O art. 982 do Código de Processo Civil foi alterado pela Lei 11.441/07,
passando a ter a seguinte redação: “Havendo testamento ou interessado
incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e
concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura
pública, a qual constituirá título hábil para o registro imobiliário”.
Portanto, com o advento da Lei 11.441/07, permitiu-se o inventário e a
partilha por escritura pública, a critério dos interessados, desde que
todos sejam capazes e concordes, e não haja testamento.
Inicialmente prevaleceu uma interpretação literal, pela qual a existência de testamento, ainda que caduco ou revogado
, impedia a lavratura de escritura pública de inventário e partilha.
Com o decorrer do tempo, tal interpretação passou a ser questionada.
Seria realmente a vontade do legislador impedir a lavratura da escritura
no caso de testamentos caducos ou revogados?
Esta a controvérsia que abordaremos neste breve estudo.
Não podemos nos afastar da mens legis. O Código Civil português, em seu
art. 9º, cuida da interpretação da lei nos seguintes termos:
, ao apresentar seu
relatório à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, quanto
ao projeto que deu origen à Lei 11.441/07, afirmou:
Verifica-se que o projeto inicial foi ampliado
[4],
nascendo a Lei 11.441/07 dentro da proposta inserida no ‘Pacto de
Estado em Favor de um Judiciário mais Rápido e Republicano’. A ampliação
do projeto inicial não pode ser olvidada, mesmo porque motivada pelos
objetivos do referido Pacto. Resta claro que a intenção foi afastar do
Poder Judiciário o que pode ser solucionado por outras formas, o que
deve ser considerado na interpretação da lei modificadora.
Dessa forma, foram possibilitados o inventário e a partilha
administrativos, sem restrições quanto ao monte partível, não havendo
incapazes e testamento, justificando o relator Maurício Rands a
restrição quanto ao testamento, que reproduzimos por ser o ponto de
interesse: “Importante explicar que a restrição imposta à realização do
procedimento extrajudicial nos casos em que exista testamento, deve-se
ao fato de que a prática forense tem demonstrado que a interpretação
desses documentos geralmente suscita grandes divergências entre os
herdeiros, o que aumenta consideravelmente as chances de uma partilha
consensual, posteriormente, transformar-se litigiosa, o que inutilizaria
os atos praticados no procedimento extrajudicial”.
O legislador, portanto, restringiu a lavratura da escritura pública em
razão de grandes divergências na interpretação dos testamentos pelos
herdeiros. Aqui o ponto nodal: só haverá divergência na interpretação
dos testamentos se estivermos diante de um testamento válido e eficaz.
Na hipótese de testamento revogado ou caduco, inviável qualquer
discussão sobre sua interpretação, posto que o testamento já não estará
apto a produzir qualquer efeito, não se justificando qualquer restrição à
realização do procedimento administrativo.
O espírito da Lei 11.441/07, no momento histórico em que foi editada,
não era outro senão simplificar, tornar mais célere, facilitar o
inventário e a partilha. Interpretar literalmente o disposto no art. 982
da lei processual civil não atende à intenção da lei.
O Ministro de Estado da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, ao encaminhar ao
Presidente da República o Projeto de Lei que redundou na Lei 11.441/07,
afirmou que “sob a perspectiva das diretrizes estabelecidas para a
reforma da Justiça faz-se necessária a alteração do sistema processual
brasileiro, com o escopo de conferir racionalidade e celeridade ao
serviço de prestação jurisdicional, sem, contudo, ferir o direito ao
contraditório e à ampla defesa. De há muito surgem propostas e
sugestões, nos mais variados âmbitos e setores, de reforma do processo
civil. Manifestações de entidades representativas, como o Instituto de
Direito Processual Brasileiro, a Associação dos Magistrados Brasileiros,
a Associação dos Juízes Federais do Brasil, de órgãos do Poder
Judiciário, do Poder Legislativo e do próprio Poder Executivo são
acordes em afirmar a necessidade de alteração de dispositivos do Código
de Processo Civil e da Lei de Juizados Especiais, para conferir
eficiência à tramitação de feitos e
evitar a morosidade que
atualmente caracteriza a atividade em questão. A proposta prevê a
possibilidade de realização de inventário e partilha por escritura
pública, nos casos em que somente existam interessados capazes e
concordes. Dispõe, ainda, a faculdade de adoção do procedimento citado
em casos de separação consensual e de divórcio consensual, quando não
houver filhos menores do casal. Entendo não existir nenhum motivo
razoável de ordem jurídica, de ordem lógica ou de ordem prática que
indique a necessidade de que atos de disposição de bens, realizados
entre pessoas capazes - tais como os supracitados, devam ser
necessariamente processados em juízo, ainda mais onerando os
interessados e agravando o acúmulo de serviço perante as repartições
forenses” (grifos nossos)
[5].
3) O notário como profissional do direito.
Tive oportunidade de abordar, por ocasião da edição da Lei 11.441/07, a
qualidade de profissionais do direito dos notários e registradores.
Naquela oportunidade
[6], em texto intitulado “A
Lei 11.441/07 e um novo tempo para afirmar a independência jurídica dos
tabeliães e registradores, profissionais do direito”, afirmei que:
“A Lei 8.935, de 18 de novembro de 1.994, ao regulamentar o art. 236
da Constituição Federal definiu os tabeliães e registradores como
profissionais do direito.
Dispõe o art. 3° da referida lei:
“Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro” (grifo nosso).
Passados mais de treze anos (à época da publicação do texto) de
vigência da lei lamentavelmente ainda vemos alguns tabeliães e
registradores agindo como simples amanuenses e, especialmente, uma gama
de pessoas que não os vêem como verdadeiros profissionais do direito.
Infelizmente dentre tais pessoas muitas vezes nos deparamos com
integrantes do Poder Judiciário, incumbido pela Carta Magna da
fiscalização
dos atos praticados por tabeliães e
registradores (§1° do art. 236, in fine), sem que tal poder, contudo,
importe em subordinação hierárquica no exercício das funções. O limite
do poder de fiscalização dos atos pelo Judiciário é ainda ponto nebuloso
no exercício da atividade, agravado pela ausência de regulamentação de
normas legais relativas à atividade e pela existência de custos,
agregados aos emolumentos, que se destinam ao Poder Judiciário e outras
entidades, fazendo vicejar um cipoal de normas administrativas que
servem de antolhos aos tabeliães e registradores.
O momento, no entanto, é de afirmação da qualidade conferida pela Lei
8.935/94. O Poder Legislativo tem reconhecido tal qualidade e cabe aos
tabeliães e registradores se fazerem respeitar como profissionais do
direito. Não devem aceitar a imposição de fórmulas; devem exercer
efetivamente as funções notariais e registrais. Claro que respeitando a
fiscalização dos atos pelo Poder Judiciário e suas decisões, mas jamais
deixando de analisar sob o foco jurídico os atos em que são chamados a
intervir
[7].
A independência jurídica dos tabeliães e registradores não é novidade
na doutrina internacional, e o ‘modelo da independência jurídica do
registrador e do notário, como foi antecipado, ajusta-se, entre nós, ao
direito posto: notário e oficial de registro são profissionais do
direito, dotados de fé pública (art. 3°, da Lei 8.935/1994), gozando de
independência no exercício de suas atribuições’ (art. 28, da Lei cit.).
[8]
E em que contexto vem se dando a valorização da qualidade de
profissionais do direito? Dentro das medidas legislativas na busca de
soluções mais céleres, simples, e menos onerosas para a solução de
determinadas questões, antes de exclusiva atuação do Poder Judiciário.
Exemplificando: a Lei 9.492/97, que regulamenta os serviços
concernentes ao protesto de títulos e outros documentos de dívida, ao
alargar significativamente o rol dos documentos que podem ser
apresentados ao tabelionato de protestos; a Lei 9.307/96, que dispõe
sobre a arbitragem, que significa a resolução do litígio por meio de
árbitros, com a mesma eficácia da sentença judicial; a Lei 9.514/97, ao
instituir a alienação fiduciária de coisa imóvel e a solução
extrajudicial em caso de descumprimento do contrato (dando mais
celeridade à recuperação do crédito e, portanto, mais eficácia à
garantia); a Lei 10.931/04, que alterou o art. 213 da Lei 6.015/73
permitindo a retificação administrativa do registro imobiliário; e
finalmente a Lei 11.441/07, que alterou o Código de Processo Civil para
permitir que o inventário e a partilha, assim como a separação e o
divórcio, na inexistência de incapazes, se façam por escritura pública.
Verifica-se, portanto, uma tendência de afastar do Poder Judiciário
conflitos que comportem outro meio de solução. A morosidade do Poder
Judiciário, já bastante assoberbado, e o custo do acesso à justiça
incrementam as atividades que permitem aos interessados ver suas
questões decididas sem intervenção do Poder em foco, que deve ser
reservado para decidir conflitos em que seu atuar seja imprescindível.
A atuação do tabelião, seja de notas ou de protesto, e do registrador
imobiliário, vem se expandindo, como se vê pela evolução legislativa.
Reconhece o legislador federal serem os profissionais adequados, em
razão de sua tradição e de sua independência jurídica, a colaborar na
solução mais célere de diversas questões, sem que se prescinda da
segurança jurídica e da eficácia.
Entretanto, editada a Lei 11.441/07, que valorizou enormemente a
profissão dos tabeliães e registradores, vivemos momentos de
perplexidade. Muitos aguardaram orientações das Corregedorias para
aplicação da lei; algumas Corregedorias, extrapolando suas funções, se
movimentaram para expedir normas, chegando a do Estado do Acre a criar
modelos a serem seguidos.
Como profissionais do direito, com independência jurídica, devem
tabeliães e registradores praticar os atos como autorizados pela lei.
Não dependem de qualquer orientação ou autorização administrativa, nem a
elas estão sujeitos. Em verdade, tabeliães e registradores não podem
deixar de praticar os atos solicitados pelos interessados que preencham
os requisitos legais, cabendo-lhes dar a correta interpretação jurídica
aos dispositivos legais aplicáveis. São ônus do exercício da função. O
que devem, e efetivamente fazem, é debater e analisar os avanços
legislativos em seus institutos de estudo, para que atuem sempre com
mais segurança.
Diante da inexorável conclusão de que as circunstâncias favorecem a
afirmação da qualidade de profissionais do direito, como tais devem agir
todos os tabeliães e registradores, atuando incontinenti diante de
qualquer alteração legislativa que alargue o âmbito de suas atribuições.
Encerro transcrevendo pensamento do Des. Ricardo Dip, em Registro de Imóveis
[9]:
‘decidir que futuro haverá para as instituições do registro e das notas
é escolher já, como faz quem se adverte responsável pelo tempo que
passa, se essas instituições detêm liberdade jurídica para sua atuação
profissional. Sem essa liberdade, correm risco de com ela morrerem a
autonomia de vontades e a propriedade particular. Nisso há também um
risco da decisão, mas esse risco é o que valoriza a liberdade’. E na
esteira da Lei 11.441/07 devemos já afirmar e confirmar a independência
jurídica dos tabeliães e registradores, profissionais do direito”.
O texto produzido há mais de cinco anos, e parcialmente ora
reproduzido, ainda é atual. Tabeliães têm se furtado a lavrar escrituras
de inventário e partilha sob alegação de que testamentos revogados e
caducos impedem a prática do ato. S.M.J., cuida-se de interpretação
equivocada, apenas literal e dissociada do momento que vivemos, dando
azo, ainda, a que nos tachem de meros amanuenses, quando somos
profissionais do direito amplamente habilitados a verificar se um
testamento está revogado ou caducou, no exercício de nossa atividade
jurídica.
4) O correto entendimento do Judiciário paulista.
A Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo editou o
Provimento CG Nº 40/2012, alterando as Normas de Serviço para manifestar
expressamente o entendimento que ora se busca sustentar.
O mencionado Provimento alterou o Capítulo XIV das Normas de Serviço da
Corregedoria Geral da Justiça, que atualmente estabelece: “129.
É
possível a lavratura de escritura de inventário e partilha nos casos de
testamento revogado ou caduco ou quando houver decisão judicial, com
trânsito em julgado, declarando a invalidade do testamento.
129.1. Nessas hipóteses, o Tabelião de Notas solicitará, previamente, a
certidão do testamento e, constatada a existência de disposição
reconhecendo filho ou qualquer outra declaração irrevogável, a lavratura
de escritura pública de inventário e partilha ficará vedada e o
inventário far-se-á judicialmente” (grifo nosso).
A manifestação da Corregedoria, a meu ver, seria desnecessária, pois ao
tabelião cabe interpretar a lei e aplicá-la. Contudo, é muito salutar,
pois gera um ambiente de segurança para aqueles que temem assumir os
riscos da interpretação, sejam tabeliães ou registradores a quem os
títulos vierem a ser apresentados para acesso ao fólio real.
Com efeito, a hipótese de invalidade do testamento, elencada pela
Corregedoria paulista, deve ser precedida de decisão judicial, mas no
caso de testamento revogado ou caduco, é desnecessária qualquer
manifestação judicial, sendo viável a lavratura da escritura, cabendo ao
tabelião verificar a ocorrência da revogação ou a caducidade.
A doutrina já se manifesta no mesmo sentido. Christiano Cassettari
[10]
afirma, com propriedade, que “quando o legislador menciona, ‘havendo
testamento’ se procederá ao inventário judicial, isso deverá ocorrer
somente quando houver previsão expressa sobre disposição patrimonial que
impeça a aplicação da sucessão legítima, alterando as regras de
transferência da propriedade aos herdeiros legítimos, sob pena de
chegarmos ao cúmulo de impedir que o inventário extrajudicial ocorra,
por exemplo, no caso de o testador ter feito um testamento para revogar
um anterior, para que em sua sucessão sejam aplicadas as regras da
sucessão legítima”. O autor traz à baila situação que já enfrentei na
prática notarial: clientes que, tomando conhecimento da Lei 11.441/07,
decidiram revogar o testamento para que seus sucessores não precisem
recorrer ao Judiciário, para que possam processar a sucessão
administrativamente, entendendo que, com a revogação, por ocasião do
óbito não terão testamento válido e eficaz a impedir a lavratura de
escritura de inventário e partilha.
Conclui Christiano Cassettari, comentando a nova redação das Normas da
Corregedoria paulista: “acreditamos que essa regra em breve estará nas
normas de serviços de todos os estados brasileiros, para que a população
possa se beneficiar dela, permitindo que nesses casos o inventário
possa ser feito, também, em cartório”.
Anote-se, por fim, a existência de decisões judiciais admitindo a
escritura pública de inventário e partilha ainda que exista testamento
válido e eficaz (p. ex., 7ª Vara da Família e Sucessões, Comarca de São
Paulo – Proc. nº: 0052432-70.2012.8.26.0100). São decisões de vanguarda
que certamente inspirarão o legislador a avançar. Sendo todos capazes e
concordes com os termos do testamento, inclusive com eventuais gravames
impostos pelo testador, o que justifica impedir o inventário e a
partilha administrativos? Vale salientar que muitas pessoas evitam o
inventário e a partilha com doações, impondo por vezes cláusulas
restritivas, o que não encontra qualquer óbice na legislação. Não
deveria haver impedimento, também, que os beneficiários do testamento
promovessem o inventário e a partilha administrativamente, como já
afirmado.
5) Conclusão.
Diante de todo o exposto, entendo que a lavratura das escrituras
públicas de inventário e partilha não pode ser obstada pela existência
de testamento revogado ou caduco, para que não se fira o espírito da
lei. Acrescente-se a hipótese relacionada pela Corregedoria paulista:
quando houver decisão judicial, com trânsito em julgado, declarando a
invalidade do testamento.
Nas hipóteses ventiladas, não faz qualquer sentido remeter os
interessados, necessariamente, para a via judicial. Havendo testamento
válido e eficaz, o inventário e a partilha judiciais são precedidos do
procedimento previsto no art. 1.125 e seguintes do Código de Processo
Civil, de abertura, registro e cumprimento do testamento, no qual o
magistrado, após oitiva do Ministério Público, mandará cumprir o
testamento “se lhe não achar vício externo, que o torne suspeito de
nulidade ou falsidade (art. 1.126)”. Se o testamento foi revogado ou
caducou, não se aplicará o referido procedimento especial de jurisdição
voluntária, pois inexiste testamento a cumprir. O que deverá o
magistrado mandar cumprir? Nada a cumprir quanto a disposições de última
vontade, pois a sucessão obedecerá às regras da sucessão legítima.
Assim, diante de um testamento revogado ou caduco, em juízo somente se
processam o inventário e a partilha, como se testamento não houvesse (e
efetivamente não há testamento eficaz, apto a produzir efeitos).
Portanto, a intervenção judicial somente se dará no processamento do
inventário e da partilha e, neste caso, a lei faculta às partes optar
pela via administrativa, não havendo incapazes.
Dessa forma, analisando os casos concretos e estando seguros da
revogação ou da caducidade, devem os tabeliães lavrar as escrituras
independentemente de qualquer autorização das corregedorias, pois o
fundamento para a lavratura está na Lei 11.441/07, e não em qualquer ato
administrativo, assim como devem os oficiais de registro acolhê-las no
fólio real. Não obstante, a edição de normas pelas corregedorias é
salutar, pois colabora para a uniformização do entendimento. Ainda
vivemos um momento de transição no qual alguns notários e registradores
temem assumir o papel reconhecido em lei de profissionais do direito,
necessitando de apoio em regras administrativas.
As mudanças legislativas muitas vezes são tímidas, o que certamente
impediu que, por ocasião da edição da Lei 11.441/07, se autorizasse a
lavratura de escrituras de inventário e partilha mesmo havendo
testamento válido e eficaz, na hipótese de herdeiros capazes. Certamente
vamos avançar nesse sentido.
SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de.
Inventário e partilha administrativos havendo testamento caduco ou revogado.
Jus Navigandi, Teresina,
ano 18,
n. 3741,
28 set. 2013
.
Disponível em:
<http://jus.com.br/artigos/25416>. Acesso em:
30 set. 2013.
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