerca do dever do Estado de indenizar a família do preso que faleceu em estabelecimento penal em decorrência da Covid-19 não tem uma resposta rápida, tampouco fácil. Deve-se alertar, contudo, que a moldura axiológica estabelecida pelo STF não necessariamente amolda-se ao contexto inédito de incertezas inaugurado pela pandemia da Covid-19. Esse cenário de calamidade na saúde pública absolutamente inédito para nossa geração poderá mitigar algumas dessas premissas já fixadas pela Corte Constitucional no tocante à responsabilidade civil do Estado em razão da morte de detentos em estabelecimentos prisionais.
[1] Conforme os dados do último levantamento do CNJ, de 24/2/2021, foram registrados 141 óbitos de pessoas presas, além de 112 óbitos de servidores. Cabe esclarecer que o sistema prisional foi menos afetado do que o previsto no início da pandemia, fato que se deu, dentre outros motivos, pela suspensão das visitas.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 841.526/RS. Tribunal Pleno. Relator ministro Luiz Fux. Brasília, 1 de agosto de 2016.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 580.252/MS. Tribunal Pleno. Relator ministro Teori Zavascki. Brasília, 11 de setembro de 2017.
[4] O laudo da necropsia demonstrou que a morte ocorreu por asfixia mecânica na região do pescoço, mas não foi conclusivo no sentido de o óbito ter-se dado em decorrência de homicídio ou suicídio.
[5] Tema nº 365 da Repercussão Geral: "Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos temos do art. 37§ 6º da CF, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento".
[6] BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Ed renovar. RJ.SP. 2003.
[7] Vale citar, a título de conhecimento, que, no âmbito do STJ, constam decisões contrárias e julgamentos favoráveis à indenização. Em sentido contrário ao ressarcimento, o ministro do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins, traz argumentos desfavoráveis à indenização. Verificamos que o ministro defende que a indenização não teria função pedagógica e que a retirada de recursos do Estado agravaria a situação do próprio detento (ED no REsp 962.934/MS). De outro lado, em sentido favorável ao ressarcimento por danos morais, ainda no âmbito do STJ, decidiu o ministro Francisco Falcão que ocorrendo o dano e estabelecido o seu nexo causal com a atuação da Administração ou dos seus agentes, nasce a responsabilidade civil do Estado, não cabendo invocar o princípio da reserva do possível ou a insuficiência de recursos (REsp 1.051.023/RJ).
[8] BRASIL. Lei nº 7.210, 11 de julho de 1984. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm.
[9] PRADO, Luiz Regis; HAMMERSCHMIDT, Denise; MARANHÃO, Douglas Bonaldi; COIMBRA, Mário. Direito de execução penal. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 120.
[10] A respeito da obrigatoriedade do uso de equipamentos de proteção individual contra a Covid-19 para os trabalhadores dos estabelecimentos prisionais e de cumprimento de medidas socioeducativas, recente decisão do STF suspendeu vetos do presidente da República ao projeto de lei que exige o uso de máscara de proteção individual para circulação em espaços públicos e privados acessíveis ao público. No julgamento do mérito da ADPF 714/DF foi restabelecida a vigência normativa do § 5º do art. 3º-B e do art. 3º-F da Lei 13.979/2020, na redação conferida pela Lei 14.019, de 2 de julho de 2020. Ou seja, a decisão determina a obrigatoriedade do uso do equipamento nos referidos estabelecimentos.
Monique de Siqueira Carvalho é servidora do MPU cedida ao STF, onde atua em gabinete de ministro, autora do livro "O Cumprimento de Penas Privativas de Liberdade em Estabelecimento Penal Digno e Adequado: Possibilidades e Limites de Acordo com a Súmula Vinculante nº 56", professora do IDP e mestre em Direito Constitucional pelo IDP.
Juliana Queiroz Ribeiro é analista do STF e especialista em Direito Constitucional.
Revista Consultor Jurídico, 1 de março de 2021, 13h30
https://www.conjur.com.br/2021-mar-01/opiniao-analise-responsabilidade-civil-estado
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