20 de novembro de 2022, 13h17
A presente reflexão é feita a partir de outro trabalho apresentado no Congresso Nacional de Registro Civil (Conarci) em outubro de 2022. Inicialmente cabe esclarecer que o refúgio e o asilo político são meios pelos quais o indivíduo que está sofrendo violações de seus direitos fundamentais no país de origem permanecer legalmente no território brasileiro.
O Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão brasileiro responsável pela análise dos casos bem como pela elaboração de políticas públicas para integração dos refugiados, e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) desenvolveram um painel sobre o refúgio no Brasil. Nele é possível constatar que em 2021 existiam 60.011 pessoas reconhecidas como refugiadas, sendo que cerca de 72,2% das solicitações foram na região norte e o estado do Acre concentrou o maior volume (47,8%), seguido por Roraima (14,7%) [1].
De acordo com o relatório Refúgio em Números 2022, em 2021 o Brasil recebeu 29.107 solicitações da condição de refugiado que somadas às registradas a partir de 2011 (268.605), totalizaram 297.712 em uma década [2]. A maioria é oriunda da Venezuela, correspondendo a 78,5% dos pedidos do ano passado, tendo recebido solicitações de 117 países. Em relação ao sexo dos refugiados, a maioria é homem, e 84,6% tem menos de 40 anos de idade, configurando um perfil majoritariamente jovem.
É natural que pessoas em idade reprodutiva tenham interesse em constituir família ao se fixar no novo país e, por questões religiosas ou culturais, prefiram a formalização do casamento civil em detrimento da informalidade de uma união estável.
Quanto à legislação brasileira, o artigo 1º da Lei nº 9.474/97 estabelece que podem ser reconhecidas como refugiadas as pessoas que se encontram fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social específico ou opinião política e que não podem ou não querem valer-se da proteção de seu país, bem como as pessoas obrigadas a deixar seu país devido à grave e generalizada violação de direitos humanos. É comum que na fuga apressada de um país para outro pouca ou nenhuma bagagem seja trazida, o que ocasiona o extravio ou perda dos documentos pessoais.
Ao chegar ao território brasileiro, o estrangeiro pode solicitar o reconhecimento da condição de refugiado, sendo que aqueles que ainda não tiveram sua solicitação deliberada pelo Conare encontram-se em situação migratória regular e podem obter inscrição junto ao Cadastro de Pessoas Físicas e a carteira de trabalho e previdência social. É reconhecido ainda o direito de solicitar a reunião familiar, ou seja, a possibilidade de trazer sua família ao Brasil para viverem juntos, viabilizada por meio da concessão de visto temporário nos termos da Lei nº 13.445/2017 e da Portaria MJSP/MRE nº 12/2018.
Quanto ao casamento, o artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê que homens e mulheres independente de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Também o artigo 226 da Constituição Federal de 1988 assegura que a família é a base da sociedade e tem especial proteção. Assim, ao acolher estrangeiros em situação de vulnerabilidade, é dever do Estado estender a proteção às suas famílias bem como garantir o direito de constituí-las formalmente.
O casamento multinacional é regido pelas normas do Direito Internacional Privado, em especial o artigo 7º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que dispõe que os estrangeiros que pretendem contrair casamento civil no Brasil deverão se sujeitar às regras da celebração local, em especial com a apresentação da documentação que comprove o estado civil.
O procedimento de habilitação do casamento civil foi recentemente alterado propiciando maior celeridade na tramitação. Entretanto, pode apresentar complicações quando se tratar de nubentes estrangeiros já que os estados normalmente exigem certidões de nascimento ou casamento atualizadas, devidamente apostiladas ou legalizadas. Percebe-se, portanto, a dificuldade prática para os refugiados obterem a documentação exigida pelas normas estaduais para a habilitação de casamento civil.
Por outro lado, a Lei nº 9.474/97 em seu artigo 43 e o Decreto nº 9.199/2017 no artigo 121 estabelece que a condição atípica dos refugiados deverá ser considerada quando for necessário apresentar documentos emitidos por seus países de origem ou por suas representações diplomáticas e consulares.
Já a Lei de imigração (Lei nº 13.445/17) prevê no artigo 20 que a identificação civil de solicitante de refúgio, de asilo, de reconhecimento de apatridia e de acolhimento humanitário poderá ser realizada com a documentação que o imigrante dispuser e que os documentos de identidade emitidos continuarão válidos até sua substituição. Assim, havendo documento comprobatório do estado civil do refugiado, este deverá ser aceito ainda que não preencha os requisitos, como atualização recente e apostilamento ou legalização.
Cabe pontuar que o procedimento de reconhecimento da condição de refugiado prevê que além das declarações, deverá o estrangeiro preencher a solicitação com a identificação completa, qualificação profissional, grau de escolaridade e membros do seu grupo familiar, bem como relato das circunstâncias e fatos que fundamentam o pedido de refúgio, indicando as provas pertinentes.
Assim, caso não tenha documentos que comprovem seu estado civil, como no início do procedimento de solicitação da condição de refugiado são colhidas informações acerca de sua qualificação e vida pessoal, estas posteriormente podem ser utilizadas para fins de comprovação junto ao cartório.
Nesse sentido, no site da Polícia Federal [3] consta que na ausência de certidão de nascimento ou casamento ou certidão consular, o refugiado deverá declarar sua qualificação, sob as penas do artigo 299 do Código Penal. Assim, como essas declarações são fornecidas logo que ingressam no país e sob as penas do crime de falsidade ideológica, é razoável concluir-se que são idôneas para comprovar o estado civil do refugiado para fins de habilitação do casamento, se necessário.
Em 17/11/2017, no Pedido de Providências nº 0005735-48.2017.2.00.0000 [4], a Defensoria Pública da União solicitou a dispensa da legalização dos documentos dos refugiados para fins de casamento civil. O CNJ expediu recomendação a todas as Corregedorias Gerais de Justiça (CGJ) para que fosse cumprido o artigo 20 da Lei nº 13.445/2017 e flexibilizada a apresentação de documentos. Posteriormente, em 26/11/2018, o CNJ esclareceu que a flexibilização teria por pressuposto o reconhecimento da condição de refugiado pelo Conare e se aplicaria para todos os atos da vida civil.
Em que pese a importância da recomendação do CNJ, a falta de regulamentação nacional tem por consequência a inexistência de uma solução efetiva, com a segurança jurídica exigida para os atos praticados pelos cartórios de registro civil de pessoas naturais.
A omissão normativa levou o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF) a regulamentar o tema pelo Provimento 24/2018 [5], tratando da possibilidade do imigrante, na condição de refugiado, apátrida ou asilado não trazer consigo documentos de identificação civil ou não vislumbrar a possibilidade de tê-los validados nas repartições dos países que deixaram.
Assim, no caso de procedimento de habilitação para o casamento, o estrangeiro que se encontrar nessas condições poderá fazer prova de idade, estado civil e filiação mediante a apresentação de cédula especial de identidade de estrangeiro, emitida pela Polícia Federal; passaporte; atestado consular; ou certidão de nascimento ou de casamento, com averbação do divórcio, traduzida por tradutor público juramentado e registrada por oficial de registro de títulos e documentos. Verifica-se que a opção foi pela ampliação do rol de documentos comprobatórios da identidade, sendo importante observar que não consta o estado civil na cédula de identidade de estrangeiro nem, em regra, no passaporte [6]. Note-se que esse provimento é a regulamentação estadual mais específica a respeito do casamento civil de refugiados.
Conforme o artigo 672 do Provimento nº 10/2016 [7] do Tribunal de Justiça do Acre e o artigo 566 do Provimento nº 01/2017 [8] do Tribunal de Justiça de Roraima — estados que recebem o maior número de refugiados —, aceitam que o estado civil seja provado por declaração de testemunhas. Ocorre que os dispositivos não se referem especificamente ao casamento, ficando a dúvida se a mera declaração será suficiente inclusive para comprovar o estado civil no procedimento de habilitação. Outro ponto seria a credibilidade das declarações já que não há qualquer exigência em relação às testemunhas nem à necessidade de que as mesmas conheçam o refugiado desde o país de origem.
Uma solução segura seria a admissão da prova testemunhal desde que a declaração quanto ao estado civil fosse feita por pessoas que conhecem o refugiado desde o país de origem. Outra opção para confirmar a ausência de impedimentos matrimoniais seria a verificação das informações prestadas junto à Polícia Federal na fronteira ou ao Conare quando da solicitação da condição de refugiado.
Percebe-se que as regras existentes são insuficientes para solucionar a questão, sendo que na prática a flexibilização da apresentação da documentação, em especial as certidões atualizadas, tem ocorrido de forma pontual pelos juízes [9] com fundamento no dever do Estado de garantir a todos, brasileiros ou não, o direito de concretizar suas aspirações pessoais, inclusive constituição de família pelo casamento.
A efetivação de todos os direitos dos refugiados passa pela normatização de formas mais flexíveis para se comprovar a qualificação civil para fins de habilitação do casamento, podendo optar-se pela consulta às informações fornecidas no procedimento de solicitação da condição de refugiado junto ao Conare ou mediante a especificação de quais testemunhas podem declarar o estado civil do estrangeiro. Tais medidas trarão a segurança jurídica necessária ao procedimento de habilitação de casamento civil e permitirão ao refugiado concretizar seu direito de constituir formalmente uma família.
[2] JUNGER, Gustavo; CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Tadeu de; SILVA, Bianca G. Refúgio em Números (7ª Edição). Série Migrações. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e Segurança Pública/ Conselho Nacional de Imigração e Coordenação Geral de Imigração Laboral. Brasília, DF: OBMigra, 2022.
[3] Disponível em: https://www.gov.br/pf/pt-br/assuntos/imigracao/registrar-se-como-estrangeiro-no-brasil/registro-de-imigrante-reconhecido-como-refugiado-pelo-comite-nacional-para-os-refugiados-conare. Acesso em: 14 set. 2022.
[4] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pjecnj/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/documentoSemLoginHTML.seam?ca=dcbaeeb35ceae1e9087c5d89447e488c15e165c9f986892aa7b0da9bcbdbecb47fec8b36230311acff87f17dc6f7b95339b484d172d84d8e&idProcessoDoc=3487746. Acesso em: 14 set. 2022.
[5] Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/publicacoes/publicacoes-oficiais/provimento-extrajudicial/2018/provimento-24-de-10-05-2018. Acesso em: 14 set. 2022.
[6] Disponível em: https://sistemas.mre.gov.br/kitweb/datafiles/SantaCruz/pt-br/file/dpf%20-%20cie%20-%20cedula%20de%20identidade%20de%20estrangeiros.pdf. Acesso em: 15 set. 2022.
[7] Disponível em: https://www.tjac.jus.br/wp-content/uploads/2022/05/Provimento_COGER_TJAC_10_2016.pdf. Acesso em: 14 set. 2022.
[8] Disponível em: https://www.tjrr.jus.br/legislacao/phocadownload/Provimentos/Corregedoria/2017/001comp.pdf. Acesso em: 14 set. 2022.
[9] Imigrantes refugiados podem se casar sem certidão de nascimento. Revista Consultor Jurídico, 10 de outubro de 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-out-10/imigrantes-refugiados-podem-casar-certidao-nascimento. Acesso em: 14 set. 2022.
Fernanda Maria Alves Gomes é registradora civil em Fortaleza (CE) e mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.
Revista Consultor Jurídico, 20 de novembro de 2022, 13h17
https://www.conjur.com.br/2022-nov-20/fernanda-gomes-documentacao-casamento-refugiado
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