A admissão da vulnerabilidade como categoria jurídica do direito contratual
importa giro copernicano, que desafia a concepção liberal da autonomia privada,
máxime em tempos de grave crise financeira mundial, que pôs a nu a
universalização dos malefícios da ideologia do neoliberalismo, prenunciada por
Avelãs Nunes[2]. A vulnerabilidade do contratante é fruto do
Estado social, do século XX, com suas promessas de realização da justiça social
e redução das desigualdades sociais, que no Brasil projetaram-se nas
Constituições de 1934 a 1988, especialmente nesta.
No que respeita aos contratos, o Estado social caracteriza-se justamente pela
função oposta à cometida ao Estado liberal mínimo. O Estado não é mais apenas o
garantidor da liberdade e da autonomia contratual dos indivíduos; vai além,
intervindo profundamente nas relações contratuais, ultrapassando os limites da
justiça comutativa para promover, não apenas a justiça distributiva, mas
também a justiça social. Diferentemente da justiça comutativa (dar a cada um o
que é seu, considerando cada um como igual – transportando-se para o contrato o
princípio da igualdade jurídica formal) e da justiça distributiva (dar a cada
um o que é seu, considerando a desigualdade de cada um – no plano contratual,
atribuindo mais tutela jurídica ao contratante que o direito presume
vulnerável, a exemplo do trabalhador, do inquilino, do consumidor, do
aderente), a justiça social implica transformação, promoção, mudança, segundo o
preciso enunciado constitucional: “reduzir as desigualdades sociais” (arts. 3º,
III, e 170, VII, da Constituição brasileira). Com efeito, enquanto as justiças
comutativa e distributiva qualificam as coisas como estão, a justiça social tem
por fito transformá-las, de modo a reduzir as desigualdades.
A intervenção do Estado nas relações econômicas privadas, que caracteriza
profundamente o Estado social, tem sob foco principal o contrato, como
instrumento jurídico por excelência da circulação dos valores e titularidades
econômicos, e precisamente da proteção dos figurantes mais fracos ou
vulneráveis. No Brasil, ao longo do século passado, o direito passou a presumir
a vulnerabilidade de determinados figurantes, merecedores de proteção legal e
de conseqüente restrição do âmbito de autonomia privada, quando esta é
instrumento de exercício de poder do outro figurante (ou parte contratual).
Assim, emergiram os protagonismos do mutuário, com vedação dos juros usurários
(Dec. 22.626, de 1933), do inquilino comercial (Dec. 24.150, de 1934; atualmente,
Lei 8.245, de 1991) e do promitente comprador de imóveis loteados (Dec.-Lei 58,
de 1937), na década de trinta; do trabalhador assalariado (Consolidação das
Leis do Trabalho, de 1943), na década de quarenta; do inquilino residencial
(Lei 4.494, de 1964; atualmente, Lei 8.245, de 1991) e do contratante rural
(Estatuto da Terra, de 1964), na década de sessenta; dos titulares de direitos
autorais (Lei 5.988, de 1973; atualmente, Lei 9.610, de 1998), na década de
setenta; do consumidor (Código de Defesa do Consumidor, de 1991), na década de
noventa; do aderente em contrato de adesão (Código Civil, de 2002), na primeira
década do século XXI.
Algumas dessas vulnerabilidades reclamaram tal grau
de intervenção legal, que se converteram em ramos autônomos do direito, a
exemplo do direito do trabalho, do direito autoral, do direito agrário e do
direito do consumidor. Como o direito civil dos contratos permaneceu ancorado
nos pressupostos oitocentistas do Estado liberal, da concepção de mercado como
espaço imune à controlabilidade social ou estatal e das conseqüentes concepções
de autonomia privada ilimitada e de igualdade jurídica formal dos contratantes,
terminou por ser subtraído de importantes segmentos da vida econômica e do
cotidiano das pessoas. Esses direitos contratuais especiais têm em comum a forte
presença da intervenção legislativa e da conseqüente limitação da autonomia
privada.
Ressalta-se o paradoxo que os juristas começam a perceber com mais nitidez: o
Estado social, sob o ponto de vista do direito, cresce na mesma proporção em
que ele decresce, sob o ponto de vista econômico. As recentes experiências
brasileiras de privatização de setores importantes da economia nacional,
principalmente de fornecimento ou prestação de serviços públicos, revelaram que
cresceram as demandas de regulação, para proteção dos contratantes usuários. E
a regulação se dá, prioritariamente, no controle das relações contratuais, para
tutela dos contratantes vulneráveis, que exercem pouco ou nenhum poder de
barganha.
A partir do início dos anos oitenta do século XX, com o triunfo de governos
conservadores nos países economicamente mais fortes, passou a vigorar o suposto
consenso de que o Estado é o problema e o mercado a solução, ou de que a
atividade econômica desregulada é mais eficiente. O fim do Estado social foi
proclamado pelos poderes econômicos hegemônicos e pela literatura política e
social, que alardeiam a necessidade de “respeito aos contratos”, pouco
importando que tenham resultado do poder negocial dominante e da vulnerabilidade
jurídica das outras partes, para que os investimentos nas nações mais pobres
fluam.
Apesar de viver o ordenamento jurídico brasileiro sob a conformação
constitucional do Estado social, a concepção liberal do contrato ainda é muito
enraizada nos hábitos e quefazeres dos juristas nacionais, para o que
contribuiu a onda aparentemente vencedora da globalização econômica, fundada
principalmente no mercado financeiro mundial livre de qualquer regulação e na
corrente ideológica do neoliberalismo, exigentes do encolhimento das garantias
legais dos direitos nacionais, máxime no que concerne à proteção dos
contratantes vulneráveis, principalmente do trabalhador assalariado, do
consumidor e do usuário dos serviços públicos privatizados.
Esse cenário enganador de ressurgimento das crenças nas virtudes econômicas do
sistema de mercado livre levou alguns[3] a propugnar pelo retorno dos princípios
clássicos do contrato, com interesse crescente (especialmente nos países
anglo-americanos) na relação entre eles e os princípios econômicos (eficiência,
custo e benefício), com alguma repercussão no Brasil, abdicando-se dos valores
e princípios jurídicos fundamentais. A crise financeira mundial do final de
2008 pôs em cheque essas convicções que pareciam irreversíveis, retomando-se a
necessidade de regulação pública da atividade negocial e, conseqüentemente, da
preservação dos contratantes vulneráveis. “De repente, o Estado voltou a ser a
solução, e o mercado, o problema; a globalização foi posta em causa; a
nacionalização de importantes unidades econômicas, de anátema passou a ser a
salvação” [4].
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