É inaceitável que, em pleno século XXI, nossas crianças continuem padecendo de maus tratos, exploração e abusos, muitas vezes por parte daqueles que as deviam proteger.
E não se pense, nem minimamente, que tais abusos estão circunscritos às camadas de renda mais baixas da população, pois, tal manifestação se alastra como um câncer permeando todo o nosso tecido social.
É irrefutável a convicção de que a repressão a este calamitoso problema é desafio permanente para todos os operadores do Direito, sabedores que não bastam serem criadas novas leis, meramente pontuais, mas, sim, aplicar exemplarmente as existentes, respeitando-se rigidamente, todavia, os princípios legais de regência, como o devido processo legal, o contraditório, etc.
Neste diapasão, surge a discussão sobre o Projeto de Lei 2.654/2003, de autoria da então deputada (hoje ministra) Maria do Rosário (PT-RS), que versa sobre a proibição aos pais de infligirem castigos corporais ou tratamento cruel ou degradante aos seus filhos crianças ou adolescentes.
É a já conhecida “Lei da Palmada”, que pretende, a grosso modo, prescrever a forma como os pais devem educar seus filhos.
Por óbvio, não se pode tolerar que os pais, a qualquer título, castiguem imoderadamente seus filhos menores e é a própria Carta Magna, de 1988, em seu artigo 227, que determina ser dever da família em relação à criança e ao adolescente “colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Na Roma antiga, o filho (filiifamilias) era objeto do direito absoluto e ilimitado do pai (paterfamilias), que podia abandoná-lo, vendê-lo, ou até mesmo executá-lo, pois exercia o direito de vida e morte sobre a pessoa daquele (jus vitae et necis).
Em Roma, desconheciam limites ao poder discricionário do pai sobre a pessoa e os bens do filho, estando submetido, unicamente, aos hábitos, às tradições e aos costumes vigentes.
Sobre o tema, escreveu o professor Silvio Rodrigues: “No Direito Romano, o pátrio poder é representado por um conjunto de prerrogativas conferidas ao pater, na qualidade de chefe da organização familiar, e sobre a pessoa de seus filhos. Trata-se de um direito absoluto, praticamente ilimitado, cujo escopo é efetivamente reforçar a autoridade paterna, a fim de consolidar a família romana, célula-base da sociedade, que nela encontra o seu principal alicerce”. (in, Direito Civil, vol. 6, pág. 351, Saraiva).
Com o tempo e a evolução do pensamento e do Direito, foram se estabelecendo limites ao exercício do pátrio poder, até os dias de hoje, em que seu exercício passou a espelhar uma perfeita combinação entre a autoridade dos genitores e o interesse da prole. Daí advindo, como conclusão lógica, que o pátrio poder não é mais - como no passado - um poder despótico, absoluto, que reduz a mero objeto a pessoa e os bens dos filhos menores. Muito pelo contrário!
É objetivo primordial do exercício do pátrio poder a educação e a formação da personalidade do filho, devendo ser exercido no interesse deste, visando a sua proteção. Daí decorre ser nomeado pelos nossos melhores tratadistas como direito-função ou mesmo direito-dever.
Traduz-se, pois, na lição do desembargador Paulo Dourado de Gusmão, “como mais dever do que direito, mais dever de proteção ao filho, de educá-lo, forjando o seu caráter, transformando-o em elemento útil à sociedade“. (in, Dicionário de Direito de Família, pág. 812, Forense, 1985.)
Para coibir os abusos, o antigo Diploma Substantivo Civil brasileiro de 1916, em seu artigo 384, fixava as formas fundamentais para o exercício do poder-dever que é o pátrio poder, quais sejam: a criação e a educação dos filhos, seja na formação moral, seja na educação escolar, seja no desenvolvimento de hábitos salutares, seja na alimentação, no vestuário, na higiene, etc.
Enfim, devem os pais praticar todos os atos necessários ao perfeito desenvolvimento físico, moral e intelectual de seus filhos, mantendo-os sob sua guarda e vigilância, tratando-os com amor, carinho e compreensão, até que atinjam a maioridade ou a plena capacidade civil, visando transformá-los em cidadãos bem formados e úteis à sociedade.
Tais regras foram recepcionadas pelo Código Civil vigente, em seus artigos 1.630 e 1.638, com a substituição da antiga designação de pátrio poder por “Poder Familiar”.
O texto do Projeto de Lei “da Palmada” não discrimina o que seriam considerados castigos corporais e tratamentos cruéis. Um puxão de orelha, um beliscão, enquadraria o genitor como infrator? Não se sabe.
Sabe-se que todas as camadas da sociedade devem ser chamadas a debater tal Projeto de Lei, ao qual, a princípio, entendo por desnecessário, pois, além de não trazer nada de novo sobre a matéria, se constitui em mais uma indevida, desproporcional e inconstitucional interferência do Estado sobre as vidas das famílias brasileiras.
Devem, sim, os pais, exercer o seu poder familiar sobre os filhos menores com moderação e bom senso, pois, como já dito acima, seu uso imoderado constitui abuso de direito, caso em que poderá ser suspenso ou mesmo perdido, dependendo da falta praticada pelo genitor, nos exatos termos do artigo 1.638 do Código Civil em vigor.
E, aliás, educação não se ministra com palmadas, mas com exemplos.
Luiz Octávio Rocha Miranda Costa Neves é advogado e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Revista Consultor Jurídico
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