sábado, 17 de dezembro de 2011

Habeas corpus para animais

Saiu no G1 do dia 18 de maio:

Uma briga envolvendo um chimpanzé foi parar no Tribunal de Justiça do Rio. A guarda de Jimmy, que vive há 15 anos no Zoológico de Niterói (ZooNit), na Região Metropolitana do Rio, está sendo reclamada pela ONG Grupo de Apoio aos Primatas (GAP), de Sorocaba, no interior paulista.

Para indignação dos servidores do Zoo, o presidente do grupo, Pedro Ynterian, acusa a instituição de explorar o bicho e mantê-lo em confinamento, o que, segundo alega o reclamante, seria equivalente ao trabalho escravo imposto aos negros no passado.
Ynterian entrou com um pedido de habeas corpus para que o chimpanzé seja transferido para o santuário em Sorocaba, onde viveriam 50 primatas.
Jimmy é conhecido, pois já participou de comerciais e de programas de TV. Antes, passara 10 anos num circo até ser levado para o Zoonit. Atualmente, vive sozinho em uma jaula de 120 metros quadrados.

Nossa Constituição diz que habeas corpus é possível “sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Nosso Código de Processo Penal, que é quem trata do assunto, diz no artigo 647 que “dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar

Reparem que ambos os textos falam em ‘alguém’. ‘Alguém’, para nosso direito, é uma pessoa. Os animais, inclusive os outros primatas, não são pessoas e, portanto, não têm direito ao habeas corpus. Como já vimos em um post anterior, eles não podem ser mau-tratados pois isso seria um crime, mas isso não quer dizer que eles sejam sujeitos de direito (ou seja, que eles têm direitos). Para o direito brasileiro, animais são propriedades e, como tais, são protegidos, mas não possuem direitos (o direito pertence à sociedade e/ou aos donos).

A relação jurídica processual na alienação judicial de imóvel hipotecado

O processo não pode ser considerado um fim em si mesmo, pois tem por finalidade a pacificação de conflitos e a produção de Justiça social. Com base nessa premissa, torna-se importante investigar a figura do devedor hipotecário no contexto do processo de execução.

Isso porque, de regra, o processo executório é configurado por relação jurídica formado entre credor e devedor, tão-somente. Há hipóteses, contudo, em que terceiros devem, necessariamente, figurar na lide, a fim de resguardar a validade dos atos judiciais.

Exemplo dessa situação é aquela em que há penhora de imóvel hipotecado de terceiro. Nesse caso, é correta a conclusão de que os garantidores hipotecários materializam a condição de responsáveis patrimoniais secundários e, portanto, legitimados extraordinários para o processo executivo, haja vista que seus bens encontram-se sujeitos à constrição judicial para a satisfação da obrigação exigida em juízo.
Nesse sentido é a posição de Neves:
"Sendo o sujeito responsável por dívida que não é sua - responsabilidade patrimonial secundária -, é natural que seja considerado parte na demanda executiva, visto que será o maior interessado em apresentar defesa para evitar a expropriação de seu bem. O devedor, que também deverá estar na demanda como litisconsórcio passivo, poderá não ter tanto interesse na apresentação da defesa, imaginando que, em razão da propriedade do bem penhorado, naquele momento o maior prejudicado será o responsável secundário e não ele.
Trata-se de legitimação extraordinária, porque o responsável secundário estará em juízo em nome próprio e na defesa de interesse de outrem, o devedor. Além de extraordinária, parece que tal legitimação permite que os responsáveis secundários sejam demandados já inicialmente, em litisconsórcio inicial com o devedor, em especial quando a própria lei expressamente prevê sua legitimidade, como ocorre com o fiador judicial e o responsável patrimonial. Caso tal litisconsórcio não seja formado no início da demanda, penhorado o bem de sujeito que até então não participa como parte na demanda judicial, a ciência desse ato processual deverá se realizar por meio de sua citação, o que o integrará à relação jurídica executiva supervenientemente.
Para os responsáveis patrimoniais que não têm legitimidade passiva expressamente prevista em lei, a legitimação extraordinária apresenta uma particularidade interessante, considerando-se que para esses sujeitos ela só surgirá no caso concreto quando ocorrer a efetiva constrição judicial do bem do responsável secundário." [01]
A hipoteca, como instituto jurídico de direito real de garantia (artigos 1473/1495 do Código Civil), guarda contornos próprios, sabidamente graves. Ora bem, a liberalidade do credor/exequente não pode chegar ao ponto de, excluindo da lide os devedores/garantidores hipotecários, transformar o processo em injusto meio, desconsiderando os valores mais comezinhos do contraditório e da par conditio, e, ainda, de que "a ciência moderna repudia a falsa idéia de um processo civil do autor". [02]

Assim, inegavelmente, os garantidores hipotecários devem figurar na relação jurídica processual, dado que, como adverte Neves: "No momento processual da penhora o responsável secundário é um terceiro, mas sofrendo a constrição judicial deverá ser citado na demanda executiva, passando a integrar o polo passivo como parte". [03]

A imprescindibilidade da participação dos garantidores hipotecários na lide executiva é, de igual modo, referendada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL. GARANTIA HIPOTECÁRIA PRESTADA POR TERCEIROS. PENHORA SEM QUE OS HIPOTECANTES FIGUREM NO PÓLO PASSIVO DA EXECUÇÃO. INADMISSIBILIDADE.
A lei considera o contrato de garantia real como título executivo.

Logo, o terceiro prestador da garantia pode ser executado, individualmente. Todavia, se a execução é dirigida apenas contra o devedor principal, é inadmissível a penhora de bens pertencentes ao terceiro garante, se este não integra a relação processual executiva.

Recurso a que se dá provimento. [04]

E, ainda:
PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO AJUIZADA CONTRA O DEVEDOR. PENHORA QUE RECAI SOBRE BEM DADO EM GARANTIA HIPOTECÁRIA. AUSÊNCIA DE CITAÇÃO DO TERCEIRO GARANTIDOR. NULIDADE DA PENHORA.
1. É indispensável que o garantidor hipotecário figure como executado, na execução movida pelo credor, para que a penhora recaia sobre o bem dado em garantia, porquanto não é possível que a execução seja endereçada a uma pessoa, o devedor principal, e a constrição judicial atinja bens de terceiro, o garantidor hipotecário.
2. Recurso especial provido. [05]
Colhe-se de trecho do voto-condutor do REsp 472769, citação de Humberto Theodoro Junior (in Curso de Direito Processual Civil. V. II, 44ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 201), em que o processualista assevera:
"(...) Ressalta-se que é totalmente inadmissível pretender-se executar apenas o devedor principal e fazer a penhora recair sobre o bem de terceiro garante. Se a execução vai atingir o bem dado em caução real pelo não-devedor, este forçosamente terá de ser parte na relação processual executiva, quer isoladamente, quer em litisconsórcio como o devedor. Jamais poderá suportar a expropriação executiva sem ser parte no processo, como é obvio. (...)"
Certo é que a alienação direta de imóvel penhorado – ou por intermédio de praça/leilão –, efetivando ato executivo sobre bem daquele que sequer figura na relação jurídica processual - macula e viola a garantia fundamental do devido processo legal prevista no inciso LIV do art. 5º da Constituição, seja em sua feição formal (ao desrespeitar o procedimento legalmente e previamente estabelecido), seja na sua perspectiva substancial (porquanto dos Poderes Públicos exigem-se condutas razoáveis que assegurem o respeito aos direitos fundamentais inclusive em sua dimensão objetiva).

Vale-se, quanto ao tema, da transcrição da ementa do seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal, relator o Ministro CELSO DE MELLO:

E M E N T A: CADIN - INCLUSÃO, NESSE CADASTRO FEDERAL, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, POR EFEITO DE NÃO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS, AINDA EM DISCUSSÃO NA ESFERA ADMINISTRATIVA, REFERENTES A PARCELAS DE CARÁTER NÃO REMUNERATÓRIO (ABONO-FAMÍLIA, AUXÍLIO-TRANSPORTE, AUXÍLIO-CRECHE E VALE-REFEIÇÃO) - IMPOSIÇÃO, AO ESTADO-MEMBRO, EM VIRTUDE DE ALEGADO DESCUMPRIMENTO DAS RESPECTIVAS OBRIGAÇÕES, DE LIMITAÇÕES DE ORDEM JURÍDICA - A QUESTÃO DOS DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS, NOTADAMENTE AQUELES DE CARÁTER PROCEDIMENTAL, TITULARIZADOS PELAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PÚBLICO - POSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO, PELAS ENTIDADES ESTATAIS, EM SEU FAVOR, DA GARANTIA DO "DUE PROCESS OF LAW" - LITÍGIO QUE SE SUBMETE À ESFERA DE COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - HARMONIA E EQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES INSTITUCIONAIS ENTRE O ESTADO-MEMBRO E A UNIÃO FEDERAL - O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO TRIBUNAL DA FEDERAÇÃO - POSSIBILIDADE, NA ESPÉCIE, DE CONFLITO FEDERATIVO - PRETENSÃO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA JURISDICIONAL FUNDADA NA ALEGAÇÃO DE TRANSGRESSÃO À GARANTIA DO "DUE PROCESS OF LAW" - SITUAÇÃO DE POTENCIALIDADE DANOSA AO INTERESSE PÚBLICO - TUTELA ANTECIPADA DEFERIDA - DECISÃO DO RELATOR REFERENDADA PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CONFLITOS FEDERATIVOS E O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO TRIBUNAL DA FEDERAÇÃO. - A Constituição da República confere, ao Supremo Tribunal Federal, a posição eminente de Tribunal da Federação (CF, art. 102, I, "f"), atribuindo, a esta Corte, em tal condição institucional, o poder de dirimir controvérsias, que, ao irromperem no seio do Estado Federal, culminam, perigosamente, por antagonizar as unidades que compõem a Federação. Essa magna função jurídico-institucional da Suprema Corte impõe-lhe o gravíssimo dever de velar pela intangibilidade do vínculo federativo e de zelar pelo equilíbrio harmonioso das relações políticas entre as pessoas estatais que integram a Federação brasileira. A aplicabilidade da norma inscrita no art. 102, I, "f", da Constituição estende-se aos litígios cuja potencialidade ofensiva revela-se apta a vulnerar os valores que informam o princípio fundamental que rege, em nosso ordenamento jurídico, o pacto da Federação. Doutrina. Precedentes. A QUESTÃO DOS DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS, NOTADAMENTE AQUELES DE CARÁTER PROCEDIMENTAL, TITULARIZADOS PELAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PÚBLICO. - A imposição de restrições de ordem jurídica, pelo Estado, quer se concretize na esfera judicial, quer se realize no âmbito estritamente administrativo, supõe, para legitimar-se constitucionalmente, o efetivo respeito, pelo Poder Público, da garantia indisponível do "due process of law", assegurada, pela Constituição da República (art. 5º, LIV), à generalidade das pessoas, inclusive às próprias pessoas jurídicas de direito público, eis que o Estado, em tema de limitação ou supressão de direitos, não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva e arbitrária. Doutrina. Precedentes. LIMITAÇÃO DE DIREITOS E NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, PARA EFEITO DE SUA IMPOSIÇÃO, DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. - A Constituição da República estabelece, em seu art. 5º, incisos LIV e LV, considerada a essencialidade da garantia constitucional da plenitude de defesa e do contraditório, que ninguém pode ser privado de sua liberdade, de seus bens ou de seus direitos sem o devido processo legal, notadamente naqueles casos em que se viabilize a possibilidade de imposição, a determinada pessoa ou entidade, seja ela pública ou privada, de medidas consubstanciadoras de limitação de direitos. - A jurisprudência dos Tribunais, especialmente a do Supremo Tribunal Federal, tem reafirmado o caráter fundamental do princípio da plenitude de defesa, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa ou no âmbito político-administrativo, sob pena de nulidade da própria medida restritiva de direitos, revestida, ou não, de caráter punitivo. Doutrina. Precedentes. BLOQUEIO DE RECURSOS FEDERAIS CUJA EFETIVAÇÃO PODE COMPROMETER A EXECUÇÃO, NO ÂMBITO LOCAL, DE PROGRAMA ESTRUTURADO PARA VIABILIZAR A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. - O Supremo Tribunal Federal, nos casos de inscrição de entidades estatais, de pessoas administrativas ou de empresas governamentais em cadastros de inadimplentes, organizados e mantidos pela União, tem ordenado a liberação e o repasse de verbas federais (ou, então, determinado o afastamento de restrições impostas à celebração de operações de crédito em geral ou à obtenção de garantias), sempre com o propósito de neutralizar a ocorrência de risco que possa comprometer, de modo grave e/ou irreversível, a continuidade da execução de políticas públicas ou a prestação de serviços essenciais à coletividade. Precedentes." [grifado] [06]

A posição de Dinamarco não discrepa:

"No sistema processual, ordinariamente as normas que instituem e regem os procedimentos são portadoras de suficientes oportunidades de participação em contraditório e esse é o fator que as legitima. Elas próprias não teriam legitimidade quando deixassem de oferecer reais oportunidades de participar. Por isso, é falsa a impressão de que a observância dos procedimentos estabelecidos em lei fosse em si mesma um fator de legitimação dos atos de poder (sentenças, ordem de entrega do bem na execução forçada). Em substância, o que legitima a outorga da tutela jurisdicional é a participação que o procedimento propiciou, em associação com a observância da legalidade inerente à garantia do devido processo legal. Um processo não será justo e equo quando os sujeitos não puderam participar adequadamente ou quando, por algum modo, haja o juiz avançado além de seus poderes ou transgredindo regras inerentes à disciplina legal do processo (due process of Law)". [07]

Diante dessas considerações, não é crível supor que o Poder Judiciário, garantidor das liberdades públicas, venha a sujeitar o patrimônio (bem), de quem quer que seja, à injusta restrição, sob pena de violar o devido processo legal (formal e substancial) que deve servir de esteio à ampla defesa e ao contraditório, a par de sua natureza dialógica.

Nesse contexto, conclui-se que é indispensável a participação do devedor hipotecário na relação jurídico-processual formada com o objeto de satisfazer a dívida materializada no aludido direito real de garantia.

SCHULZE, Clenio Jair; ANDERLE, Vitor Hugo. A relação jurídica processual na alienação judicial de imóvel hipotecado. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3089, 16 dez. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20671/a-relacao-juridica-processual-na-alienacao-judicial-de-imovel-hipotecado>.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Filho não consegue indenização por falta de afeto

Dar amor é obrigação moral e não legal. A partir dessa premissa, o juiz Ricardo Torres Soares, da 7ª Vara Cível de Belo Horizonte, não acolheu o pedido de um homem que entrou com ação de indenização por danos morais e materiais contra o pai. A paternidade só foi reconhecida quando o filho tinha 44 anos. Cabe recurso.

O juiz afirmou que não há provas de que o pai tenha sabido, desde sempre, ter o autor da ação como filho. “Ainda que assim fosse, não haveria dano moral pela negativa de afeto, pois, se não há uma lei impondo tal obrigação, sua inobservância não pode ser considerada ato ilícito e, por consequência, não pode embasar pedido de indenização.”  Acrescentou também que dar amor é uma obrigação moral.

O filho alegou ter nascido de um relacionamento secreto entre sua mãe e o pai, tendo morado com ele e os avós paternos até os 12 anos. Em 2004, propôs ação de investigação de paternidade contra o réu, que foi reconhecido como seu pai. Segundo ele, desde seu nascimento, o pai vem lhe prometendo ajuda, mas, mesmo depois de reconhecida a paternidade, jamais concretizou qualquer tipo de apoio.

O autor da ação pediu indenização por danos materiais de R$ 150 mil, já que, segundo afirmou, nunca gozou da educação, dos momentos de lazer e das ativideas culturais que o pai poderia ter lhe proporcionado. Pediu também R$ 100 mil por dano moral por ter sofrido abalo emocional, psicológico e social decorrente do não reconhecimento da paternidade.

O pai contestou, alegando que o autor da ação foi registrado pelo marido de sua mãe quando nasceu e recebeu nome em homenagem ao suposto pai. Argumentou que a mãe de seu filho nunca o procurou requerendo dele a paternidade e que o suposto pai é que teria cometido crime de registrar um filho que não era seu. Alegou ainda que falta de amor não é garantia de direito de reparação, o amor não pode ser imposto e, por isso, não se justificava o pedido de indenização por dano moral. Em relação à indenização por danos materiais, argumentou que fica excluída essa obrigação, uma vez que o filho, já adulto, pode se sustentar sozinho. Por fim, pediu que a ação fosse julgado improcedente.

O juiz negou os danos materiais. Ele levou em consideração a descoberta da paternidade pelo réu ter acontecido somente quando o filho tinha 44 anos. Para o juiz, depois de passar pela infância recebendo assistência daquele que julgava ser seu pai, não faz sentido o filho pedir indenização por danos materiais, que, na mesma época, não era reconhecido como seu pai biológico, não tendo, portanto, obrigação de sustentá-lo. O juiz entendeu que não houve demonstração do dano, o que afasta o pedido de indenização. Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-MG.

Revista Consultor Jurídico

Educação não se ministra com palmadas

É inaceitável que, em pleno século XXI, nossas crianças continuem padecendo de maus tratos, exploração e abusos, muitas vezes por parte daqueles que as deviam proteger.

E não se pense, nem minimamente, que tais abusos estão circunscritos às camadas de renda mais baixas da população, pois, tal manifestação se alastra como um câncer permeando todo o nosso tecido social.
É irrefutável a convicção de que a repressão a este calamitoso problema é desafio permanente para todos os operadores do Direito, sabedores que não bastam serem criadas novas leis, meramente pontuais, mas, sim, aplicar exemplarmente as existentes, respeitando-se rigidamente, todavia, os princípios legais de regência, como o devido processo legal, o contraditório, etc.

Neste diapasão, surge a discussão sobre o Projeto de Lei 2.654/2003, de autoria da então deputada (hoje ministra) Maria do Rosário (PT-RS), que versa sobre a proibição aos pais de infligirem castigos corporais ou tratamento cruel ou degradante aos seus filhos crianças ou adolescentes.

É a já conhecida “Lei da Palmada”, que pretende, a grosso modo,  prescrever a forma como os pais devem educar seus filhos.

Por óbvio, não se pode tolerar que os pais, a qualquer título, castiguem imoderadamente seus filhos menores e é a própria Carta Magna, de 1988, em seu artigo 227, que determina ser dever da família em relação à criança e ao adolescente “colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Na Roma antiga, o filho (filiifamilias) era objeto do direito absoluto e ilimitado do pai (paterfamilias), que podia abandoná-lo, vendê-lo, ou até mesmo executá-lo, pois exercia o direito de vida e morte sobre a pessoa daquele (jus vitae et necis).

Em Roma, desconheciam limites ao poder discricionário do pai sobre a pessoa e os bens do filho, estando submetido, unicamente, aos hábitos, às tradições e aos costumes vigentes.

Sobre o tema, escreveu o professor Silvio Rodrigues: “No Direito Romano, o pátrio poder é representado por um conjunto de prerrogativas conferidas ao pater, na qualidade de chefe da organização familiar, e sobre a pessoa de seus filhos. Trata-se de um direito absoluto, praticamente ilimitado, cujo escopo é efetivamente reforçar  a autoridade paterna, a fim de consolidar a família romana, célula-base da sociedade, que nela encontra o seu principal alicerce”. (in, Direito Civil, vol. 6, pág. 351, Saraiva).

Com o tempo e a evolução do pensamento e do Direito, foram se  estabelecendo limites ao exercício do pátrio poder, até os dias de hoje, em que seu exercício passou a espelhar uma perfeita combinação entre a autoridade dos genitores e o interesse da prole. Daí advindo, como conclusão lógica, que o pátrio poder não é mais - como no passado - um poder despótico, absoluto, que reduz a mero objeto a pessoa e os bens dos filhos menores. Muito pelo contrário!

É objetivo primordial do exercício do pátrio poder a educação e a formação da personalidade do filho, devendo ser exercido no interesse deste, visando a sua proteção. Daí decorre ser nomeado pelos nossos melhores tratadistas como direito-função ou mesmo direito-dever.

Traduz-se, pois, na lição do desembargador Paulo Dourado de Gusmão, “como mais dever do que direito, mais dever de proteção ao filho, de educá-lo, forjando o seu caráter, transformando-o em elemento útil à sociedade“. (in,  Dicionário de Direito de Família, pág. 812, Forense, 1985.)

Para coibir os abusos, o antigo Diploma Substantivo Civil brasileiro de 1916, em seu artigo 384, fixava as formas fundamentais para o exercício do poder-dever que é o pátrio poder, quais sejam: a criação e a educação dos filhos, seja na formação moral, seja na educação escolar, seja no desenvolvimento de hábitos salutares, seja na alimentação, no vestuário, na higiene, etc.

Enfim, devem os pais praticar todos os atos necessários ao perfeito desenvolvimento físico, moral e intelectual de seus filhos, mantendo-os sob sua guarda e vigilância, tratando-os com amor, carinho e compreensão, até que atinjam a maioridade ou a plena capacidade civil, visando transformá-los em cidadãos bem formados e úteis à sociedade.

Tais regras foram recepcionadas pelo Código Civil vigente, em seus artigos 1.630 e 1.638, com a substituição da antiga designação de pátrio poder por “Poder Familiar”.

O texto do Projeto de Lei “da Palmada” não discrimina o que seriam considerados castigos corporais e tratamentos cruéis. Um puxão de orelha, um beliscão, enquadraria o genitor como infrator? Não se sabe.
Sabe-se que todas as camadas da sociedade devem ser chamadas a debater tal Projeto de Lei, ao qual, a princípio, entendo por desnecessário, pois, além de não trazer nada de novo sobre a matéria, se constitui em mais uma indevida, desproporcional e inconstitucional interferência do Estado sobre as vidas das famílias brasileiras.

Devem, sim, os pais, exercer o seu poder familiar sobre os filhos menores com moderação e bom senso, pois, como já dito acima,  seu uso imoderado constitui abuso de direito, caso em que poderá ser suspenso ou mesmo perdido, dependendo da falta praticada pelo genitor, nos exatos termos do artigo 1.638 do Código Civil em vigor.

E, aliás, educação não se ministra com palmadas, mas com exemplos.

Luiz Octávio Rocha Miranda Costa Neves é advogado e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Revista Consultor Jurídico