A recente crise desventrada para a sociedade entre CNJ e STF - e que deverá ter solução definitiva, em princípio do ano judiciário -, merece reflexão exclusivamente jurídica.
O primeiro aspecto a considerar é que a Emenda Constitucional nº45/04 não criou um controle externo da magistratura, como a grande maioria dos advogados desejava. Criou, isto sim, um controle "interno qualificado", visto que deslocou para uma instituição de Brasília o exame dos desvios funcionais dos servidores do Judiciário, principalmente dos magistrados. Assim é que, dos 15 conselheiros, 9 são magistrados, 4 representam instituições fundamentais à judicatura (2 advogados e 2 membros do "Parquet") e apenas 2 elementos são externos (1 representante do Senado e outro da Câmara dos Deputados).
Em audiência pública, a convite do Senador Bernardo Cabral, opus-me, ainda na fase de discussão do projeto original, a um controle externo, que, a meu ver, feriria o artigo 2º da Constituição Federal, segundo o qual os Poderes são harmônicos e independentes. Naquela audiência, de que participaram os presidentes do STF, STJ e um Ministro do TST (Marco Aurélio de Mello, Costa Leite e Ives Gandra Filho), expus as razões de minha postura, de resto, publicamente manifestada em palestras e artigos.
O certo é que o bom senso do Congresso Nacional, do Ministro Márcio Thomas Bastos e de Sergio Renault, terminou por desaguar em fórmula na qual o artigo 2º da C. Federal não saiu maculado, outorgando-se ao CNJ competência originária, concorrente e recursal para todos os casos de desvios funcionais, no Poder Judiciário.
A inércia de grande parte das Corregedorias ou Conselhos da Magistratura, que não puniam - mas que tiveram suas competências preservadas (artigo 103-B artigo 4º inciso V), cabendo, em face de suas decisões, recurso ao CNJ -, levou à criação do inciso III, do § 4º, do artigo 103-B, ou seja, o direito de o CNJ conhecer, originariamente, de qualquer reclamação contra servidores do Judiciário, Magistrados ou Serventuários, sendo essa norma, de rigor, a mais relevante da E.C. 45/04 e a verdadeira razão da criação do CNJ. Está o inciso III assim redigido:
"III - receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa;" (Grifos meus).
Ora, pretender que esta competência seja apenas protocolar, ou seja, de receber reclamações e enviá-las para as Corregedorias ou Conselhos de Magistratura, é, à evidência, nulificar, por inteiro, a razão de ser da criação do CNJ.
Tanto é coerente esta linha de raciocínio, que, tão logo criado e dirigido, durante 6 anos, por 3 presidentes do STF (Nelson Jobim, Gilmar Mendes e Ellen Gracie) e integrado por 45 Conselheiros, em 3 mandatos, o CNJ decidiu, no exercício de sua competência originária, concorrente e recursal, dezenas de processos contra Magistrados, sem que se pusesse em questão sua linha de ação, de resto, reconhecida pela Nação como necessária para punir desvios que existem em quaisquer instituições e realçar o fato de ser o Poder Judiciário, de todos os Poderes, aquele em que tais distorções menos ocorrem.
Ora, a decisão inicial do Ministro Marco Aurélio de Mello, a quem devoto particular admiração - é antológico o voto que proferiu na questão Raposa Terra do Sol - de suspender o exercício de tal competência até manifestação do Plenário, parece-me equivocada. De início, porque desautoriza seis anos de atuação do CNJ no exercício das competências atribuídas pela Constituição; depois, porque autoriza todos os que foram punidos pela instituição a pedirem imediata reintegração nas funções exercidas e indenizações por danos morais, em face de terem sido condenados por órgão incompetente.
Do ponto de visto jurídico, portanto, nada obstante o indiscutível valor do Ministro - participei de dois livros organizados em justa homenagem a sua atuação como Magistrado - parece-me equivocada a decisão, tanto assim que três Ministros que presidiram o CNJ e 45 Conselheiros, nos seis anos de sua atuação anterior, jamais detectaram qualquer vício de competência.
Do ponto de vista político, a decisão poderá levar o Congresso a instituir um verdadeiro controle externo da Magistratura, e não um controle interno qualificado, como existe atualmente.
Por fim, do ponto de vista social, a decisão terminou colocando a mídia e a sociedade contra o Poder Judiciário, gerando, de rigor, uma desconfiança no mais respeitável dos Poderes, o que não é bom para a democracia brasileira.
Tais considerações eu as faço, pelas preocupações que me assaltam, nestes meus 55 anos de exercício profissional, na esperança de que o Plenário da Suprema Corte, ao examinar esta decisão, ao lado das outras duas prolatadas pelos Ministros Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski - igualmente Magistrados e doutrinadores de escol neste País -, reconheça aquela competência originária, exercida, sem quaisquer contestações, durante 6 anos, pelo CNJ.
Só assim, a injusta desfiguração do Judiciário, promovida pelos mais variados comentários, diante da divergência, publicamente manifestada, entre os Ministros Peluso e Eliana Calmon, poderá ser apagada. Na democracia, que tem como símbolo maior o direito de defesa - nas ditaduras ele inexiste -, cabe ao Poder Judiciário a relevantíssima função de garanti-lo. E um Poder Judiciário forte e respeitado é a maior garantia de um Estado Democrático de Direito.
Jornal Carta Forense, domingo, 12 de fevereiro de 2012
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