terça-feira, 15 de outubro de 2013

Relatividade da autonomia privada (Paulo Lôbo)



          
         Apenas com o advento do Estado liberal, pode cogitar-se do que passou a se denominar autonomia privada, até porque o indivíduo e sua vontade livre passaram a ser o centro da destinação do direito, difundindo-se a concepção de liberdade negativa em contraposição à liberdade positiva dos antigos. No Estado liberal, a autonomia justificava-se por si mesma. Dizer que a vontade era autônoma ou livre era quase um truísmo, dada a força da ideologia dominante, que a fundava nas idéias inatas de liberdades absolutas de propriedade e dos negócios. O livre jogo das forças de mercado conduzia ao equilíbrio de interesses e dos poderes econômicos distintos. Essa origem, de forte matiz ideológico e resultante de contingências históricas, não poderia ser abstraída com o advento do Estado social.
                    A natureza intervencionista do Estado social, para os fins de proteção das pessoas vulneráveis, é incompatível com a recepção plena do princípio da autonomia privada. A Constituição brasileira refere explicitamente à livre iniciativa, mas não à autonomia privada, porque esta é necessariamente limitada e limitável. A autonomia privada é mais ampla que a livre iniciativa; esta é expressão parcial daquela. A livre iniciativa é liberdade de criar e exercer empreendimentos ou atividades econômicas.
                   Nem todos os atos de autonomia privada se enquadram nesse conceito de livre iniciativa; os atos realizados entre pessoas particulares, inclusive contratos, sem relação com atividade econômica, os atos realizados no âmbito do direito de família ou das sucessões são de autonomia privada, mas não de livre iniciativa. Depreende-se que há atos de autonomia privada dentro e fora da livre iniciativa. Não há, pois, princípio constitucional da autonomia privada ou da liberdade contratual. Nessa linha, decidiu o Conselho Constitucional francês (Decisão 94-348) que “nenhuma norma de valor constitucional garante o princípio da liberdade contratual” [13].
                   Nos Estados Unidos, a Corte Suprema constitucionalizou a autonomia privada durante o predomínio do liberalismo individualista, com intuito de barrar as leis que intervinham nas relações privadas de caráter econômico, até que, em 1934, reformulou totalmente sua orientação para considerar constitucional a legislação intervencionista do New Deal e, consequentemente, desconstitucionalizar a autonomia privada, que passou a ser tida apenas como princípio de direito privado, suscetível de limitação no interesse geral. Na Alemanha, Raiser afirma que não é claro que a Constituição (Lei Fundamental) garanta a liberdade contratual[14].
                   A limitação jurídica do espaço da autonomia privada, para evitar que seja explorada pelo poder negocial dominante em seu interesse, representa um profundo abalo ao próprio princípio, enquanto deixa de ser explicado pelo poder de autonomia, de acordo com sua fundamentação política, para sê-lo por seu contrário (o limite, a restrição). Na medida em que crescem o controle e a limitação estatais e sociais, reduz-se o espaço de autonomia.

LÔBO, Paulo. Contratante vulnerável e autonomia privada. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3749, 6 out. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25358>. Acesso em: 15 out. 2013.

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