terça-feira, 15 de outubro de 2013

Modalidades legais de proteção do vulnerável (Paulo Lôbo)



                   A liberdade contratual pressupõe o exercício de três liberdades de escolha interligadas: a) a liberdade de escolher o outro contratante; b) a liberdade de escolher o tipo contratual; c) a liberdade de determinação do conteúdo. A intervenção legislativa, no Estado social, para realizar a proteção do contratante vulnerável, vale-se de correspondentes modalidades de limitação da liberdade contratual, a saber:
                   I - limitação da liberdade de escolha do outro contratante, sobretudo nos setores de fornecimento de serviços públicos (água, luz, telefone, transporte etc), ou monopolizados. O contratante fornecedor é obrigado a  prestar o serviço a qualquer pessoa que o demande. Cuida-se de obrigação compulsória de fazer, não podendo haver recusa discricionária à contratação, que poderá ser determinada judicialmente, além de importar indenização por perdas e danos;
            II - limitação da liberdade de escolha do tipo contratual, quando a lei estabelece os tipos contratuais exclusivos em determinados setores, a exemplo dos contratos de licença ou cessão, no âmbito da lei de software, e dos contratos de parceria e arrendamento no âmbito do direito agrário. São contratos típicos, que consistem em numerus clausus. Nesta hipótese, cessa a liberdade de escolher ou criar outros, pois o legislador presume que os tipos que definiu são os que melhor protegem o contratante vulnerável, segundo os dados da experiência. As leis, principalmente o Código Civil, regulam os tipos que já estão consagrados no tráfico jurídico: compra e venda, doação, permuta, empréstimo, mandato, locação, fiança, empreitada, corretagem, transporte, seguros. Porém, essa regulação é tradicionalmente supletiva, com uso de normas jurídicas dispositivas, ou seja, apenas incidem sobre os contratos se as parte não tiverem estipulado de modo diferente ao que elas dispuseram;
                   III - limitação da liberdade de determinação do conteúdo do contrato, parcial ou totalmente, quando a lei define o que ele deve conter de forma cogente, total ou parcialmente, como no contrato de locação residencial, nos contratos do sistema financeiro da habitação, no contrato de turismo, no contrato de seguro. O contratante que exerce o poder negocial dominante não pode contrariar os conteúdos fixados por lei, que dizem respeito à essência desses contratos protegidos.
                   O Estado liberal era tendencialmente não-cogente, pois a função básica do direito era a de suplementar a autonomia privada. A doutrina tradicional pôs como fontes de limitação apenas os bons costumes e a ordem pública, repercutindo o ideário liberal burguês da primazia do individualismo, negando-se o poder de intervenção do Estado legislador, administrativo ou judicial, para realização da justiça social nas atividades econômicas.
                   As normas jurídicas não-cogentes já constituem, em grau menor, uma técnica legislativa de previsão de conteúdo e futuro de eficácia do negócio jurídico, tomando o lugar das manifestações de vontade que não foram feitas. O Estado social, todavia, intervém na ordem econômica privada para proteger a parte juridicamente vulnerável e evitar o abuso do poder negocial da outra, o que importa crescente utilização de normas cogentes (proibitivas ou imperativas), limitando o uso das normas dispositivas ou supletivas e a própria autonomia privada.
                   A modalidade mais incisiva e eficaz do contratante vulnerável, além das três referidas, que o legislador passou a utilizar, é a de sancionar com nulidade o contrato ou partes dele que comprometem a equivalência material, ou seja, quando levam à vantagem excessiva para quem exerce o poder negocial e desvantagem ou onerosidade excessiva para quem não detém poder de barganha. As cláusulas correspondentes são consideradas abusivas, consequentemente, nulas. A nulidade é contextual, ou seja, quando há ocorrência de abusividade e de presunção de vulnerabilidade, pois, no contexto de contrato paritariamente negociado, não se cogita de nulidade. Por exemplo, a Medida Provisória 2.172-32, de 2001, estabelece que são nulas “de pleno direito” as estipulações usurárias, assim consideradas as que estabeleçam nos contratos civis de mútuo, taxas de juros superiores às legalmente permitidas, caso em que deverá o juiz, se requerido, ajustá-las à medida legal, e, nos negócios jurídicos não disciplinados pelas legislações comercial e de defesa do consumidor, lucros ou vantagens patrimoniais excessivos, estipulados em situação de vulnerabilidade da parte, caso em que deverá o juiz, se requerido, restabelecer o equilíbrio da relação contratual. Foi, porém, no direito do consumidor que o legislador melhor imprimiu essa orientação. A invalidade absoluta reforça o caráter de ordem pública da proibição: as cláusulas abusivas são insuscetíveis de convenção ou convalescimento. O interesse protegido não pertence individualmente ao consumidor, mas a toda comunidade potencialmente atingida, o que permite o ajuizamento de ação civil pública por legitimado coletivo. Pudesse haver uma gradação de invalidade, as hipóteses sujeitas a anulabilidade restariam desprotegidas, porque dependentes de decisão do interessado direto (o consumidor). Duas ordens de problemas contribuiriam para se frustrar o objetivo legal:
                   a) a inércia do consumidor e seu temor aos riscos da demanda, comuns nas relações de consumo;
                   b) o estímulo ao abuso do poder negocial, que contaria com a omissão dos contratantes consumidores, ante a ausência de proibição legal absoluta às cláusulas abusivas.
                   As cláusulas abusivas, nas relações contratuais de consumo, e as condições gerais abusivas nos contratos de adesão atingem uma vasta pluralidade de sujeitos vulneráveis. Por isso, o estímulo à estruturação prevalecente  de remédios preventivos, inibitórios, alcançando diretamente as fontes do abuso[11]. O aderente não precisa aguardar a decisão judiciária para deixar de cumprir as cláusulas abusivas assim qualificadas. A declaração de nulidade opera ex tunc e a cláusula, por ser absolutamente inválida, nunca se integra ao contrato nem produz efeitos jurídicos. A nulidade das cláusulas abusivas não invalida o contrato totalmente, salvo se ocorrer ônus excessivo para qualquer das partes, mantendo-se na parte remanescente. Impõe-se o princípio da conservação do negócio jurídico, desde que guardada a equivalência material.
                   O direito do consumidor, que despontou com força nas últimas décadas, provocou mudanças substanciais no direito contratual, impondo-se ao plano da teoria geral dos contratos, pois não trata de situações especiais e episódicas, mas da maior parte das relações negociais entretecidas no mundo atual pelas pessoas físicas. O diálogo entre o direito contratual comum e o direito contratual do consumidor terminaria por ser intensificado, como ocorreu com o Código Civil alemão que passou a tratar conjuntamente de ambos, após as profundas reformas do direito das obrigações, ocorridas nos anos de 2001 e 2002. No Brasil, a harmonização entre essas dimensões do direito contratual tem sido profícua na doutrina e na jurisprudência dos tribunais, para o que muito contribui a compreensão da vulnerabilidade como categoria jurídica relevante.
            A ausência do contratante vulnerável legalmente presumido não afasta outros modos de limitação da autonomia privada, para prevenir vulnerabilidades ocasionais ou circunstanciais. A legislação atual prevê regras voltadas à preservação da equivalência material dos contratos, algumas das quais tinham sido suprimidas da codificação civil liberal, como o estado de perigo, a lesão, a onerosidade excessiva em razão de circunstâncias supervenientes e imprevistas, a resilição unilateral, as fases pré e pós-contratual, as limitações dos juros de mora e da cláusula penal, a flexibilização dos vícios redibitórios, a evicção.



LÔBO, Paulo. Contratante vulnerável e autonomia privada. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3749, 6 out. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25358>. Acesso em: 15 out. 2013.

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