terça-feira, 15 de outubro de 2013

Presunção de vulnerabilidade contratual e a regulação legal (Paulo Lôbo)



  A admissão da vulnerabilidade como categoria jurídica do direito contratual importa giro copernicano, que desafia a concepção liberal da autonomia privada, máxime em tempos de grave crise financeira mundial, que pôs a nu a universalização dos malefícios da ideologia do neoliberalismo, prenunciada por Avelãs Nunes[2]. A vulnerabilidade do contratante é fruto do Estado social, do século XX, com suas promessas de realização da justiça social e redução das desigualdades sociais, que no Brasil projetaram-se nas Constituições de 1934 a 1988, especialmente nesta.
                   No que respeita aos contratos, o Estado social caracteriza-se justamente pela função oposta à cometida ao Estado liberal mínimo. O Estado não é mais apenas o garantidor da liberdade e da autonomia contratual dos indivíduos; vai além, intervindo profundamente nas relações contratuais, ultrapassando os limites da justiça comutati­va para promover, não apenas a justiça distributiva, mas também a justiça social. Diferentemente da justiça comutativa (dar a cada um o que é seu, considerando cada um como igual – transportando-se para o contrato o princípio da igualdade jurídica formal) e da justiça distributiva (dar a cada um o que é seu, considerando a desigualdade de cada um – no plano contratual, atribuindo mais tutela jurídica ao contratante que o direito presume vulnerável, a exemplo do trabalhador, do inquilino, do consumidor, do aderente), a justiça social implica transformação, promoção, mudança, segundo o preciso enunciado constitucional: “reduzir as desigualdades sociais” (arts. 3º, III, e 170, VII, da Constituição brasileira). Com efeito, enquanto as justiças comutativa e distributiva qualificam as coisas como estão, a justiça social tem por fito transformá-las, de modo a reduzir as desigualdades.
                   A intervenção do Estado nas relações econômicas privadas, que caracteriza profundamente o Estado social, tem sob foco principal o contrato, como instrumento jurídico por excelência da circulação dos valores e titularidades econômicos, e precisamente da proteção dos figurantes mais fracos ou vulneráveis. No Brasil, ao longo do século passado, o direito passou a presumir a vulnerabilidade de determinados figurantes, merecedores de proteção legal e de conseqüente restrição do âmbito de autonomia privada, quando esta é instrumento de exercício de poder do outro figurante (ou parte contratual). Assim, emergiram os protagonismos do mutuário, com vedação dos juros usurários (Dec. 22.626, de 1933), do inquilino comercial (Dec. 24.150, de 1934; atualmente, Lei 8.245, de 1991) e do promitente comprador de imóveis loteados (Dec.-Lei 58, de 1937), na década de trinta; do trabalhador assalariado (Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943), na década de quarenta; do inquilino residencial (Lei 4.494, de 1964; atualmente, Lei 8.245, de 1991) e do contratante rural (Estatuto da Terra, de 1964), na década de sessenta; dos titulares de direitos autorais (Lei 5.988, de 1973; atualmente, Lei 9.610, de 1998), na década de setenta; do consumidor (Código de Defesa do Consumidor, de 1991), na década de noventa; do aderente em contrato de adesão (Código Civil, de 2002), na primeira década do século XXI.
Algumas dessas vulnerabilidades reclamaram tal grau de intervenção legal, que se converteram em ramos autônomos do direito, a exemplo do direito do trabalho, do direito autoral, do direito agrário e do direito do consumidor. Como o direito civil dos contratos permaneceu ancorado nos pressupostos oitocentistas do Estado liberal, da concepção de mercado como espaço imune à controlabilidade social ou estatal e das conseqüentes concepções de autonomia privada ilimitada e de igualdade jurídica formal dos contratantes, terminou por ser subtraído de importantes segmentos da vida econômica e do cotidiano das pessoas. Esses direitos contratuais especiais têm em comum a forte presença da intervenção legislativa e da conseqüente limitação da autonomia privada.
                   Ressalta-se o paradoxo que os juristas começam a perceber com mais nitidez: o Estado social, sob o ponto de vista do direito, cresce na mesma proporção em que ele decresce, sob o ponto de vista econômico. As recentes experiências brasileiras de privatização de setores importantes da economia nacional, principalmente de fornecimento ou prestação de serviços públicos, revelaram que cresceram as demandas de regulação, para proteção dos contratantes usuários. E a regulação se dá, prioritariamente, no controle das relações contratuais, para tutela dos contratantes vulneráveis, que exercem pouco ou nenhum poder de barganha.
                   A partir do início dos anos oitenta do século XX, com o triunfo de governos conservadores nos países economicamente mais fortes, passou a vigorar o suposto consenso de que o Estado é o problema e o mercado a solução, ou de que a atividade econômica desregulada é mais eficiente. O fim do Estado social foi proclamado pelos poderes econômicos hegemônicos e pela literatura política e social, que alardeiam a necessidade de “respeito aos contratos”, pouco importando que tenham resultado do poder negocial dominante e da vulnerabilidade jurídica das outras partes, para que os investimentos nas nações mais pobres fluam.
                   Apesar de viver o ordenamento jurídico brasileiro sob a conformação constitucional do Estado social, a concepção liberal do contrato ainda é muito enraizada nos hábitos e quefazeres dos juristas nacionais, para o que contribuiu a onda aparentemente vencedora da globalização econômica, fundada principalmente no mercado financeiro mundial livre de qualquer regulação e na corrente ideológica do neoliberalismo, exigentes do encolhimento das garantias legais dos direitos nacionais, máxime no que concerne à proteção dos contratantes vulneráveis, principalmente do trabalhador assalariado, do consumidor e do usuário dos serviços públicos privatizados.
                   Esse cenário enganador de ressurgimento das crenças nas virtudes econômicas do sistema de mercado livre levou alguns[3] a propugnar pelo retorno dos princípios clássicos do contrato, com interesse crescente (especialmente nos países anglo-americanos) na relação entre eles e os princípios econômicos (eficiência, custo e benefício), com alguma repercussão no Brasil, abdicando-se dos valores e princípios jurídicos fundamentais. A crise financeira mundial do final de 2008 pôs em cheque essas convicções que pareciam irreversíveis, retomando-se a necessidade de regulação pública da atividade negocial e, conseqüentemente, da preservação dos contratantes vulneráveis. “De repente, o Estado voltou a ser a solução, e o mercado, o problema; a globalização foi posta em causa; a nacionalização de importantes unidades econômicas, de anátema passou a ser a salvação” [4].

LÔBO, Paulo. Contratante vulnerável e autonomia privada. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3749, 6 out. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25358>. Acesso em: 15 out. 2013.

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